3 Parte - A história do Brasil no ano 2000 - contada por Joaquim Felício dos Santos

03-09-2013 11:08

REVISTA DO LIVRO

Segue a descrição de todos os lugares e cidades das margens do Rio das

Velhas por onde passara S. M.; de seus principais edifícios, de seus estabelecimentos

industriais e científicos, população, comércio, indústria, ilustração,

riquezas, etc.

Sabará é a estação terminal, ou antes, inicial, de um importante sistema

de vias férreas onde vem entroncar-se a antiga Estrada _de Ferro de Pedra LI

que tomara o nome de Estrada da Federação.

Sabará, situado na margem direita do rio, ponto de junção de dois

importantes sistemas de vias de comunicação, empório dos dois comércios

terrestre e fluvial, é uma das mais florescentes cidades do Rio das Velhas.

Capital do Estado do mesmo nome, que abrange a antiga comarca e parte

da do Rio Grande, conta sessenta e quatro mil habitantes. Sua principal

indústria consiste em artefatos de mármore, extraído no lugar, e no fabrico

dos finos e afamados tecidos de linho, conhecidos com o nome de saberás.

Observa-se nas indústrias das cidades ribeirinhas do Rio das Velhas, que

cada uma delas exerce uma especialidade: é a realização do princípio econômico

da divisão do trabalho em mais elevada escala, o que produz a

perfeição e economiza as fôrças ativas,

Sabará possui ricos e grandiosos edifícios, entre os quais sobressai a

casa do Govêmador que serve ao mesmo tempo de casa das sessões da

Assembléia do Estado. É um soberbo edifício situado sôbre o Cais da

Liberdade. Este cais estende-se na distância de três quilômetros pela

margem direita do rio; sombreado por altas palmeiras em tôda sua extensão,

oferece uma vista magnífica.

Em Sabará cessa a navegação para os vapôres procedentes de Guaicuí;

daí para cima, pelo pequeno volume das águas, o rio não é navegável para

embarcação de maior calado senão durante as grandes enchentes.

S. ~f. demorou-se um dia na cidade, visitou alguns de seus estabelecimentos,

examinou alguns alunos de escolas de primeiras letras, aulas de

latim, poética e música, e ficou satisfeitíssimo com o seu aproveitamento

e método de ensino dos professôres, ::\0 dia seguinte tomou passagem na

estrada de ferro para o Rio de Janeiro.

Segue a descrição da nagem imperial, das cidades por onde passou

S. M., dos lugares que visitou, da prosperidade da vasta zona cortada pela

via férrea e seus ramais, e muitas outras coisas interessantes; mas só

daremos alguns trechos de uma conversação que entreteve, em caminho com

o diretor da Companhia, o Engenheiro C. A. de Aguilar.

O leitor deverá estar lembrado de que S. M. tomara o nome de Dr.

Muller para não ser conhecido, ou antes, para ter um nome aceitável no

séc. XXI:

" ... É como te acabo de ~-por, Cidadão Muller, dizia Aguilar. Nos

tempos da Monarquia, sob o regímen da centralização, centralização em

tudo, tratava-se, e só, do engrandecimento da Côrte, - todos os mais interêsses

eram indiferentes. O São Francisco corre para o Norte, fechado

naturalmente pelo Paulo Afonso; procurava-se volver-lhe a foz, ligando-o

por uma estrada de ferro com o pôrto do Rio de Janeiro; chamar para ali

artificialmente tôdas as riquezas da vasta zona compreendida por sua bacia,

onde existiam magníficos elementos de prosperidade que só esperavam

meios de transporte para serem vivificados e produzirem; para êsse fim

142

')

. I

, Lacrjma ";"Chrisli ano de- t~68.

Nova vendima.

I

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-----~

Caricatura de Zacarias por ocasiao da queda do gabinete que presidia.

"A Semana Ilustrada" de 2 de agôsto de 1868.

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,-.-'-----'---11II

ca~@mED')J ~ü~as~&fM.

Caricatura alusiva à queda do ministério liberal em 1868. "A Semana Ilustrada"

de 20 de setembro de 1868.

INÉDITOS

matavam-se ou entíbiavam-se tôdas as emprêsas rivais, como as estradas do

Recife e Bahia.

"Fàcilmente compreenderás que com vistas tão acanhadas invertia-se a

ordem natural das coisas. Idéias mesquinhas, idéias de monarquia, a centralização

das fôrças e vitalidade social em um centro único... O São

Francisco pertence ao oceano, e não ao Rio de Janeiro; é para ali a sua

saída natural.

"Com a república mudaram-se essas concepções pequeninas de egoísmo,

de sacrifício do todo pela parte; olhou-se além no futuro; começando-se

pelo princípio, por onde devia-se começar; promoveu-se a navegação franca

do rio, abrindo-a para o mar, para o comércio estrangeiro. para as luzes

e civilização.

"Disseste que o Rio de Janeiro oferecia um dos melhores portos do

mundo, vasto e seguro. Não duvido que naqueles tempos a sim Iôsse.

Mas diz-me o que é o São Francisco desde Guaicuí, capital da Confederação,

até o oceano? Um extenso pôrto de trezentas e oitenta léguas que

poderá abrigar tôdas as embarcações do mundo, principalmente sob o sistema:

~e que usa_mos, de franqueza ilimitada de nossas águas fluviais ao

comerClO das naçoes .

" ... Por êste mapa compreende-se melhor. Aqui está o traço da Estrada

de Ferro da Federação, com tôdas as suas ramificações. O tronco

principal parte de Sabará; digo parte, intencionalmente, pelo que já te

expus: aqui devia ser o seu princípio; é o São Francisco que chama a si

o comércio do sul; o Rio de Janeiro é um ponto geográfico proporcionalmente

insignificante que não pode disputar-lhe a primazia.

"Como dizia: começa a estrada em Sabará e segue até São Gonçalo

da Ponte, outrora insignificante arraial e hoje grande e populosa cidade

comercial. Em São Gonçalo prende-se outro tronco, que vem pelo vale do

Paraopeba e começa onde suas águas são navegáveis.

"Disseste que o São Francisco, de Pírapora para cima, era inavegável:

engano. Citaste a autoridade de Liais, que na sua Hídrografía do Alto São

Francisco demonstra ser impraticável a navegação, impedida por cachoeiras

invencíveis. Respondo-te que Líais não passava de um cortesão de Pedro

II; nunca fêz um estudo sério sôbre a navegabilidade do São Francisco de

Pírapora para cima, e nem possuía as habilitações práticas necessárias para

êsse fim. Tôdas essas cachoeiras, supostas invencíveis, foram quebradas e

o rio canalizado. Pirapora forma hoje um dos melhores canais e liga a

navegação geral de Guaicuí para cima.

"De São Gonçalo segue a linha férrea até a cidade de Lagoa Dourada;

aqui bifurca-se: um braço, ramificando-se em diferentes sentidos, vai ter à

antiga estação de Entre Rios, outro passando por São João del-Rei, Bom

Jardim, etc. Vai demandar as águas do Paraíba na Barra do Piraí. Dêste

braço em São João del-Reí ainda segue um ramal pelo vale do Rio das

Mortes até o Rio Grande.

"Já vês: é magnífico. Calcula a prosperidade que ...

S. M. dormia.

Nesse mesmo dia S. M. chegou a Petrópolis - diremos com exatidão:

aonde fôra Petrópolís,

Temos à vista o Dicionário C01'Ográfi'co do Brasil de Alexandre Maia,

edição de 1998. Da pág. 1642, vb. Petrópolís, transcreveremos o seguinte:

143

24 de

julho de

1870

,//

REVISTA DO LIVRO

144

"Petrópolís, disse Agassiz em sua Viagem ao Brasil, é o paraíso dos

fluminenses durante a estação calmosa, fugindo o calor, o pó, as exalações

pútridas, fétidas, mefíticas da Côrte, vão ali respirar um ar puro, são, e

gozar do magnífico panorama da Serra. No centro da cidade eleva-se soberbo

o Palácio do Imperador, rico, elegante edifício, não como o velho e sombrio

Palácio de São Cristóvão; aí passa D. Pedra seis mêses do ano, fruindo as

delícias de um clima ameno e temperado".

"Assim escrevia Agassiz no ano de 1869; mas, ah!, já não existe a

linda cidade aristocrática, o delicioso paraíso dos fluminenses.

"Petrópolis foi edifícada por um ato de capricho imperial. D. Pedra,

caricaturando o autócrata da Rússia, quis que também no Brasil houvesse

uma cidade com seu nome, e sôbre um torrão frio, estéril, improdutivo, surgiu

como por encanto. como pelo toque de um condão de fada, a linda e voluptuosa

Petrópolis: abriram-se os cofres públicos e despejaram-se torrentes de

ouro para aformoseá-la e construir-se um rico Palácio Imperial.

"Petrópolis era como um fragmento destacado do Rio de Janeiro e transportado

para o alto da Serra. Quando D. Pedra para ali se retirava com

a Família Imperial, acompanhavam-o como em arribação os áulicos, os

cortesãos, tudo que havia de elegante na aristocracia fluminense que não

podiam respirar senão o ar que respirasse o Imperador, que não se faltavam

de vê-Io, de admirá-Io, de adorá-Io. D. Pedro era como o astro que arrastava

tudo isso em sua órbita, como um centro de atração para onde tudo

convergia e que esparzía raios vívifícadores. Eram todos os dias bailes.

divertimentos, passeios, espetáculos, copos d'água; despendiam-se fortunas

fabulosas; resultavam falências; mas fruiam a presença imperial em áulica

beatitude.

"Assim a riqueza e prosperidade de Petrópolis; era tudo precário, artificial.

Sem quase comércio ou indústria alguma, era como uma grande

estalagem que vivia uma vida emprestada à custa da Côrte. Com a decadência

do Rio de Janeiro, quando deixara de ser a capital do Império,

começou também o seu rápido declínio .

" Hoje Petrópolis é um deserto, uma velha tapeIa abandonada,

coberta de espessa mata, ostentando o luxo, o vício, a fôrça vegetativa

de nossa natureza tropical com meia dúzia apenas de miseráveis casebres

habitados por algumas dezenas de gente pobre que vive da caça e de

uma pequena indústria, a extração de salitre.

"Há por tôda a palie boas nitreiras, porém a mais rica é no local

aonde fôra outrora o Palácio Imperial, hoje um montão de ruínas. A

nitreira do Palácio Imperial formou-se pela grande quantidade, que ali se

acumulara, de matérias azotadas, matérias orgânicas, animais e vegetais,

de mistura com cinzas e terras calcáreas provenientes da caliça abandonada

das paredes; igualmente por depósitos de guano, de que ainda se notam

espessas camadas em alguns lugares, formados pelas dejeções das aves

noturnas de milhares de pássaros, e principalmente, de nuvens de andorinhas

marítimas, que procuravam um abrigo, e faziam seus ninhos nas ruínas e

fundos dos velhos muros do palácio. O grande consumo alimentício que

ali se fizera em outros tempos concorreu em grande parte para as riquezas

da nitreira.

INÉDITOS

"Os habitantes do lugar lixiviam as terras nitradas e extraem o. excelente

salitre que vendem para os usos da indústria: é êste quase o único,

meio de vida desta pobre gente "

Logo que S. M. chegou a Petrópolis, a sua primeira visita foi para

o seu antigo Palácio, ou mais pràpriamente, para o seu local ou ruínas.

Ah! só restavam em pé alguns paredões mais grossos de cantaria, já fendidos,

inclinados, cobertos de gramíneas, de urzes, denegridos pelo fumo, COllSpurcados

pelas dejecções das aves que já formavam montões de guano ...

Os mineiros, em busca do salitre, continuavam todos os dias a obra de

demolição. Por tôda a parte viam-se espalhados restos e fragmentos de

ricos e suntuosos móveis antigos; no centro já haviam crescido grossas árvores

debaixo de cuja sombra se abrigavam os trabalhadores.

S. M., acompanhado por Tsherepanoff, percorria essas ruínas, triste,

abatido, sem preterir uma palavra. Quem poderia dizer os pensamentos

de angústia que lhe iam pela mente! Assim são as grandezas dêste

mundo!. .. Glória, fama, nome, riquezas, tudo é efêmero, tudo acaba,

tudo passa, tudo desaparece como o fumo que se esvai ao ligeiro sôpro

do vento!

Depois S. M. assentou-se acabrunhado sôbre o capitel de uma coluna

abatida. Assevera Tsherepanoff que vira copiosas lágrimas deslizarem-se

sôbre as faces imperiais.

Depois S. M. levantou-se e continuou pelas ruínas sua visita silenciosa .

. . . . . . . " .. " . Era exatamente no lugar que corresponde ao antigo aposento

de S. M.; restavam apenas três paredes: duas laterais e uma no

fundo. Em um dos cantos ardia uma fornalha e sôbre a fornalha, em

um grande tacho de cobre fazia-se a refinação do salitre.

Assentada em um banco de pedra levantado em forma de dólmen

via-se uma mulher. Essa mulher chamava-se Luísa, mostrava ter uns trinta

anos de idade; ainda bela, sadia, de feições regulares, pelos trajes denotava

que era uma mulher da classe pobre. Dirigia o serviço da refinação do

salitre. De vez em quando levantava-se, atiçava a fornalha ou depurava com

a escumadeira o líquido fervente.

Luísa trazia uma filha ao colo, criança de quah"o a cinco anos, que

choramingava incessante; não havia nada que a fizesse calar por mais

promessas, carícias e afagos que lhe prodigaliz.asse a mãe. Embalava-a

brandamente nos braços, mas a menina cada vez mais chorava. Luísa já se

impacientava.

- Cala-te, minha filha, disse ela afinal, que aí vem o Imperador.

A criança calou-se repentinamente e aterrada, trêmula de susto, cercou

com os bracinhos o pescoço da mãe, que beijou-a com ternura.

S. M. chegava neste momento e ouviu as últimas palavras de Luísa, que

tanto susto causaram à menina.

- Dar-se-á o caso que me conhecesse? disse S. M. em voz baixa, dirigindo-

se a Tsherepanoff.

- Não, Senhor; não conheceu V. M., respondeu o médium no mesmc

tom.

- Não me conheceu! Como então proferiu o meu nome?

O médium não respondeu.

S. M. aproximou-se e dirigindo-se à Luísa:

- Bons dias, cidadã, disse êle.

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--------

/'

REVISTA DO LIVRO

- Bons dias, cidadão, respondeu Luísa.

- Tu me conheces? perguntou S. M.

Luísa fitou os grandes olhos por alguns momentos em S. M. e hesitou

em responder. "Que semelhança!" disse ela para si; "eu juraria ser dêle".

- Tu me conheces? repetiu S. M.

- Não, cidadão, respondeu Luísa. Não te conheço, nunca te vi, ao

menos em pessoa ...

- Peço-te que me expliques: quando vim chegando fizeste calar essa

criança dizendo: aí vem o Imperador?

- Pois tu ignoras, cidadão? É um modo de falar.

- Não te entendo.

- Vejo que és estrangeiro.

- Sim: sou estrangeiro, sou alemão.

- Eu logo vi, e por isso ignoras os nossos costumes. Quando queremos

acalentar uma criança, para amedrontá-Ia, costumamos dizer: aí vem o

imperador!, como se disséramos aí vem o tutu, ou o lobisomem.

- E sabes, cidadã, o que isso quer dizer?

- Eu, cidadão, não sei nada, sou uma pobre ignorante. Mas meu

marido que lê e sabe as cousas antigas conta que em outros tempos fomos

governados por um mau imperador: um homem que era senhor do Brasil,

fazia o que queria e desgraçou-nos a ponto que ainda hoje só seu nome

inspira horror e serve para acalentar e fazer as crianças tremerem, corno

acabaste de presenciar com esta menina.

- Bem, bem. Tudo isso são histórias de crianças. Mudemos de conversa.

Diz-me, cidadã: quando perguntei-te se me conhecias, hesitastes

-em responder-me por alguns momentos. Dar-se-á o caso que já me visses

em alguma parte?

- Eu, cidadão, nunca te vi em pessoa, mas ...

- Mas o quê?

- É que uma certa semelhança ...

- Semelhança com quem?

- Não sei, cidadão. Muitas vêzes falamos uma coisa inocentemente

e depois envenenam as melhores intenções. Demais pode também a gente

estar enganada. A semelhança engana tanto ...

- Cada vez menos te entendo. Já viste alguma pessoa que se pareça

comigo?

- Não é pessoa, cidadão.

- Não é pessoa?

- É um busto de pedra que tenho aqui, que é mesmo o teu retrato.

- Que é mesmo o meu retrato!

- Nada mais semelhante. Não sei se algum escultor... Mas não,

não, não é possível... É tão antigo, talvez ainda não fôsses nascido.

- Quero vê-lo ...

- Meu marido o achou enterrado ali na lama da cozinha e, não lhe

vendo outro préstimo, o trouxe para amolador.

- Já te disse que quero vê-Io.

O busto estava debaixo do carvão, junto à fornalha. Luísa o descobriu,

arredando o carvão que o ocultava.

Logo que S. M. viu o busto, tornou-se rubro de cólera Era n SP'.!

busto, um de seus mais ricos e perfeitos bustos de fino mármore que havia

146

~ -

IN~DITOS

no Palácio de Petrópolís. Apesar de maltratado e denegrido pelas cinzas

e carvão, anda se conhecia a perfeição artística. Só a fronte se achava

um tanto gasta pelo uso: era onde o marido de Luísa costumava amolar

suas facas de mato, machado e instrumentos de trabalho.

Luísa, que percebera a cólera de S. M., mostrava-se arrependida,

.receando ter talvez cometido alguma indiscrição.

- Perdoe, cidadão, disse ela. Não sei se te ofendi.

- Então não sabes de quem é êste busto? perguntou S. M. franzindo

.() sobrolho.

Eu, cidadão! Dou minha palavra ...

- Pois eu te digo: êste busto é da pessoa de quem há pouco falaste.

- De que pessoa?

- Do Imperador.

Luísa estremeceu. Sua filha soltou um grito agudo e trêmula de susto

-cobríu o rosto com as mãozinhas.

- O que é que dizes, cidadão?

- Digo-te a verdade, cidadã. Respeito a memona do Imperador, que

foi um grande homem. Diz o preço, compro-te êsse busto.

- Podes levá-lo, cidadão, e já. Não é preciso comprá-Io, Pelo que

me contas, é um obséquio que me fazes, não por mim, mas por causa desta

-críancinha. Olha como ela ainda treme de mêdo. Não é nada, minha

.fílha, não tenhas mais susto. Êste cidadão é nosso amiguinho, e vai levar

o busto daqui para fora.

A menina olhou para S. M. com olhos suplicantes.

- Sim, minha menina, disse S. M. compadecido; vou levar o busto

-comigo e daqui em diante não terás mais o que te faça mêdo.

o

Continuando sua desolada peregrinação pelas ruínas de Petrópolís,

sôbre as quais mostra extraordinário conhecimento, D. Pedro é laureado

arqueólogo do Instituto local in honoris causa. Sua tese sôbre "Uma'

Pompéia Americana". Prossegue a viagem para o Rio de Janeiro, destruido

quase totalmente por terrível cataclisma. Uma caçada em São

Cristóvão. A festa de São Jerônimo. Ainda as Memórias de Alencar.

Uma conversa entre arqueólogos. Do cativeiro. Visita ao Arsenal.

Leilão na praça de trastes antigos. Uma obra de Renaud. Eleições

municipais: por suas inúmeras qualidades e invulgar cultura os fluminenses

elegem "Dr. Muller" Juiz de Paz. Seu primeiro processo,

o

Iamos nos esquecendo de dizer que S. M. dava audiência em um vasto

.salão da antiga Casa da Moeda. Êste belo edifício, que tantos milhares

de contos custara ao Estado e que a tanta gente enriquecera ... , fôra

'quase completamente arruinado com a erupção do Corcovado. Exumados

os seus restos, debaixo de cinzas e escórias fizeram-se algumas reparações

provisórias e serve na posteridade de casa de audiência das autoridades

.locaís.

O Cidadão Sales, escrivão de S. M., leu em altas vozes a seguinte

petição de denúncia da promotoria pública:

147

:J.O

REVISTA DO LIVRO

"Cidadão Juiz de Paz

"Venho, em nome da justiça pública, denunciar-te um crime enorme,

um grave atentado contra o livre gôzo e exercício dos direitos políticos,

praticado pelos denunciados João Manuel Patafúfio e seus co-réus.

"Nas últimas eleições para juízes de paz, que se procederam no dia 23

do corrente mês, enquanto os partidos, sempre na órbita legal, disputavam

e empregavam todos os esforços para fazerem triunfar a causa de seus

candidatos, o Cidadão Patafúfío, sem respeitar as leis da República, que

recomendam a mais completa independência e liberdade de voto, a mais

escrupulosa moralidade de todo o processo eleitoral, praticou atos que

indignaram tôda a briosa corporação dos votantes desta cidade; para fazer

triunfar a causa do Cidadão Francisco Gomes de Freitas, cuja candidatura

defendia, não trepidou lançar mão dos meios indignos da corrupção, reprovados

e severamente punidos pelo código criminal.

"Das averiguações feitas, na forma das últimas instruções do govêrno

do Estado pela comissão de inqnérito encarregada de verificar a moralidade

das eleições, resultam os seguintes fatos praticados pelo denunciado Patafúfio:

"Prometeu ao votante Pedro de Alcântara um par de sapatos novos, ao

votante João uma camisa, ao votante Carlos um chapéu, ao votante Leopoldo

um par de calças, ao votante Salvador certa quantia que ainda não se

sabe ao certo; fêz votarem, sem estarem qualificados, os fósforos Bibiano,

Xavier de Paula, Leocádio; pagou no Hotel União as despesas que ali fízeram

os votantes Miguel e GabrieI; por não ter querido votar no seu candidato,

despediu de casa o seu criado Rafael; prometeu obter para o

votante Gonzaga um emprego que êste solicita na fábrica de sabão de São

Cristóvão; enfim, inutilizou as listas de três votantes, ríscando e alterando-

Ihes os nomes.

[ão podes ignorar, Cidadão Juiz de Paz, que desde que nos constituímos

em república, não consta qne durante as nossas renhidas e agitadas

lutas eleitorais se tenha perpetrado uma tão longa série de negros atentados,

e nem qne tão macnlada tenhamos tido eleição alguma; é o primeiro

exemplo que se dá de tantos cidadãos, menosprezando sua dignidade de

republicanos, tendo-se deixado Ievar por promessas de recompensa para

sacrificarem suas convicções, Persuadam-se os nossos compatriotas que o

direito de votar foi-lhes ~do exclusivamente no interêsse da sociedade:

o exercício da soberania ~ é um direito que se possa renunciar; a convicção

de um republicano não lhe pertence, mas à república e por conseguinte

não pode ser objeto de torpes transações; especular com a consciência era

só próprio dos govêrnos monárqnicos, porque então a corrupção vinha de

cima. Tão vil é aquêle que compra o voto como o que o vende; por isso

as nossas leis o equiparam na punição.

"Conquanto praticados nas trevas do mais rigoroso segrêdo os atentados

que hoje denuncio-te, felizmente as patrióticas pesquisas da comissão de

inquérito tornaram-os patentes e possuímos provas testemunhais de tôda a

exceção.

"~ do dever desta promotoria pública pedir sua severa punição; pelo

que, em cumprimento de meus deveres, venho apresentar-te a presente de-

148

'-

INÉDITOS

núncia, a qual requeiro seja recebida, a fim de serem processados o denundado

Patafúfio como incurso nos artigos 101 e 102 do Código Criminal, e

somente no art. 101 os denunciados Pedra de Alcântara, João, Carlos, Leopoldo,

Salvador, Bibiano, Xavier de Paula, Leocádio, Miguel, Gabriel,

Rafael, Gonzaga.

"São testemunhas os cidadãos Saião Lobato, Cotegipe, Muritiba, Sousa

Ramos, Pimenta Bueno, Bernardo Lourenço, Camaragibe e Ferreira Viana.

"Requeiro-te, Cidadão Juiz de Paz, que mande citar os réus para assistirem

o processo, e as testemunhas para deporem, debaixo das penas da lei.

"O Promotor Público - Jahn Rase."

Consta o despacho do cidadão Juiz de Paz, que é do teor seguinte:

"Como requer, e marco o dia 26 do corrente na Casa das Audiências

pelas 10 horas da manhã.

Rio de Janeiro, 21 de setembro de 824.64 {sicj - Doutor Muller."

- Ora bolas! disse S. M. consigo depois da leitura da denúncia. Então

isso é o que se chama graves atentados? Mas prossigamos; a farsa promete

ser engraçada. Depois, dirigindo-se ao réu Patafúfio, disse:

- Cidadão Patafúfio, levanta-te; serás o primeiro interrogado porque

sôbre ti pesam mais fortes acusações; depois interrogarei teus co-réus.

Patafúfio levantou-se com ar altivo e ao mesmo tempo respeitoso.

Sentimos, por falta de espaço, não ser-nos possível transcrever aqui em

sua íntegra êste interessante processo cujos autos temos à vista e foram-nos

confiados por Tsherepanoff. Para satisfazer a louvável curiosidade do

leitor, resumiremos e extrataremos algumas peças mais importantes.

Segue o interrogatório do réu Patafúfio feito por S. M.

JUIZ - Como te chamas?

RÉu - João Manuel Patafúfio.

JUIZ- Donde é natural?

RÉu - Desta cidade do Rio de Janeira.

JUIZ- Qual o 'teu estado?

RÉu - Casado. .:

JUIZ - Qual a tua profissão?

RÉU - Com,erciante de antiguidades brasileiras.

JUIZ- Qual a tua idade?

RÉu - Tenho quarenta e cinco anos.

JUIZ - Sabes ler e escrever?

RÉu - Como todos os brasileiros sei ler e escrever.

JUIZ- Não te pergunto sôbre os mais brasileiros.

RÉu - Cidadão Juiz de Paz, no século atual, no regímen do ensino

obrigatório e gratuito, a tua pergunta parece ociosa.

JUIZ- Não me repliques. Sabes o motivo por que és processado?

RÉu - Sei: por ter praticado atos proibidos pela lei, cabalando contra

a tua candidatura e a favor do meu candidato.

JUIZ- São verdadeiros os fatos alegados contra ti e teus co-réus na

denúncia da promotoria pública, que acaba de ser lida?

RÉu - São tôdas elas verdadeiras.

149

REVISTA DO LIVRO

JUIZ- És então réu confesso?

RÉu - Sou.

JUIZ- Confessas haveres corrompido votantes, feito votarem indivíduos

não qualifioados e inutilizado cédulas?

RÉu - Confesso.

JUIZ- Não sabias que praticavas um crime, um ato reprovado pela lei?

RÉu. - No tempo da Monarquia não se puniam êsses atos. Eu passaria

por um bom cabalista, aproveitável. O Govêrno recompensava ...

JUIZ- Não te pergunto pelo passado. Responde-me se sabias que

praticavas um crime?

RÉu - Sei que hoje é um crime.

JUIZ- E como o praticaste cientemente?

RÉu - Porque quaisquer que fôssem as conseqüências estava disposto

a combater a tua candidatura por todos os meios.

JUIZ- Explica-te.

RÉu - Envergonha-me de que meus concidadãos te houvessem proposto

para Juiz de Paz de nossa cidade, e se esforçassem pelo teu triunfo.

JUIZ- Explica-te melhor.

RÉu - Queres que te dê a razão?

JUIZ- Ordeno-te.

RÉu - És um homem de idéias excêntricas, anacrônicas, basta seres

monarquista neste século. Sempre supus seres dotado de pouco senso,

basta saber que um dia compraste-me bagatelas, livros inúteis, relíquias

da monarquia por preços exorbitantes. (Ouve-se um sussurro entre os

espectadores. )

. JUIZ- Silêncio, cidadãos. O auditório não pode fazer manifestações

por mais ousadas e extravagantes que sejam as declarações do réu. Depois

CUrigindo-sea êste: Podes continuar, tens plena liberdade de dizer o que

quiseres.

RÉu - Conclní.a seres um insensato ou um pródigo de mau gôsto.

JUIZ- E só por isso combatias a minha candidatura?

RÉu - Um homem qne não tem economia, que não sabe reger os próprios

negócios, muito menos saberá reger os negócios públicos.

JUIZ - Por esta forma procuras justificar teus crimes com a suposta

inabilidade do candidato que guerreavas?

RÉu - Não procnro justificar-me. Tinha pleno conhecimento de que

praticava um crime; mas preferia ser punido a ver triunfar o candidato

dos meus contrários. Era também minha intenção anular as eleições para

que, com o tempo, os meus concidadãos reconsiderassem ...

JUI'l - A que política pertences?

O Réu não respondeu.

, JUIZ- Não me respondes?

O mesmo silêncio.

O advogado do réu tomou a palavra.

- Cidadão Juiz de Paz, disse êle, o meu constituinte não pode responder-

te porque a palavra politica não é conhecida na República; são antigualhas

da Monarquia que só conhecem os eruditos e antiquários. Demais,

cidadão Juiz de Paz, falando com o devido respeito e acatamento à tua

alta posição, essa tua pergunta parece impertinente.

150

L

INÉDITOS

L

JUIZ - À ordem, cidadão advogado. Não te é permitido responder pelo

réu. Depois dirigindo-se ao réu: conheces as testemunhas que vão jurar

no teu processo?

RÉu - Conheço tôdas elas.

JUIZ - Tens inimiz.ade com elas.

RÉu - Não tenho.

JUIZ - Ou alguma razão para dá-Ias de suspeitas?

RÉu - Não tenho.

JUIZ - Tens a alegar alguma coisa em tua defesa?

RÉu - Tenho, mas reservo para a ocasião do júri.

JUIZ - Nada mais tens a dizer para esclarecimento da justiça?

RÉu - Nada mais.

Segue o têrmo de encerramento do interrogatório, que é assinado

pelo réu.

Seguem os interrogatórios dos outros co-réus, denunciados pela promotoria

pública. Alguns confessam os fatos que são-lhe imputados na denúncia;

outros negam. Terminados os interrogatórios inquiriram-se as testemunhas.

Todo o processo da formação de culpa correu plácido à exceção de um

pequeno incidente que felizmente não teve graves conseqüências devido ao

bom-senso e energia de S. M. como juiz processante, Êste incidente deu-se

quando depunha a testemunha Ferreira Viana. S. M. perguntava-lhe:

JUIZ - Es parente de algum dos réus?

TESTEMUNHA- Não.

JUIZ - És amigo ou inimigo de algum dos réus?

T~LIA - Não sou amigo e nem inimigo dos réus ou de alguns

dêles .

•. este momento levantou-se agitado o réu Bibiano e com voz aflautada,

que de contínuo fazia rir os espectadores, bradou furioso dirigindo-se à

testemunha:

- Mentes, és meu inimigo figa dal, averbo-te de suspeito para jurar

nesta causa.

TESTEMUNHA~ _.ão sou teu lillID1go; és tu quem mentes.

BIRIANO- Cidadão Juiz de Paz, denuncio-te que a testemunha é meu

inimigo.

JUIZ - Cidadão Ferreira Víana, o réu averba-te de suspeito. Lembra-

te que prestaste juramento para dizeres a verdade do que soubesses

e fôsses perguntado.

TESTRMUNHA- Juro, Cidadão Juiz, que não sou ínímízo do réu.

JUIZ - Réu Bibiano, que motivo tens a alezar para dares a testemunha

de suspeita?

BIBIANO- Vou dizer-te a verdade, Cidadão Juiz. Por graça de Deus

sou proprietário da Fazenda de Santa Cruz, que herdei de meus antepassados

e que exploro em proveito meu e de meus filhos e parentes; é propriedade

exclusivamente minha, e que pretendo legar aos meus descendentes.

Sendo a fazenda um bem que me pertence, compreendes que só

eu posso nomear os empregados que muito bem quiser, livremente, e

sem dar satisfações a pessoa alguma.

JUIZ - t justo. Até aí tens razão.

L1

12 de fevereiro de 1871

Revista do Livro,pág. 111 a 169, ed. MEC, RJ,1957.