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os acontecimentos segundo a modalidade do verossímil” (LEENHARDT, 1998, p. 43). E para dar este efeito de “real” na obra Xica da Silva, João Felício dos Santos fez leituras que o ajudaram a construir o seu romance, a partir de obras memorialísticas como as Memórias do Distrito Diamantino do seu parente Joaquim Felício dos Santos, Arraial do Tejuco, Cidade Diamantina de Aires da Mata Machado Filho e também de obras literárias como o Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles e o Tesouro de Chica da Silva de Antônio Callado. Mas, vale salientar que o texto de Joaquim Felício dos Santos foi o mais revisitado por João Felício dos Santos pelo fato de conter informações sobre a economia, política, organização social do vetusto arraial do Tejuco. Aqui percebemos a memória discursiva e o interdiscurso “definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente” (ORLANDI, 2001, p. 31) estes já-ditos sobre Chica da Silva são retomados por João Felício dos Santos. Já que o autor busca trazer memórias diversas da vida de Chica da Silva embora não seja “fácil penetrar na vida privada nem na vida íntima situada no interior da vida cotidiana, ou porque se confundem com a vida pública, ou porque, ao contrário, se escondem atrás do próprio pudor em revelá-las” (FOISIL, 1993, p. 331) Joaquim Felício dos Santos, como o primeiro criador de Chica da Silva, teria a sua personagem histórica apropriada e ressignificada por seu sobrinho-neto João Felício dos Santos, que a tornaria um mito como a mulata lasciva de sexualidade exacerbada. Neste ponto já percebemos na obra de João Felício dos Santos o intradiscurso “que seria o eixo da formulação, isto é, aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas.” Ou seja, o que se diz e que se diferencia. O conceito de apropriação segundo Roger Chartier “(...) visa uma história social dos usos e das interpretações (...)” (CHARTIER, 2002, p. 68) como também, segundo o autor “(...) enfatiza a pluralidade dos empregos e das compreensões e a liberdade criadora” (CHARTIER, 2002, p. 67). O que pode ser perceptível com a imagem de Chica da Silva que foi sendo moldada como barro pelas mãos dos seus muitos artífices. Releituras foram feitas do discurso oficial de Joaquim Felício dos Santos sobre Chica da Silva e representações contraditórias foram construídas sobre esta mulher, como a de João Felício dos Santos. As apropriações que se fizeram de Chica da Silva geraram lutas de representações por aqueles que buscaram determinar a sua imagem, já que “as lutas de representações têm tanta 453 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio” (CHARTIER, 1988, p. 17). E como acrescenta Georges Duby sobre as representações que “numa determinada sociedade, coexistem vários sistemas de representação, que (...) são concorrentes” (DUBY, 1995, p. 132) e determinadas pelas relações de poder, como as imagens de Chica da Silva que refletem os antagonismos sociais. João Felício dos Santos também passa a autenticar como registros do passado dignos de consulta para ajudar na composição de suas obras literárias a oralidade, a partir do momento em que durante as suas viagens pelo país, passa a recolher os relatos locais de moradores sobre os muitos personagens históricos que tornariam protagonistas de suas obras ficcionais. No caso de Chica da Silva pelo fato de sua lembrança estar sempre presente na vida cotidiana dos diamantinenses, não foi difícil recolher da tradição oral muitas histórias contraditórias contadas pelo povo sobre essa mulher que faz parte do universo simbólico do nordeste de Minas. Sob a pena do literário, a história vai sendo inscrita não necessariamente como foi, mas, como poderia ter sido. E da mesma forma ocorre com os personagens históricos que ao serem transportados da história para a narrativa literária ganham novos contornos enquanto representações do real, não sendo descritos pelo literário como eram, mas, como poderiam ser, pois, “a representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele” (PESAVENTO, 2008, p. 40). Assim sendo, a Xica da Silva personagem literária de João Felício dos Santos não é uma reprodução idêntica à Chica da Silva mulher do século XVIII, como também não é o seu reflexo perfeitamente igual. Mas, é sim uma representação, uma construção social gestada e gerida num determinado tempo. Xica da Silva não foi a única personagem mulata a ser representada por João Felício dos Santos. No seu romance histórico João Abade, o autor descreve a sua Maria Olho de Prata como a mestiça devassa sempre animada para aventuras pecaminosas. Mas, para compreendermos a imagem de Xica da Silva envolta numa aura de lubricidade e de forte apelo sexual (sex appeal) produzida por João Felício dos Santos, temos que estar atentos a alguns condicionantes, como os seguintes: a) compromissos do escritor com correntes literárias; b) as peculiaridades estilísticas de cada autor; c) o momento histórico em que a obra seja elaborada; d) os recursos materiais que envolvem e afetam a produção, atingindo também as expectativas e o gosto do público ao qual a obra literária se destina (QUEIROZ JÚNIOR, 1975, p. 96). 454 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 No que tange às correntes literárias, as obras de João Felício dos Santos têm fortes indícios regionalistas. Porém, como diagnosticou Teófilo de Queiroz Júnior (1975), ao arrolar diversas obras literárias de autores nacionais, do Barroco aos Movimentos Contemporâneos, que independentemente das correntes literárias e dos seus respectivos momentos de manifestação histórica há sempre a persistência literária do estereótipo da mulata e com João Felício dos Santos não foi diferente. Pois, em duas de suas obras datadas de tempos diferentes, João Abade de 1957 com a mulata Maria Olho de Prata e Xica da Silva que protagoniza e intitula o romance de 1976 o estereótipo da mulata permanece o mesmo com pouquíssimas alterações, embora a década de 1970 fortaleça a representação da mulata sensual. Se o comprometimento de um autor com uma corrente literária não necessariamente provoca uma revisão ou modificação do estereótipo da mulata, vale ressaltar que as peculiaridades estilísticas de cada autor podem fomentar em níveis diferenciados o estereótipo. João Felício dos Santos, favorecido por sua desenvoltura e fluência narrativa, criou um texto irreverente, humorado, espontâneo e de linguagem acessível ao grande público o que dilatou o círculo de leitores de suas obras. Porém, a boa dose de irreverência na obra de João Felício dos Santos, esconde o seu humor amoral e o seu machismo na descrição da sua mulata que enternece os cinco sentidos masculinos, convidando-os ao pecado da luxúria com seus muxoxos, carícias e manobras sexuais. Sendo ainda, através de um estilo humorado e direto que João Felício dos Santos agride e vilipendia as suas mulatas. Ainda sobre as peculiaridades estilísticas do autor, o fato de João Felício dos Santos ter tido uma proximidade com o universo do carnaval15 por ser sido compositor de enredos para grandes escolas de samba, alimentaram no autor o teor discriminatório e machista contra a mulher negra tão reproduzido por esta festa de caráter popular, pois, “(...) o carnaval, como exercício desreprimido de nossa ideologia ratifica um preconceito violento contra a mulher de cor, disfarçado numa linguagem irônica e aliciadora” (SANT’ANNA, 1993, p. 33). E João Felício dos Santos passa a apreender, anunciar, disseminar, e conservar esta representação coletiva estereotipada e racista da mulata enquanto tipo nacional, como também os preconceitos arraigados na cultura popular carnavalesca através de suas obras literárias. Pois, no imaginário erótico masculino projetou-se a mulata como a rainha do carnaval, senhora que merece deferência e prestígio. Exaltada como símbolo de brasilidade, cuja imagem no carnaval quase sempre faz uma alusão estético-sexual ao corpo bonito, esguio e fogoso como a dança insinuante. A mulata passa a ser no carnaval a mulher almejada como objeto de posse, sempre associada à simpatia e a vulgaridade, a irresponsabilidade, malícia e amoralidade. E 455 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 assim uma posição reacionária masculina vai perpetuando um discurso discriminador sobre a mulher negra em escala social, ideológica e cultural. Aspecto também importante para compreendermos as peculiaridades estilísticas de João Felício dos Santos na descrição de Xica da Silva como a mulata bela e desejada é o conhecimento de suas influências literárias e estéticas, como também o do seu círculo intelectual e literário. E um expoente da literatura que fez parte do círculo de amizades de João Felício dos Santos e que tem características similares a ele no seu estilo literário foi o romancista Jorge Amado. Jorge Amado foi um escritor que através de seus romances construiu uma fantástica atmosfera regional, através de muito bom humor, espontaneidade e fluência descritiva. Jorge Amado foi amigo de João Felício dos Santos e ambos são influenciados pela mesma cultura de tipificação da mulher, em particular da mulher negra. Nas obras de Jorge Amado as mulatas constantemente se vêem enredadas numa trama de pretensão masculina, sempre sujeitas à voluptuosidade dos homens. Sendo assim, mulatas como Rosenda, Gabriela, Ana Mercedes16, e outras tantas idealizadas por Jorge Amado, não passam de representações estereotipadas femininas, que encarnam as fantasias sexuais do homem branco que as imaginou. Pois, para a mulata nas obras literárias de Jorge Amado (...) não é permitido ser esposa ou mãe, pois, é o símbolo da liberalidade sexual. Ela não é respeitada nem como mulher nem como indivíduo. Sua função é atrair os homens, ser explorada por eles e em troca explorá-los para obter o que quer através do sexo. A aspiração individual que brota de talentos fora desse domínio é, conseqüentemente, destruída ou denegrida no interesse do estereótipo (BROOKSHAW, 1983, p. 142). João Felício dos Santos passa a ser intensamente influenciado por um imaginário coletivo construído sobre as mulheres negras e mulatas na produção cultural literária brasileira, e os seus romances apresentam uma demasia de representações preconceituosas, idealizadas e estereotipadas sobre a afetividade e sexualidade das personagens negras e mulatas assim como nas obras literárias do seu amigo Jorge Amado, que defendia que no Brasil havia um modelo harmonioso de relações afetivo/ sexuais inter-raciais, pois, como afirmou o escritor em entrevista dada ao jornal “O Estado de São Paulo”: “Meu país é uma verdadeira democracia racial...” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p. 112). Porém, por detrás do manto da democracia racial se escondia o preconceito e a fria exclusão social que pesava sobre as mulheres negras e mulatas. Na obra de João Felício dos Santos, o romance interracial entre Chica da Silva e João Fernandes de Oliveira foi utilizado com o intuito de reafirmar que o território brasileiro é livre de preconceitos raciais, já que “o mito de Chica da 456 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 Silva tem sido utilizado para sustentar a alegação de que, no Brasil, os laços de afeto e as relações físicas entre brancos livres e mulheres de cor abrandaram a exploração inerente ao sistema escravista em face do concubinato” (FURTADO, 2003, p. 23). Sobre o momento histórico de elaboração da obra literária Xica da Silva de João Felício dos Santos, como já falamos e aqui voltamos a ressaltar as décadas de 1960 e 1970, período de inscrição do referido romance, representaram um momento histórico de intensas transformações comportamentais femininas em decorrência dos inúmeros movimentos libertários que emergiram como a luta feminista. Mas, foi a consolidação da Revolução Sexual que desarmou os velhos princípios tradicionais morais que ditavam os comportamentos relacionados à sexualidade humana como as relações interpessoais. Nesta nova perspectiva a mulher passa a desenvolver novas posturas, condutas e procedimento frente a sua sexualidade, já que as décadas de 1960 e 1970 destacaram-se pelo aparecimento da pílula anticoncepcional e outros métodos contraceptivos que permitiram à mulher um maior controle sobre a reprodução, pela reestruturação das relações entre homens e mulheres, na redução dos casamentos formalizados, na modificação de costumes que possibilitaram às mulheres vestir-se e comportar-se com maior liberdade, podendo expressar os seus desejos, falar de sexo, prazer e paixão. A revolução sexual foi um marco simbólico de transformação nos costumes e comportamentos principalmente femininos, pois, a mulher se viu liberta do cárcere do lar e casamento, como também de ser o fundamento para a solidez familiar. A mulher não mais tinha que se contentar em viver no frio grotão da solidão, ou mesmo, assim como um molusco que se esconde por debaixo de sua concha, ter que esconder a sua sexualidade e afetividade por debaixo do invólucro calcário machista e patriarcal. Entretanto, como adverte Rejane Esther Vieira (...) o que mais chama a atenção nesta época é a atuação das mulheres na sociedade, promovendo fortes mudanças. Elas avançaram na questão de emancipação econômica e sexual, além da sua presença crescente nos movimentos reivindicatórios e políticos da década. Ou seja, as mulheres tiveram o desenvolvimento de uma ação mais direta e organizada, pois, os movimentos feministas lutaram contra a ditadura e por problemas específicos das mulheres tais como: sexualidade, o controle da concepção, o aborto, o prazer sexual, a dupla jornada de trabalho, a discriminação econômica, social e política. (VIEIRA, 2012, p. 8) Na sua obra literária Xica da Silva, embora João Felício dos Santos tenha como protagonista de seu romance uma mulher negra, o autor negligencia os resultados e conquistas do movimento libertário feminista nas décadas de 1960 e 1970 que buscou “(...) 457 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 principalmente, destruir os mitos da inferioridade natural, resgatar a história das mulheres, reivindicar a condição de sujeito na investigação da própria história, além de rever, criticamente, o que os homens, até então, tinham escrito a respeito” (DUARTE, 1990, p. 70). Pois, João Felício dos Santos, contrastando com todas as mudanças de seu tempo que buscam alterar a condição feminina, ainda como herdeiro de um espólio machista advindo de uma longa tradição patriarcal, representa Xica da Silva como a mulata hipersexualizada, verdadeiro símbolo de liberdade sexual, conhecedora de uma cultura erótica que só a deixa distante do modelo da mulher frígida e desenxabida de tempos anteriores. Sobre os recursos materiais que envolvem a produção literária da obra Xica da Silva, vale ressaltar que João Felício dos Santos utilizou dos meios dispensados pela imprensa moderna que “(...) com seus alcances e limites, tem sido como recurso técnico, um fator neutro, quando se trata de impedir a difusão do estereótipo literário de mulata. Mas interfere eficientemente, quando se trata de promover e reforçar a difusão desse estereótipo” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p. 97). Em muitos de seus romances João Felício dos Santos buscou enriquecê-los com atrativos retratos, gravuras e ilustrações de autoria de artistas renomados como Carybé, Poty, Xavier, Neto. Sendo esta uma manobra eficiente do autor para tornar os seus romances vendáveis e notórios, pois, “difundindo amplamente as obras editadas e tornando-as desejáveis pela força quase irresistível da propaganda, aí está como pode a imprensa tornar vulnerável o gosto do público leitor” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p. 97). Uma outra maneira de popularizar a personagem Xica da Silva e consequentemente a obra literária de João Felício dos Santos, foi a iniciativa de transformar o romance em película por Carlos Diegues em 1976, no mesmo ano de publicação do romance. Impelido pelo movimento do Cinema Novo17, Carlos Diegues conjuntamente com João Felício dos Santos escreveram o roteiro do filme Xica da Silva que “(...) democratizou o mito e o tamanho da tela foi proporcional às dimensões que ele alcançou tanto no Brasil como no exterior” (FURTADO, 2003, p. 282). A trama literária de João Felício dos Santos é protagonizada pela escrava Xica, mulher fogosa, sempre pronta a dar prazer aos homens, a requebrar-se dengosa pelas ruas desalinhadas do arraial do Tejuco nas Minas setecentistas. Mucama do Sargento-Mor do arraial do Tejuco Xica da Silva seduz com doçura e utiliza de seus atributos sexuais para contornar situações. Com uma personalidade luxuriosa incontrolável, conquista o coração do homem mais poderoso do Distrito Diamantino o contratador João Fernandes de Oliveira, elevando-se socialmente passa a ter desejos hiperbólicos, esnobando a nobreza que antes a humilhava. Xica da Silva é um exemplo de como os autores trabalham a figura da mulher 458 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 negra na narrativa literária, a retratando de maneira estereotipada, idealizada e repleta de preconceitos, pois, no romance, Xica da Silva “(...) incorpora a fantasia da escrava sexualmente disponível. Ela é usada sexualmente por vários homens brancos (...) e parece perfeitamente apreciar; ela aspira apenas encontrar uma melhor classe de senhor/amante” (STAM apud GORDON, 2009, p. 4). Xica da Silva através de sua beleza, graça, e talentos eróticos ganha o coração do homem mais poderoso do Distrito Diamantino, o contratador João Fernandes de Oliveira, e deste recebe a alforria e poder. De João Fernandes, Xica da Silva ganha tanto um grande Palácio como um lago artificial com uma galera. Porém a Corte Portuguesa é avisada sobre irregularidades no contrato como dos gastos exorbitantes de João Fernandes e manda um fiscal, que prende o contratador. Xica da Silva termina a história pobre, humilhada e apedrejada, tendo que novamente usar o seu corpo e o sexo como meios de barganha. Segundo Nobert Elias “na sociedade civilizada, nenhum ser humano chega civilizado ao mundo e que o processo civilizador individual que ele obrigatoriamente sofre é uma função do processo civilizador social” (ELIAS, 1994, p. 15). Na obra de João Felício dos Santos percebe-se a intenção de civilizar Xica da Silva e transformá-la em uma dama burguesa, porém todos os esforços se mostram inúteis, já que na obra ela se mostra um ser inadaptável, difícil de ser polido, de se transformar em “senhora”, uma vez que o autor busca afirmar a imutabilidade da mulata para as coisas do sexo. Também é ressaltado na obra literária a falta de raciocínio e a baixa capacidade intelectual da mulata que por mais que tentasse não conseguia aprender a ler e a escrever, embora já escrevesse Roger Chartier que no século XVII e XVIII no Antigo Regime havia um domínio desigual entre homens e mulheres no que tange à leitura e à escrita, sendo que “os homens assinam mais que as mulheres” (CHARTIER, 1991, p. 117) e sendo ainda a prática da escrita considerada “inútil e perigosa para o sexo feminino” (CHARTIER, 1991, p. 117). Como um tipo literário, foi imputado à mulata traços positivos, dentre eles cita-se “bons sentimentos, senso de solidariedade humana, alegria, vigor físico, graça, beleza, senso estético, gosto pela vida, certas habilidades domésticas, ou mais exatamente culinárias, muita higiene pessoal e bastante musicalidades – afinação, ritmo e graça ao cantar e dançar” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p 33). Mas, “não menos destacados são seus defeitos: irresponsabilidade, sensualidade, amoralismo, infidelidade” (QUEIRÓZ JÚNIOR, 1975, p 33). No romance de João Felício dos Santos, Xica da Silva, como uma legítima mulata, possui quase todos os traços positivos atribuídos ao estereótipo literário da mulata, como também todos os seus aspectos negativos. 459 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 Conclusão A partir dos subsídios da análise do discurso ressaltam-se alguns traços fundamentais que perpassam a representação da mulata na obra de João Felício dos Santos, o primeiro traço é que Xica da Silva é dona de uma sensualidade irresistível, o segundo é que o autor não se cansa em ressaltar as características físicas de sua mulata, em terceiro, vale denotar que a mulata na obra de João Felício dos Santos representa a “outra” dentro do que se convencionou como núcleo estrutural familiar não servindo para o casamento, como quarto ponto enfatiza-se que Xica da Silva passa a simbolizar a mulher-objeto na sociedade que o autor busca representar, no quinto ponto, percebe-se que a protagonista da obra literária é estigmatizada, infamada socialmente e qualificada pejorativamente por sua corolação de pele e no sexto e último traço, a mulata traz uma propensão “nata” para as coisas do sexo, assim, ela é sempre infiel. Essa infidelidade de Xica da Silva fica muito clara na obra em questão, na qual Xica da Silva divaga entre o puro amor e o amor erótico e carnal. Mesmo abandonando sua antiga vida de escrava e tornando-se senhora rica e livre ao viver em concubinato com João Fernandes, ela ainda continua vista por uma ótica extremamente sexual, já que, embora Xica da Silva ame João Fernandes de Oliveira, não consegue conter o seu comportamento libertino e os seus instintos sexuais acabando por trair o contratador de diamantes com inúmeros homens. Assim assenta-se a representação de Xica da Silva no romance histórico de João Felício dos Santos ao estereótipo da mulata sexualizada que desperta o desejo carnal nos homens. Se representar é apresentar no presente algo ou alguém do passado, sendo que a imagem presentificada é marcada com o timbre da que está ausente. Está reapresentação feita no presente do ausente pode ser mediada através de uma palavra, figura, pintura, marca que traz uma imagem do não presente, distante pelo próprio tempo e espaço. Assim, como é o caso de Chica da Silva cuja memória volátil circulava entre os seus descendentes e entre os moradores da cidade de Diamantina, mas que ausente, teria sua imagem presentificada pelo memorialista Joaquim Felício dos Santos no século XIX de maneira preconceituosa e negativa como a negra rude, boçal, mandona e perdulária, já que os sentidos e as significações dadas às representações são historicamente construídas, dessa forma, a imagem de Chica da Silva criada pelo memorialista em 1868 ancora-se com o seu tempo de escrita, no qual vigorava preconceitos contra ex-cativos e mulheres negras, momento em que havia o repúdio da prática do concubinato pelos preceitos católicos e que era lançado um forte olhar de reprovação sobre 460 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 a união entre brancos e negras, como foi o caso de Chica da Silva e João Fernandes de Oliveira. As representações não nascem do vazio, mas a partir do corpo de valores presentes no momento de sua feitura, assim, enquanto representante da elite social branca, defensor de preceitos patriarcais e imbuídos de princípios tradicionais de forte teor preconceituoso, Joaquim Felício dos Santos inscreve as suas memórias e cristaliza Chica da Silva nelas negativamente. As representações na sociedade possuem a função de estabilização e de dinamização de imagens, embora o discurso de Joaquim Felício dos Santos intencionasse estabilizar Chica da Silva a figura da “negra espúria” de maus modos, as representações são partilhadas e o discurso de Joaquim Felício dos Santos sobre Chica da Silva passou a ser revisitado e atualizado, uma vez que as representações são apropriadas e ressignificadas. Apropriando-se do “relato original” sobre Chica da Silva escrito por Joaquim Felício dos Santos e dando a ele novos contornos, destaca-se o texto do seu sobrinho-neto João Felício dos Santos, que para além da evidência anedótica do parentesco, inova por trazer uma protagonista negra para o seu romance, embora que ao custo de aprisioná-la a estereótipos e imagens questionáveis. Se o estereótipo da mulata tem sua gênese no período colonial, percebemos reflexos deste estereótipo sendo expressos na ficção literária de João Felício dos Santos na contemporaneidade, visto que esta obra literária exemplifica o machismo do homem branco pela mulata ao perpetuar relações de dominação e subordinação que são heranças da sociedade escravista e que tanto a literatura afro-brasileira contemporânea18 tenta superar e desconstruir. Artigo enviado em: dd.mm.aaaa. Aprovado em: dd.mm.aaaa. 1 Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). 2 Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). 3 Data do falecimento de Chica da Silva. 4 Foi “(...) deputado, senador e presidente do Senado da República (...)” (DUARTE, 2010, p. 202). 5 “(...) publicou diversas obras voltadas para a área jurídica, como o primeiro Projeto do Código Civil Brasileiro, de 1882, e a formulação de leis e decretos” (DUARTE, 2010, p. 202). 6 “Publicou o “(...) romance Acayaca, de 1866, baseia-se em uma lenda indígena e está perfeitamente inserida no espírito indianista do período romântico” (DUARTE, 2010, p. 155). 7 São caleidoscópicas as representações de Chica da Silva “Bruxa, sedutora, heroína, rainha ou escrava” (FURTADO, 2003, p. 19). 8 Quando nos referirmos à personagem histórica utilizaremos a grafia “Chica da Silva”. E para nos referirmos à personagem literária utilizaremos a grafia “Xica da Silva”. 9 O imaginário é um reservatório/motor. Reservatório, agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo individual/grupal, 461 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo. O imaginário é uma distorção involuntário do vivido que se cristaliza como marca individual ou grupal. Diferente do imaginado – projeção irreal que poderá se tornar real - , o imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor (SILVA, 2003, p. 3). 10 Na análise do discurso “o autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa, pela linguagem, esse papel na ordem em que está inscrito, na posição em que se constitui, assumindo a responsabilidade pelo que diz” (ORLANDI, 2001, p. 76). 11 Segundo Sandra Jovchelovitch: “É, portanto, a positividade da alteridade que necessita ser discutida, pois é nesta positividade que residem os elementos fundantes de toda a vida psíquica e social” (JOVCHELOVITCH, 1988, p.69). 12 O (...) romance histórico tem como um de seus objetivos apresentar uma perspectiva nova da narrativa histórica. Esse redimensionamento é o primeiro intento de constituir uma narrativa que tem como objetivo a construção de uma versão do fato histórico, identificada com a realidade. Essa visão sobre o romance histórico é seguida por muitos outros romancistas que através da liberdade de criação, escrevem várias narrativas que relativizam a concepção histórica no ocidente moderno. Esse redimensionamento originou uma literatura que revisou o passado histórico no seu devido espaço e tempo, objetivando reinterpretá-lo. Essa forma de tomada de consciência está relacionada ao reconhecimento de que a história se faz como discurso, em que a capacidade de construção de imagens através da narração é um importante mecanismo de construção da história, e, conseqüentemente, da construção das identidades (LACERDA, 2006, p. 38). 13 João Felício dos Santos “é autor de uma obra vasta na qual se destacam romances, contos, poesias, literatura infantil, livros técnicos, argumentos e roteiros cinematográficos e o desenvolvimento de enredos carnavalescos” (DUARTE, 2010, p. 203). 14 Entre os muitos títulos que publicou, destacam-se: João Abade, de 1958; Ganga Zumba, de 1962; Carlota Joaquina, a rainha devassa, de 1968; Ataíde, azul e vermelho, de 1969; Xica da Silva, de 1976; A guerrilheira, o romance da vida de Anita Garibaldi, de 1974; Insurreição de Queimado, s/d; Quilombo, de 1984; Cristo de Lama, s/d; entre outro. (DUARTE, 2010, p. 203). 15 Vale ressaltar que não estamos lançando preconceitos contra o carnaval ou contra as sambistas das grandes escolas. Mas, apenas argumentando que a relação do autor com o carnaval pode ter aumentado o machismo do literário, o fazendo reforçar estereótipos raciais que se manifestam em suas obras literárias, em decorrência da festa popular do carnaval comumente através de sátiras, músicas e imagens disseminar representações preconceituosas principalmente sobre a mulher negra. 16 Rosenda da obra Jubiabá (1997), Gabriela do romance Gabriela, Cravo e Canela (1969) e Ana Mercedes da obra literária Tenda dos Milagres, 1970. 17 O movimento do Cinema Novo do qual Cacá Diegues participava tinha como interesses o povo brasileiro e sua história, mas reivindicava o direito da liberdade de expressão para contá-la. Para esse diretor, era importante compreender e resgatar a tradição afro-americana na nossa sociedade contemporânea e, buscando concretizar esse objetivo, transformou em película a história de dois ícones da presença africana no Brasil: Chica da Silva e Zumbi dos Palmares. Essa releitura pretendia oferecer uma visão crítica ao espectador, sobretudo no tocante às relações entre os portugueses e a elite brasileira de um lado e os escravos e marginalizados de outro (FURTADO, 2003, p. 282-283). 18 “A literatura negro-brasileira vem exercitando, cada vez mais, o campo das polaridades que põem a nu o preconceito, desde sua conotação mais sutil até a mais agressiva” (SILVA, 2010, p. 109). As polaridades têm sido recursos empregados na literatura negro-brasileira para detectar os meandros camaleônicos da sociedade no quesito raça. Nas relações senhor x escravizado, branco x negro, rico x pobre, o escritor encontra material amplo de trabalho para desconstruir estereótipos e promover o diálogo, mesmo que este seja áspero (SILVA, 2010, p. 109). Referências AMADO, Jorge. Jubiabá. Rio de Janeiro: Record, 1997. _______________. Tenda dos Milagres. São Paulo: Martins, 1970. _______________. Gabriela, Cravo e Canela. São Paulo. Liv. Martins Ed. 1969. 462 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983. CALLADO, Antônio. O tesouro de Chica da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Imagens de “mães pretas”: representações da maternidade e da escravidão na escrita de José de Alencar. Unimontes Científica. Montes Claros, v. 8, n. 2, p. 13 – 30, jul./dez. 2006. CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). 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