negras Forras

06-04-2017 08:25
AS NEGRAS FORRAS256 
 
  Para se compreender quem foi Chica da Silva, torna-se necessário inseri-la na sociedade do seu tempo, no universo social em que viviam outras negras e mulatas forras. Se muitas delas mergulharam na desclassificação e eram consideradas focos de tensão social, várias conseguiram acumular bens, ascender socialmente e diminuir o peso da escravidão e da cor, pelo menos para sua descendência. Várias destas deixaram registrados seus testamentos e inventários e, por meio deles, é possível conhecer a forma como viviam, os patrimônios que acumularam e como se inseriram na sociedade da época.  
 Antonil, o primeiro cronista do rush minerador, anotou que a descoberta do ouro nas Minas provocou a desorganização da sociedade e por sua causa se cometeram os maiores sacrilégios, entre eles, os gastos exorbitantes e supérfluos feitos pelos mineradores, “comprando (por exemplo) um negro trombeteiro por mil cruzados, e uma mulata de mau trato por dobrado preço, para multiplicar com ela contínuos e escandalosos pecados.” Além do que, o muito ouro que se arrecadava ficava imobilizado “em cordões, arrecadas e outros brincos, dos quais se vêem hoje carregadas as mulatas de mau viver e as negras, muito mais que as senhoras.”257 
 No Distrito Diamantino, a situação não era diferente, pois o acesso aos símbolos exteriores de dignificação, que eram prerrogativas das senhoras brancas, pelas mulatas e negras forras, provocava a fluidez das hierarquias sociais, tornando-as indistintas. Com isto escandalizava-se o Governador das Minas, o Conde das Galvêas que, em 1733, procurou reprimir  
 
“os pecados públicos que com tanta soltura correm desenfreadamente no arraial do T[e]juco, pelo grande número de mulheres desonestas que habitam no mesmo arraial com vida tão dissoluta e escandalosa que, não se contentando de andarem com cadeiras e serpentinas acompanhadas de 
                                                          
 256Parte deste trabalho foi apresentado no Colóquio Internacional “Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa”, promovido pela USP-SP, entre 6 a 11 de setembro de 1999. Será publicado em livro comemorativo do evento.(No prelo). 257ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil... p.194-195 
140 
 
 
escravos, se atrevem irreverentes a entrar na casa de Deus com vestidos ricos e pomposos e totalmente alheios e impróprios de suas condições.”258 
 
Como Chica, nas Minas no século XVIII, eram muitas as negras e mulatas que estabeleciam relacionamentos ilícitos com o sexo oposto. Essa prática era resultante, entre outros motivos, da conformação do povoamento, onde os homens compunham a maioria absoluta da população, fruto das características inerentes à atividade mineradora: seu caráter urbano, efêmero, itinerante e de aventura, etc. No caso da região diamantina, de povoamento recente, esta desproporção era acentuada. Ao examinar o censo de 1738, relativo à Comarca do Serro do Frio como um todo, da qual o Distrito Diamantino fazia parte, depreende-se que do total de 9.681 habitantes 83,5% eram homens e 16,5% eram mulheres. Entre os escravos, o sexo feminino representava apenas 3,1%, pois eram obtidos, prioritariamente, para o trabalho da mineração, mais afeito aos homens.259  Já entre os forros, as proporções se invertiam, e as mulheres passavam a ser majoritárias. No mesmo censo, do total de 387 forros, elas constituíam 63%, contra 37% de homens, indicativo de que eram as que mais se beneficiavam da alforria, inclusive acumulando bens. Uma vez livres, essas mulheres oscilavam entre a desclassificação social e a inserção, ainda que incompleta, no universo antes restrito aos brancos livres da Capitania.  
 Examinemos mais de perto algumas destas negras e mulatas forras que, entre 1751 e 1815, viveram morreram no Arraial do Tejuco e na Vila do Príncipe e ali deixaram seus testamentos e inventários.260 Tratam-se de vinte e três mulheres que fornecem valiosas informações quantitativas e qualitativas por meio das quais é possível reconstituir o universo social das alforriadas no Distrito Diamantino no período colonial. A trajetória de vida destas mulheres confunde-se com a história da região como nos informa o Ouvidor de Vila Rica, Caetano da Costa Matoso. Na primeira metade do século XVIII, ele reuniu vários documentos e fez alguns apontamentos acerca da história da Capitania de Minas até aquela época. Sobre a região dos diamantes descreveu a fundação da vila, o descobrimento dos 
                                                          
 258BANDO do governador de 2 de dezembro de 1933, op. cit., nota 8, 1998, p. 1026. 259POPULAÇÃO de Minas Gerais, op. cit., nota 7, p.465-498. 
141 
 
 
diamantes, as oscilações na administração e nas formas de concessão das lavras, além das técnicas de mineração das lavras. 
  Segundo o Ouvidor, a história da região desde os seus primórdios esteve ligada às negras e mulatas forras que, poderosas, submetiam os homens brancos a seus desejos.  Descreveu que a fundação da Vila do Príncipe se dera graças aos caprichos de uma delas. Segundo sua descrição, em face da ‘melhor’ localização do pelourinho, o juiz Antônio Quaresma mudou o povoado para um novo sítio, onde está até hoje, distante do arraial nove léguas, tudo “a instâncias de uma sua amiga negra, por nome Jacinta, existente ainda hoje, que vivia naquele sítio com lavras suas.”261 
 Tratava-se de Jacinta de Siqueira, umas das primeiras moradoras da região, que viveu na Vila do Príncipe e ali morreu em abril de 1751.262 Seu testamento revelou a ascensão social que obtivera, graças ao acesso às lavras e ao concubinato com alguns homens brancos. Declarou que nunca fora casada, mas tinha quatro filhas: Bernarda, Quitéria, Rita e Josefa, todas elas legalmente casadas com homens brancos. Pelas filhas realizara-se sua principal conquista, não apenas financeira, mas social, pois pelo casamento puderam se inserir na sociedade hierárquica da época e, assim, apagar o estigma da cor e da escravidão de seus antepassados. Para contribuir no esquecimento de suas origens e de suas filhas, numa sociedade em que a condição dos antepassados dizia mais sobre um indivíduo, do que sua trajetória de vida, Jacinta omitiu suas origens no testamento, tratando de nomear, detalhadamente, apenas sua descendência e os laços tecidos com a sociedade branca através de seus casamentos.  
 Em seu testamento, enumerou vários bens, tanto móveis quanto imóveis, além de escravos que a inseriam na elite proprietária da vila. Para afirmar sua religiosidade, deixou várias esmolas em ouro, entre elas, trinta e quatro oitavas de ouro para a Irmandade do Rosário, com isto demonstrava e tornava público seu poder, pois só podia ser caridoso quem 
                                                                                                                                                                               260A lista completa das testadoras está, ao final, na seção Fontes, p. 100-101.  261MATOSO, Caetano Costa. Códice Costa Matoso. História da Vila do Príncipe e do modo de lavar os diamantes e de extrair o cascalho. Doc. 120. 
142 
 
 
tivesse bens para dispor. Cumprindo os ritos de passagem para o além, determinou inúmeras esmolas para celebração de missas, indispensáveis para a ascensão das almas para o paraíso. Para si própria, além da missa de corpo presente, a ser rezada na Igreja Matriz da Vila, onde deveria ser sepultada, com esmola para a cera costumada, encomendou outras sessenta e cinco, sendo  quinze em devoção de Santo Antônio e vinte para outras almas do purgatório. Para a alma de Antônio Quaresma, deixou dez missas e para Vitória Pereira, sua filha já falecida, outras dez, todas com a concessão das esmolas costumeiras. A preocupação com Antônio Quaresma confirmava a relação de ambos em vida, como informou o Ouvidor Costa Matoso, assim, os laços tecidos em vida eram reafirmados na hora da morte, lembrando-se a enferma de contribuir para que a alma de seus entes queridos buscassem a salvação.  
 Na hora da morte, Jacinta procurava reafirmar a posição que conquistara em vida e torná-la pública durante seu enterro. Seu corpo deveria ser amortalhado com o hábito de São Francisco, enterrado na Igreja Matriz da Vila do Príncipe, acompanhado da Irmandade das Almas e Nossa Senhora do Rosário de que era irmã, sendo celebrada uma missa de corpo presente. A filiação à Irmandade das Almas, que congregava nos arraiais mineiros as elites locais na primeira metade do século, o hábito com que ia amortalhada e o enterro na Igreja Matriz, com toda a pompa, isto é, com os sinais exteriores de honra mostravam que ela conseguira, em vida, retirar-se do mundo da desclassificação que a cor e a condição escrava lhe impingiram inicialmente. Apesar de hierárquico, o mundo colonial abria brechas por meio do qual os indivíduos, inclusive as mulheres, podiam melhorar as condições adversas em que nasceram. Era o novo mundo, que atraía levas de aventureiros e desgarrados do mundo metropolitano. 
 Jacinta determinou que seus bens fossem repartidos entre as quatro filhas igualmente, sem proteção a qualquer delas. Demonstrou ser uma mãe e avó zelosa, pois, no ato do casamento, dotara cada uma das filhas com três escravos, além disto, ainda em vida, dera a cada uma das netas dois mulatinhos e para sua bisneta um. Sempre presente, quando sua filha Bernarda teve que penhorar um de seus escravos, arrematou-o e presenteou-o de volta à filha. 
                                                                                                                                                                               262SERRO. Arquivo do Fórum. Livro de Registros de Testamentos de 1751. Testamento de Jacinta de Siqueira. f. 33v
143 
 
 
Desta forma, contribuía para que sua descendência feminina pudesse dispor de bens e, assim, posicionar-se melhor no mercado de casamentos da vila, principal mecanismo feminino de promoção social. 
 Quanto aos bens imóveis, era proprietária de uma fazenda, uma rocinha e da casa onde morava, além de dedicar-se à mineração de ouro e diamantes, tendo vários escravos matriculados na Intendência. Possuía vinte e sete escravos, plantel significativo para a sociedade mineradora da época, além dos que já tinha dado às filhas e netas, incluindo-se outros dezessete dados à filha Bernarda, dez destes já mortos, mas que deveriam ser computados na partilha. 
 Para se ter ideia das dimensões dos bens de Jacinta, torna-se necessário estabelecer comparações com outros proprietários da região. A partir da segunda metade do século XVIII, período de maior expansão da economia diamantífera, o que consequentemente possibilitava a formação de maiores fortunas, para efeito de comparação, foram levantados sessenta e seis inventários, entre 1787 e 1822, sendo quarenta e dois de homens. Quanto aos bens imóveis apenas seis, correspondendo a 9,1% dos inventariantes registraram a posse de três propriedades. A imensa maioria, 43,9% possuía apenas um imóvel, geralmente a casa onde residia, e 25,8% não possuía imóvel algum.263 
 Quanto aos plantéis escravistas, 16,7% dos inventariados não possuía escravos e 33,3% possuía até três. Pouquíssimos proprietários da região acumularam o número de vinte e sete escravos como foi o caso de Jacinta, e representaram apenas 6,1% do total. Seu testamento nos permite acompanhar o movimento de seu plantel, pois pode-se computar os que foram dados às filhas e netas; neste caso, o número sobe para sessenta e três escravos, índice alcançado na segunda metade do século XVIII apenas por José da Silva de Oliveira, que ocupou importantes cargos na administração diamantina e tornou-se mais conhecido por ter sido pai do padre Rolim.264 
                                                                                                                                                                               38v. 263 FURTADO, Júnia Ferreira, op. cit., nota 28, p. 51. 264 Ibid., p. 52. 
144 
 
 
 Mas o que chama a atenção eram os móveis que compunham a casa de Jacinta e que denotavam um ambiente de luxo, ao contrário da precariedade da vida que caracterizava as habitações da época. Possuía um catre de jacarandá, torneado com cortinado e uma colcha de seda onde podia dormir, confortavelmente, entre lençóis e fronhas de linho. Para expressar sua devoção, possuía dois oratórios e várias imagens de santos com coroas de ouro e prata. Sua mesa era posta com garfos e colheres de prata, louças da índia, toalhas de mesa com guardanapos de renda e linho, onde podia receber seus convivas, refinando-lhes o paladar com o fino chocolate derretido em sua própria chocolateira, acompanhados de pão-de-ló, feitos em bacia para este fim. O licor e os sucos eram servidos em garrafas e copos de cristal. A negra Jacinta, que afirmara em seu testamento ser analfabeta, reuniu entre as paredes de sua casa todos os objetos que permitiam sua inserção na cultura branca portuguesa, assumindo seus hábitos e portando-se como uma Dona, a partir do domínio sobre a cultura material, que lhe distanciava, cada vez mais, do mundo da senzala onde nascera. 
 Ela não estava sozinha, pode-se perceber que as vinte e três mulheres de cor estudadas morreram em situação melhor que seus pais e deixaram melhores possibilidades para sua descendência. Entre elas, as que acumularam o melhor patrimônio e se inseriram na sociedade local, foram aquelas que puderam usufruir da convivência com algum homem branco importante, tal qual Chica da Silva. As trajetórias de Chica, de Jacinta Siqueira e de Maria de Souza da Encarnação muito se assemelharam.  
 Maria da Encarnação,265 natural da Costa da Mina, foi trazida como escrava para a Bahia, onde foi batizada. Foi vendida, no Serro do Frio, para Pedro Mendes, mas amasiou-se com Domingos Alves Maciel, que a tendo em seu poder, comprou-a por cento e cinco oitavas de ouro e a libertou. Declarou que nunca se casara nem tivera herdeiros, deixando sua alma por herdeira, garantindo os ritos necessários ao perdão de seus pecados e elevação de sua alma. A casa em que morava possuía, inclusive, um oratório particular, luxo encontrado em pouquíssimas casas do arraial. Além desta, possuía mais outras três alugadas, que lhe proporcionavam boa renda mensal. Estas últimas deixou à Ordem da Terra Santa de que era 
                                                          
 265DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 350, f. 34-35. 
145 
 
 
irmã. Esta Irmandade tinha como objetivo libertar os lugares santos das mãos dos infiéis e fazer parte desta agremiação era importante mecanismo de exteriorização da boa situação social do irmão. 
 Declarou possuir seis escravos, sendo que as mulheres garantiam renda à proprietária lavando roupa no arraial. Na ausência de descendentes, apegou-se a uma delas, crioula que lhe nascera em casa, filha de uma de suas escravas, e procurou proporcionar-lhe uma vida melhor, arranjando-lhe o casamento com José da Silva, crioulo forro. Para tanto, concedeu-lhe um dote, ainda não pago, o que deveria então ser acertado pelos testamenteiros, e também lhe prometera a compra de um crioulinho, destinando, no testamento, meia libra de ouro para cumprimento da promessa, por último, deixou ao cabeça do casal a casa do oratório, onde deveriam passar a morar. Maria da Encarnação, como Chica, desfrutou da promoção social que alcançara com o concubinato com homem branco e, na ausência de herdeiros diretos, procurou beneficiar uma criança à qual se apegara. 
 Quando se passa a examinar os testamentos das vinte e três mulheres de cor mortas no Distrito entre 1751 e 1815, são ressaltadas várias semelhanças e ligeiras diferenças e especificidades, sendo que algumas delas parecem sugerir características de cada época.266 Pode-se perceber, por exemplo, o alto índice de testadoras sem filhos, representando 69,5% do total. Isto sugere como a motivação destas mulheres a realizarem seus testamentos a falta de descendentes diretos, mais que o montante do seu patrimônio, exigindo delas deixarem seus desejos por escrito, já que suas heranças não teria o destino mais comum – a divisão entre os filhos, mas corria o risco de engrossar os cofres do Juízo do Órfãos e Ausentes, destino certo dos bens sem herdeiros legítimos. Pode-se inferir daí que existiram outras negras forras com patrimônio significativo, mas que não se sentiram estimuladas a redigirem testamentos. Examinemos o Quadro I, abaixo: 
 
 
 
 
                                                          
 266 A lista completa das testadoras estão em Fontes,  p.100-101.  
146 
 
 
 
 
 
 
 
     QUADRO I Número de filhos entre as testadoras  
 
CONDIÇÃO NÚMERO % Sem filhos* 16 69,5 Com filhos naturais 6 26,0 Com filhos legítimos 1 4,5 Total 23 100,0 Fonte:. BAT ; AEAD. Testamentos de mulheres forras Lista completa em Fontes, p.100-101. * Aqui foi computada Ana da Glória dos Santos267 que teve seis filhos legítimos, mas já estavam todos mortos na época do testamento e por isto não tinha herdeiros naturais 
  
 
 Duas testadoras, Maria Martins Castanheira268 e Bernardina Maria da Conceição,269 apesar de não terem filhos, eram casadas e, por isto, os maridos ainda vivos eram seus herdeiros legítimos. Porém, elas tiveram motivação idêntica àquelas que não tinham descendência, pois os companheiros as haviam abandonado há muito tempo e por isto desejavam dar a seus bens, ou a parte deles, outro destino. Bernardina Maria, cabra, era casada com o pardo forro, Gonçalo, “que se ausentou, depois de eu cair na sua indignação” e Maria Martins Castanheira, negra de Benguella, com o negro Francisco Pereira Lima, que gastou os bens do casal e “sempre esteve ausente.” Ambas se preocuparam em garantir que parte de seus bens fossem dirigidos à salvação de suas almas, pois a lei obrigava que seus maridos fossem seus herdeiros, apesar de distantes. 
 Durante o século XVIII, era permitido que um terço dos bens ( a Terça ) fosse disposto como cada um aprouvesse, inclusive nomeando a própria alma por herdeira. Isto significava que os bens vinculados desta forma teriam que ser utilizados para pagar os 
                                                          
 267 DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, Maço 4. 268 DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26,. Caixa 521, f. 387-388. 269Ibid., Caixa 350, f. 38v-39. 
147 
 
 
sufrágios necessários ao perdão da alma, condição para alcançar o paraíso, sendo o principal mecanismo a realização de missas e a caridade. Quatro delas instituíram a alma por herdeira e duas destinaram a Terça à Irmandade da Terra Santa. Antônia de Oliveira Silva, parda sem filhos, nascida em Salvador na Bahia, determinou que sua mãe ainda viva fosse sua herdeira, reservando a Terça para sua alma.270 Esta seria gasta de vários modos: deveriam ser celebradas quantas missas de corpo presente fossem possíveis, além de outras duzentas nos Conventos do Carmo e São Francisco da Bahia; além de trinta pelas almas do purgatório, a mesma quantidade pelas almas dos pais já falecidos e uma para um pobre defunto.  
 Nenhum dos seis testamentos de negras forras do início do século XIX que não tinham herdeiros naturais indicou a alma por herdeira, denotando uma mudança de comportamento, apesar de ainda demonstrarem uma preocupação com os ritos fúnebres e com a garantia da celebração de missa de corpo presente e de algumas missas pela alma. Os herdeiros escolhidos parecem ser pessoas importantes no arraial como o Padre Luis dos Reis Silva, o Sr. Capitão João Alves Ferreira Prado, ou, ainda, o Sr. Jacinto Luis Filgueiras. 
 Entre as sete que tinham descendência assegurada, legítima ou não, percebe-se que a escritura do testamento espelhava a mesma preocupação de também garantir que parte de seus bens tivesse destino diferente da natural divisão entre os herdeiros. No testamento de Jacinta de Siqueira, além dos sufrágios para sua alma e a dos entes queridos, denotava-se o intento de que a partilha entre as filhas fosse igualitária, ao registrar cuidadosamente o que cada uma ganhara em vida, ressaltando que uma delas Bernarda da Conceição recebera mais que as outras, o que deveria ser acertado no inventário.271 Gertrudes Angélica da Rocha, crioula, casada, pretendia que a sua Terça fosse destinada a uma “sua cria”, Clara Maria Angélica de Jesus, isto é, uma filha de alguma escrava a qual se apegara e criara.272 Determinava, também, que dois de seus escravos fossem coartados273 depois de prestar pelo espaço de seis meses a um ano de serviço a seus filhos. Josefa Dias, apesar de ter duas filhas 
                                                          
 270DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26,. Caixa 350, f. 162v-163. 271SERRO. Arquivo do Fórum. Livro de Registros de Testamentos de 1751. F. 33v-38v. 272DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521,.f. 70-70v. 273Coartados: escravos em processo de alforria. Geralmente definia-se um período, durante o qual o escravo poderia constituir um pecúlio a ser gasto na compra de sua liberdade. 
148 
 
 
ainda escravas, determinou que sua Terça fosse destinada à salvação da sua alma.274 Já Josefa da Costa da Visitação queria garantir que seus bens não fossem parar no cofre dos Ausentos, pois seus dois filhos naturais moravam em Pitangui e deles não tinha notícia.275 
 Quando se examina os índices de casamentos, percebe-se interessantes oscilações. Treze delas eram solteiras, o que significava 56,5% do total e dez eram casadas (43,5%), o que sugere uma ligeira superioridade para as solteiras em relação às casadas. Considerando o pequeno número de testadoras, poderia se inferir que os dados seriam pouco significativos para expressar uma sociedade onde se sabe que, entre as negras forras, salientava-se o alto grau de mancebia e bastardia. Porém, se analisarmos mais cuidadosamente a situação do grupo de casadas (Quadro II e III), outras tendências podem ser observadas. 
 Percebe-se, pelo Quadro II, que a maioria absoluta, cerca de 80% dos casamentos foram entre testadoras falecidas a partir da última dezena do século XVIII e o primeiro quartel do XIX. Ora, desta forma, relativiza-se a proximidade entre o número de casadas e solteiras e observa-se para o grupo das forras as mesmas tendências do restante da sociedade, ou seja, à medida que esta ia se consolidando, tendia a crescer o número de casamentos legítimos e declinar as relações extraconjugais. Tal fato era resultante do processo de moralização orquestrado pela Igreja e pelo Estado português durante todo o século XVIII.   
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                          
 274DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 76v-77. Interessante registrar que elas eram escravas de Antônio Fernandes de Oliveira, um dos filhos de Chica da Silva. 275Ibid., f. 32v. 
149 
 
 
 
 
 
QUADRO II Período da morte das testadoras casadas 
PERÍODO NÚMERO % 1750-1790 2 20,0 1791-1815 8 80,0 TOTAL 10 100,0 Fonte: BAT ; AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101. 
 
 O Quadro III sugere uma situação pouco estável para o grupo de casadas, onde significativa maioria (70%) era constituída de viúvas e abandonadas, situação tão instável e precária quanto a do grupo das solteiras. Sintoma desta instabilidade pode ser sentida na afirmação de Maria Vaz da Conceição, da Costa da Mina, viúva de Antônio da Costa, ambos negros, de que, além dela mesma ter comprado sua alforria, todos os bens que possuía foram adquiridos antes do casamento, “de sua agência.”276 O casamento não lhe acrescentara patrimônio, nem status, fora mais um amparo na velhice. Maria Vaz parecia ser mais grata ao ex-senhor do que ao marido, não lhe deixando nem uma missa para salvação de sua alma. No entanto, instituiu como um de seus herdeiros o filho pardo de seu antigo proprietário. O restante do patrimônio foi utilizado para garantir sua própria salvação, por meio da celebração das missas e da caridade. Determinou que sua missa de corpo presente fosse acompanhada de oito sacerdotes, com esmola de cera de meia libra para cada um, e mais outras sessenta para a salvação de sua alma; deixou, também, uma doação para o Hospital de Caridade e outra para a Irmandade das Mercês. Além de uma morada de casas e três escravos, possuía sessenta e três oitavas de ouro lavrado, o que demonstrava que seus negros eram utilizados na mineração. 
 
 
 
 
 
 
                                                          
 276DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26,  Caixa 350, f. 49v-50. 
150 
 
 
 
 
 
             QUADRO III Condição das testadoras casadas CONDIÇÃO NÚMERO % Viúva 5 50,0 Abandonada 2 20,0 Marido presente 3 30,0 TOTAL 10 100,0 Fonte: BAT ; AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101.     O casamento das negras e mulatas forras não foi condição necessária ao acúmulo de bens ou melhor forma de promoção social, pois as cinco mulheres das quais se pôde saber informações dos maridos eram casadas com homens de cor. Três eram negros e dois pardos; com isto, percebe-se que a legitimação das relações de convívio se realizavam entre iguais. Mas, certamente, os casamentos conferiam inserção social, pois a Igreja procurava moralizar e regrar a sociedade pelos laços sagrados do casamento cristão. Josefa da Costa da Visitação,277 Ana da Glória dos Santos278 e Maria Vaz da Conceição,279 todas casadas, fizeram questão de afirmar que elas mesmas compraram suas liberdades. Outras que os bens eram resultado de “sua própria agência e trabalho,” em nada contribuindo o marido. A análise dos inventários da negra, mina, Rita Vieira de Mattos280 e seu marido Antônio Alves de Guimarães,281 também oriundo da Costa da mina revelam como o patrimônio dessas mulheres não eram originários do casamento, mas do seu próprio trabalho. Antônio morreu em 1812 e deixou um monte mor avaliado em cerca de 412$000 réis, seus bens mais valiosos eram três escravos que somavam 320$000 réis e uma casa em local não especificado avaliada em 80$000. O restante compunha-se basicamente de umas poucas roupas de seu uso, de pouco valor, como um par de calças, um jaleco e uma capa, além de seis tamboretes, uma mesa, um tacho de cobre e uma trempe de ferro.  Rita morreu em 1815 e deixou um monte mor com montante muito 
                                                          
 277Ibid., f. 32v. 278Ibid., Caixa 521.f. 379v-380. 279Ibid., f. 49v-50. 280DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 65. 281Ibid., maço 5. 
151 
 
 
próximo, no total de 384$412 réis. À primeira vista ela parece ter tido mais dificuldades em reunir patrimônio, mas examinemos mais nitidamente. Rita também possuía três escravos, saliente-se que apenas uma, a escrava Felizarda era herdada do marido, os outros dois ela adquiriu sozinha. No entanto, enquanto os três escravos de Antônio foram avaliados em 320$000 réis, os de Rita valeram apenas 261$600 réis. A própria Felizarda foi avaliada em 120$000 réis no inventário de Antônio e em 96$000 réis no de Rita. Os outros escravos de Antônio eram já bem velhos, 40 e 50 anos respectivamente, e devem ter morrido ou sido vendidos para pagar seus desejos póstumos. Como Rita morreu depois do marido, a desvalorização de seu plantel pode ser atribuída, entre outros fatores, à idade mais avançada de seus escravos. 
 No inventário de Antônio não foi especificado o lugar da casa, portanto, não se sabe se seria a mesma casa da Rua do Rosário, que constava do inventário de Rita. Quanto aos demais bens, os de Rita eram mais numerosos e valiosos. Só uma capa de droguete escarlate, abanada de cetim e uma saia também de droguete rei dourada foram avaliadas em 18$200 réis. Possuía brincos de ouro com pedras, um anel de prata, enxoval e trastes da casa, como fronhas, pratos, catre, etc. Desta forma, podia se vestir com luxo nas ocasiões especiais e ter em casa os artefatos para seu conforto. Com exceção da casa, da qual nada se pode inferir, e de uma escrava não há uma relação direta entre os bens deixados por Rita e os de Antônio, a não ser a presença em ambos de uma trempe de ferro e uma caixa grande de guardar roupa, o que confirma a constante afirmação destas mulheres de que “viviam de sua agência.”  
 Em relação à origem das testadoras, observou-se um predomínio das africanas (65,2%) em relação às nascidas no Brasil, o que revelou que a possibilidade de alforria não estava mais acessível a essas últimas do que às primeiras. A maioria das africanas foi convertida ao catolicismo no Brasil, como Rosa Fernandes282 que foi batizada em Paracatu e Ana da Glória dos Santos283 que, tendo sido trazida criança, foi batizada na Bahia e libertouse, também, em Paracatu. Percebe-se, nos tempos verbais utilizados por Ana da Glória, a maneira como ela mesma interpretou sua trajetória de vida. Para contar a vinda para o Brasil e 
                                                          
 282DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 102-102v. 
152 
 
 
a conversão ao catolicismo, utilizou os verbos na forma passiva, no entanto ao rememorar sua alforria empregou o verbo na voz ativa, demonstrando, a partir daí, a tomada de controle sobre sua vida e destino.  
 A cor das testadoras revelou a mesma tendência, havendo uma predominância das negras (78,3%) em relação às pardas. Saliente-se que o termo crioula nos documentos coloniais indicava a filha brasileira de negros africanos e parda a descendência de brancos com negros. A alforria esteve, portanto, acessível às negras e pardas, não tendo a mestiçagem contribuído significativamente para torná-la mais fácil. A forma de alforria foi variada, tendo predominado o acúmulo de pecúlio pela escrava, comprando, ela própria, sua liberdade. Diferenciam-se Maria de Souza da Encarnação284 e Inês Fernandes Neves.285. A primeira foi alforriada por seu senhor, que a adquiriu de outro proprietário com o intuito de com ela se amasiar; a segunda foi libertada “em tenra idade”, pelos proprietários de seus pais.  
 
QUADRO IV Origem das testadoras ORIGEM NÚMERO % África 15 65,2  Costa da Mina 11   Benguella 1   Congo 1   Luanda 1  Brasil 8 34,8  Pernambuco 1   Minas 5   Bahia 1   Rio de Janeiro 1  TOTAL 23 100,0 Fonte: BAT e AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101. 
 
 
                                                                                                                                                                               283 Ibid., f. 379v-380. 284DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 350, f. 34-35. 285 DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 26. 
153 
 
 
 Examinemos o tipo e tamanho de patrimônio acumulado por essas mulheres em vida. Divide-se em cinco grandes tipos: escravos, ouro lavrado, joias, bens imóveis e trastes da casa e de uso, incluindo imagens e oratórios. Note-se que os bens mais valiosos estavam entre os três primeiros (escravos, ouro e joias), pois numa sociedade em constante deslocamento, o ouro, as pedras preciosas e os escravos essenciais para extraí-los valiam muito mais do que casas, que podiam ser construídas em qualquer local. Ana da Encarnação Amorim286 possuía um escravo Manoel Mina no valor de 160$000 réis, o moleque de Maria de Azevedo287 valia 120$000 réis e seu outro escravo, Francisco, congo, foi avaliado em 177$600 réis. Já a casa de morada de Inês Fernandes Neves288 custava 28$800 réis, o mesmo valor de três pares de botão de ouro, dois cordões, uma gargantilha, um laço e uma imagem, também constantes de seu inventário. 
 Examinemos, primeiramente, o plantel de escravos das testadoras. Antes de mais nada, é preciso anotar que todas elas se tornaram proprietárias de escravos assim que alcançaram a liberdade. Nada mais esperado, numa sociedade hierárquica e que desprezava o trabalho manual, onde viver do trabalho das próprias mãos era situação indigna e que devia ser prontamente evitada para apagar a origem escrava. Possuir escravos era também condição de sobrevivência e acúmulo de patrimônio. As escravas de Maria de Souza da Encarnação289 lavavam roupa para fora; alguns dos de Jacinta da Siqueira290 lavravam ouro. Entre os trastes de Inês Fernandes Neves291, encontrava-se uma trombeta e nos de Rita Vieira de Matos estava um martelo de carpinteiro e um ferro de engomar, provavelmente, servindo para o ofício de um de seus negros. Ana da Glória Santos292 tinha jornais a receber de um escravo alugado a Florência da Cunha havia cerca de um ano e três meses. 
 
 
                                                          
 286DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 4. 287Ibid., maço 58. 288Ibid., maço 26. 289DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 350, f. 34-35.  290SERRO. Arquivo do Fórum, op. cit., nota 273, f. .33v - 38v. 291DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 26. 
154 
 
 
 
 
QUADRO V Cor das testadoras COR NÚMERO % Negra 18 78,3 Parda/Cabra  5 21,7 TOTAL 23 100,0 Fonte: - BAT e AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101. 
 
 Hoje pode nos parecer inconcebível o acúmulo de escravos entre estas mulheres, que tão duramente haviam vivido a escravidão e, sendo a maioria africana, guardavam a memória de sua vida livre na África, o horror nos navios tumbeiros, a separação das famílias e a venda como peças nos portos brasileiros. No entanto, uma vez inseridas nesta sociedade, sem possibilidade de retorno, a única alternativa acessível para diminuírem a desclassificação social que lhes era originária, e as estigmatizava frente à sociedade local, era imitá-la e alcançar os mecanismos de promoção social. O primeiro deles era a compra de um escravo. Destaca-se entre elas, o caso de Josefa Dias.293 negra da Costa da mina, que, tendo ainda duas filhas cativas, utilizou seu pecúlio para comprar um escravo, ao invés de libertar pelo menos uma delas. Já, pelo testamento de Inês Fernandes Neves294, pode-se perceber que, entre várias gerações de forros, perpetuava-se o hábito de possuir escravos. Ignês, crioula, proprietária de quatro escravos, registrou em seu testamento que seus pais, João Frutuoso e Joana Fernandes Neves, ambos negros minas, foram, por sua, vez escravos de um pardo e de sua esposa, também negra mina. 
 O Quadro VI nos permite perceber que o acúmulo de escravos entre as mulheres forras seguia o mesmo padrão de pequenos plantéis observado para o conjunto da população livre. A maioria (63,6%) possuía até três escravos. Entre os proprietários livres da segunda metade do século XVIII, observa-se o índice de 33,3% para plantéis de até três escravos. 
                                                                                                                                                                               292DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 4. 293DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, f. 76v –79. 
155 
 
 
Pode-se pensar que esta desproporção indicaria um maior grau de pobreza entre as negras forras, porém quando adiciona-se os proprietários sem escravo algum, o quadro modifica-se. Enquanto apenas uma testadora, representando 4,6% do total, não possuía escravos, entre o conjunto dos proprietários livres eles representaram 16,7%, revelando uma maior facilidade destas mulheres em acumular um pecúlio, ainda que pequeno. Ressalte-se que nenhuma delas teve acesso à herança de antepassados, ao contrário dos brancos livres que poderiam partilhar de um patrimônio acumulado em outras gerações. 
 Tomando-se como ponto de partida o plantel médio, chega-se ao índice de 4,4 escravos por proprietária, número próximo ao índice de 5,5 que Eduardo França Paiva encontrou para a Comarca de Sabará295 revelando que não era insignificante o acesso destas mulheres ao primeiro símbolo e condição para se afastarem do mundo escravista de onde eram originárias. 
QUADRO VI Plantel de escravos das testadoras TAMANHO DO PLANTEL NÚMERO % Até 3 escravos 14 63,6 De 4 a 5 escravos 3 13,6 De 6 a 10 escravos 3 13,6 De 20 a 30 escravos 1 4,6 Sem escravos 1 4,6 TOTAL 22 100,0 Fonte: BAT e AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101 
 
 O comportamento destas mulheres em relação aos seus escravos seguia também o padrão do restante da população livre. Não se tornavam, assim como Chica, libertadoras de sua raça, ao contrário do que poderíamos esperar ou desejar. Os escravos representavam o esforço de formar um pecúlio arduamente reunido e não era possível dissipá-lo de uma hora para outra na forma de alforrias sem pensar nos herdeiros. Ainda que significativa maioria destas mulheres não tivessem herdeiros diretos, pela ausência de filhos, não se nota que 
                                                                                                                                                                               294DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 26. 295PAIVA, Eduardo França.Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII... São Paulo, Anna Blume, 1995. 
156 
 
 
tenham facilitado a concessão de alforria, revertendo o pecúlio para salvação de sua alma ou beneficiando outros herdeiros, sendo os laços afetivos essenciais na sua escolha. 
 
QUADRO VII Mecanismos de alforria dos escravos MECANISMO NÚMERO % Coartação 21 72,4 Alforria 8 27,6 TOTAL 29 100,0 Fonte: - BAT e AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101. 
   Do total de vinte e uma mulheres forras proprietárias de escravos, sete não concederam alforria de espécie alguma a seus escravos, representando 33,3% do total. Quatorze delas alforriaram o total de vinte e nove escravos, no entanto, como veremos, o mecanismo majoritário foi a concessão da coartação. Isto é, estipulava-se um período pelo qual o escravo podia trabalhar livremente para conseguir um pecúlio e assim comprar sua alforria. Em algumas vezes, determinava-se um período onde o escravo deveria servir os herdeiros e só depois começar a ser coarctado. Desta forma, a alforria era um processo levado a cabo pelo próprio escravo, e que indenizava o proprietário do pecúlio investido. Gertrudez Angélica da Glória, casada, com uma filha, determinou que sua escrava, Mariana, angola, depois de servir um ano a sua herdeira, poderia ser cortada, por cem oitavas de ouro, por três anos, em três pagamentos iguais.296 
 Como se pode observar pelo quadro acima, o mecanismo da coartação foi forma generalizada de alforria. Demonstrava a preocupação destas mulheres, que duramente acumularam algum cabedal, em vê-lo irremediavelmente perdido. Como a maioria não tinha herdeiros naturais, gastando boa parte da herança com os sufrágios para a alma, era perfeitamente possível conceder a alforria, transformando o investimento acumulado nos escravos em ouro ou dinheiro, sem ter que recorrer à venda do plantel. Não era raro que, nos leilões públicos, os escravos fossem arrematados por preço bem inferior ao que valiam. 
                                                          
 296DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 70-70v. 
157 
 
 
Através da coartação era possível beneficiar ao escravo que servira fielmente, fazer uma caridade cristã e, ao mesmo tempo, garantir os ganhos financeiros.  
 O padrão de comportamento das negras forras em relação à concessão de alforrias era o mesmo que o do restante da população livre e branca. Alforriavam-se os escravos a quem se afeiçoara, os que demonstraram fidelidade, ou a sua prole. A gratidão a algumas escravas fiéis pôde ser demonstrada em vários exemplos: a liberdade tornava-se o mecanismo privilegiado de retribuição dos serviços prestados em vida e permitia que outras mulheres pudessem também penetrar no mundo dos homens livres. A alforria também era a caridade com os mais pobres, mecanismo importante de salvação da alma e que deveria ser afirmado na hora de suas mortes. Ingês de Santa Luzia, mulata, solteira, deixou toda a roupa do seu uso para Marina de Santa Luzia, que tinha sido sua escrava, “por me ter servido e acompanhado fielmente até agora.”297 Inês Fernandes Neves coartou dois dos quatro escravos que possuía. Um deles, João angola, “por ser já idoso e me ter servido com lealdade.”298 Jacinta da Siqueira libertou sua escrava Angela, mina, “pelos bons serviços que me tem rendido, e me ter servido bem, e ter me dado suas crias.”299 Maria de Azevedo, negra de benguella, solteira, determinou que seus testamenteiros passassem carta de alforria a sua escrava Maria, “pelos bons serviços que me tem feito e boa companhia que comigo tem estado.”300 
 Todas as vinte e três forras eram proprietárias de pelo menos um bem imóvel: a casa onde moravam. Oito delas eram proprietárias de mais de um imóvel, sendo que quatro eram proprietárias de outras casas de morada, que lhes rendiam aluguéis. Maria de Souza da Encarnação301 era proprietária de quatro casas no arraial do Tejuco; Ana Maria de Freitas302 e Rita Vieira de Matos303 possuíam duas; e Isabel Gomes Pereira304 determinou que seus testadores cobrassem uma dívida à Josefa Maria, por ter deixado que construísse uma casa nos fundos de seu terreno. 
                                                          
 297DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 26. 298DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 26. 299 SERRO. Arquivo do Fórum, op. cit., nota 273, f. .33v - 38v.  300DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 58. 301DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 350, f. 34-35. 302Ibid., Caixa 521, f. 49-50. 303DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 65. 
158 
 
 
 Cinco testadoras possuíam imóveis rurais, enumerados como fazenda, roça, capoeira ou rancho. Dedicavam-se à agricultura ou pecuária, que na sociedade urbana das Minas era boa fonte de rendimentos, abastecendo o mercado interno de carne, legumes, mandioca, etc. Joana Carvalho, negra da Costa da Mina, possuía uma roça no Capão das Jaboticabas, onde produzia milho e mandioca, criava gado, porcos e cavalos.305 Jacinta da Siqueira tinha uma fazenda e uma roça, mas não se sabe como eram exploradas.306 Maria de Azevedo era dona de uma chácara que deixou ao seu herdeiro, mas ele só poderia tomá-la após a morte de uma exescrava sua, Maria, que ali morava de favor.307 Ana da Glória dos Santos, negra mina, tinha um rancho nas Bicas, próximo ao arraial de Milho Verde, nas terras de uma certa Dona Theotônia. Deixou entre seus bens um descaroçador e uma roda de fiar, indícios de que plantava algodão e produzia tecidos artesanalmente.308  
 As joias e peças de ouro e prata eram símbolos exteriores de riqueza, ostentados nos colos e cabelos das mulheres na missa e nos dias de festa, mas, também, significavam investimento, calculando-lhes o preço pelo peso em ouro lavrado e os quilates das gemas. Ana Maria de Freitas foi um bom exemplo de como estas jóias podiam ser eficientes formas de capitalização, pois todas as suas estavam empenhadas junto a terceiros. Tinha quartoze botões, ouro lavrado, um par de brincos e um laço que lhe renderam cerca de quatorze oitavas de ouro.309 Eram comuns os laços com brilhantes, cordões de ouro, brincos de pedras e pequenos oratórios de ouro. Bernardina Maria da Conceição listou uma imagem de ouro de Nossa Senhora da Conceição, dois cordões de ouro, dois brincos e um laço de diamantes, treze contas de coral e de ouro enfiadas, além de um laço e um brinco de ouro que entregara ao padre para vender.310 
 As listas de joias arroladas nos testamentos e inventários fornecem o luxo com que se enfeitavam estas mulheres. Entre as quatorze testadoras que arrolaram os bens de seu uso, dez 
                                                                                                                                                                               304DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 350, f. 84v-85v. 305Ibid., f. 166-167. 306SERRO. Arquivo do Fórum, op. cit., nota 273, f. .33v - 38v. 307DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 58. 308Ibid., maço 4. 309DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 120-120v. 310 Ibid., Caixa 350,. f. 38v–40. 
159 
 
 
(71,4%) possuíam entre seus pertences várias joias, que completavam as vestes finas que ostentavam em público. A crioula Inês Fernandes Neves311 podia desfilar, na missa de domingo, no Tejuco vestida com toda a pompa. Em seu guarda-roupa, encontravam-se duas saias de cetim, um chapéu de copa alta, uma capa bordada e outra de droguete, dois pares de sapatos de seda, que podiam ser adornados com um par de fivelas de prata. No pescoço podia colocar várias gargantilhas de ouro, num de seus cordões ia pendurada a imagem também de ouro de Nossa Senhora da Conceição, nas orelhas brincos de diamantes além de se enfeitar com seu laço de diamantes, estes últimos avaliados em 69$300 réis. 
 A hora da morte era o último momento para exteriorização do lugar social de cada um e, cercada de ritos, deveria permitir o perdão dos pecadores, conseguir a salvação da alma, mas, também, preservar as hierarquias sociais estabelecidas na vida. Nas Minas, a proibição da instalação das Ordens Primeiras fez com que florescessem as Irmandades leigas, por meio das quais os homens expressavam sua religiosidade. As Irmandades ou Ordens Terceiras foram responsáveis por todas as questões religiosas, como a construção dos templos, organização das missas e procissões, difusão do culto aos santos e organização dos ritos fúnebres. Pertencer a uma destas Irmandades era, pois, essencial a organização e a identificação dos homens nos núcleos urbanos que iam se constituindo nas Minas. Elas não eram exclusivas dos brancos, mas reuniam também negros e mulatos e, então, eram reflexos das estratificações raciais e sociais locais. Antonia Nunes dos Anjos, preta forra e comerciante de escravos, pertencia à Irmandade do Rosário em Sabará.312 
 As Irmandades serviam para o reconhecimento dos lugares sociais de cada um no seio da comunidade, e serviam ao exercício de uma série de direitos, inclusive o de ser enterrado, na medida que as tumbas, localizadas dentro das Igrejas, pertenciam, por elas, e eram administradas. Na sociedade das Minas era quase impossível viver fora destas agremiações. Entre os direitos oferecidos aos irmãos, estava a garantia de uma série de sufrágios na hora da morte. Eram ritos de passagem, como a celebração de missas, os gastos com o enterro, o 
                                                          
 311DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 26. 312MO. CBG. Testamento. Livro 7(13), f. 15v-18. 
160 
 
 
direito de ser enterrado com o hábito da ordem, que deviam assegurar a salvação da alma do irmão e, portanto, eram essenciais.  
 Das vinte e três mulheres forras estudadas, apenas uma não pertencia a qualquer Irmandade. Josefa Dias, preta, determinou que seus testamenteiros definissem o seu enterro já que não pertencia a nenhuma Irmandade. Foi enterrada na Igreja do Rosário do arraial do Tejuco, com missa de corpo presente e esmola de um quarto de vela para os sacerdotes que acompanharam os serviços.313 Em muitos momentos, como o da hora da morte, pertencer a Confrarias era praticamente indispensável, pois a elas pertenciam as sepulturas. Diante disso, elas sobretaxavam aqueles que procuravam se tornar irmãos apenas nessa hora,314 o que, provavelmente, aconteceu com Josefa Dias. 
  Como as Irmandades refletiam a organização social e racial da época, ocorreu uma diferenciação entre as que predominavam nas Minas entre a primeira e a segunda metade do século XVIII, pois, neste período, a sociedade se tornou mais complexa e estratificada. No início do século, distinguiam-se, principalmente, as Irmandades de brancos, sendo as mais importantes as do Santíssimo, que congregavam as pessoas mais importantes dos arraiais. Eram também comuns, as da Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Reino e a do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, cultuada no Norte de Portugal. Também, apareceram as Irmandades de negros, sendo as mais numerosas as de Nossa Senhora do Rosário. Mas, existiam, ainda, as que invocavam São Benedito, Santa Efigênia, ou Nª Sª das Mercês, esta última associada à libertação dos cativos. 
 Na segunda metade, a maior estratificação social entre os brancos proprietários deu origem ao aparecimento de duas Irmandades muito comuns nos núcleos urbanos mineiros: a de São Francisco, que englobava, principalmente, os intelectuais e a elite administrativa; e a do Carmo, que aglutinou os comerciantes ricos.315 Por outro lado, com o aumento do número de mulatos proliferaram aquelas que os congregavam, como as da Mercês e de São Francisco do Cordão. 
                                                          
 313 DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 76v-79. 314SALLES, Fritz T. Associações religiosas no ciclo do ouro. p. 59. 
161 
 
 
 Como as Irmandades procuravam ser rígidas em relação à qualidade e condição dos irmãos, a análise das que aceitavam as negras forras como filiadas, no Distrito Diamantino, permite perceber a inserção das mesmas mulheres na sociedade local, o que se pode observar pelos Quadros VIII e IX.  
 Para entendê-los, é preciso, antes, referir-se brevemente sobre a instalação das Irmandades no Tejuco. As duas primeiras a serem fundadas foram as das Almas e a do Rosário; a primeira congregava os brancos do arraial e a segunda os negros e mulatos. A Irmandade das Almas funcionava na Igreja Matriz de Santo Antônio e a do Rosário em capela própria, posteriormente ampliada e transformada em igreja. Na segunda metade do século XVIII, devido às desavenças entre negros e mulatos, resultado da maior estratificação da sociedade, os mulatos se retiraram da Irmandade do Rosário e edificaram igrejas próprias, processo semelhante ao que aconteceu na maioria das vilas mineiras. No Tejuco, isto efetivouse na construção da Igreja do Amparo (1756) e Mercês (1772). As diferenciações surgidas no seio dos homens brancos resultaram na proliferação de Irmandades de brancos, com suas respectivas igrejas. Os mais ricos congregaram-se nas de São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Carmo. No Tejuco, a Igreja do Carmo foi construída sob os auspícios e proteção do contratador dos Diamantes, o Desembargador João Fernandes de Oliveira. Os brancos também participavam da Irmandade da Terra Santa, ou Bula da Santa Cruzada, organizada para angariar fundos com o objetivo de libertar os lugares santos da Palestina das mãos dos infiéis muçulmanos. 
 Como se pode perceber, as Irmandades eram um retrato da sociedade hierárquica do século XVIII e era um dos mecanismos de exteriorização do lugar social de cada um. O aparecimento, por exemplo, das Irmandades de mulatos e pardos era resultado da necessidade deste segmento, cada vez mais amplo, diferenciar-se dos negros, geralmente escravos. É preciso anotar que as Irmandades de mulatos e negros tinham entre seus filiados elementos brancos, pois atraí-los, inclusive participando das mesas diretoras, era sinal de prestígio e poder. O mesmo acontecia com negros e mulatos que se enriqueceram.  
                                                                                                                                                                               315SALLES, Fritz T., op. cit., nota 316, p. 71. 
162 
 
 
 Apreende-se, pelo quadro acima, que as forras tiveram participação em Irmandades tanto de brancos, quanto de mulatos e negros. Logicamente, o maior número de filiações, representando 40,5% do total, era à Irmandade do Rosário, distribuídas ao longo de todo o período. Entre elas, encontra-se Maria Martins Castanheira que, por duas vezes, foi juíza da Mesa do Rosário, sinal de prestígio e distinção entre os irmãos.316 Tereza Feliz deixou um laço de ouro como esmola para o Rosário,317 assim, por meio da caridade, expressava sua gratidão. 
QUADRO VIII Perfil étnico das Irmandades das testadoras IRMANDADE NÚMERO % De negros 17 40,5 De pardos 11 26,1 De brancos 14 33,4 TOTAL* 42 100,0 Fonte: BAT e AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101. * O total é superior ao número de 23 testadoras, porque várias participavam de mais de uma Irmandade. 
 
                                                          
 316DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 387v-388. 317Ibid., f .48-49.  
163 
 
 
 A partir de 1766, começaram a aparecer entre as testadoras filiação a duas Irmandades de mulatos: Amparo e Mercês. No entanto, das dez testadoras que afirmaram pertencer a elas, oito eram negras, sendo sete africanas e uma brasileira. Somente duas eram efetivamente mestiças: Rita Paes Gouveia318 e Gertrudez Angélica da Glória.319 Pode-se perceber que, na prática, os estatutos excludentes das Irmandades nem sempre valiam, pois na sociedade em contínua transformação das Minas, outros sinais exteriores de riqueza e importância relaxavam e invertiam sua rigidez hierárquica. Um dos mecanismos de exteriorizar esta transformação do status pelas forras, fossem negras ou mulatas, era participar de Irmandades que congregassem majoritariamente outros segmentos sociais. Rita Vieira de Matos, negramina, deixou de esmola para a imagem do Divino Espírito Santo da Capela do Amparo a esmola de seis oitavas de ouro e era também irmã das Mercês e do Rosário.320 
 
QUADRO IX Filiação de mulheres forras em Irmandades IRMANDADE NÚMERO % PERÍODO Rosário (1731)* 17 40,5 1751-1820 Mercês (1772) 8 19,0 1793-1815 Almas** 6 14,3 1751-1793 Terra Santa 4 9,5 1756-1766 Amparo (1756) 3 7,1 1766-1820 Na. Sa. Carmo (1758) 1 2,4 1814 São Francisco 1 2,4 1815 São Francisco/BA 1 2,4 1766 Na. Sa. Carmo/BA 1 2,4 1766 TOTAL*** 42 100,0  Fonte: BAT e AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101. * Entre parênteses, data de fundação da Irmandade. ** Funcionava dentro da Igreja Matriz de Santo Antônio. Junto com Rosário era das mais antigas do Arraial. *** O total é superior ao número de 23 testadoras, porque várias participavam de mais de uma Irmandade. 
 
                                                          
 318DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 35-35v. 319Ibid., f. 70-70v. 320DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 65. 
164 
 
 
 Entre as testadoras, foi mais comum a participação em Irmandades brancas até a década de 60. Neste período, concentram-se onze filiações do conjunto de quatorze, sendo cinco à Irmandade das Almas e quatro à Terra Santa. Por estes dados, percebe-se que, ao contrário do que tenderíamos a pensar, foi mais fácil penetrar nas Irmandades brancas nos anos logo posteriores ao início do povoamento da região, que se intensificou a partir dos anos 30. Isto era o reflexo da conformação da sociedade mineira durante os setecentos. Inicialmente, apesar da sociedade ser menos estratificada, era marcada pela maior fluidez e indistinção entre brancos e mulatos. Isto acontecia porque o número de brancos era muito pequeno, o que dificultou inclusive o preenchimento dos cargos das câmaras municipais, que deviam ser exclusivos dos homens brancos. As primeiras autoridades assustavam-se, por exemplo, com a ampla participação de mulatos nas Câmaras e em outros cargos da administração pública e a generalização do costume de mancebia e concubinato com negras forras. 
 Já a sociedade da segunda metade dos setecentos foi caracterizada pela maior estratificação, resultante da generalização das relações consensuais entre brancos, mulatos e negros. Porém, tendeu a se organizar de forma mais hierárquica e menos fluida, demarcando melhor as diferenciações de cor e status entre a camada de libertos. Houve, consequentemente, uma maior preocupação da elite branca e livre de se distinguir da camada de mulatos e libertos que proliferava nos arraiais. Esta tensão resultou na criação das Irmandades de São Francisco e Nossa Senhora do Carmo, que pretendiam ser restritas aos estratos mais altos. Também contribuiu enormemente a cruzada moralizadora do Estado e da Igreja, essa última esquadrinhando a região através das Devassas Episcopais, cujo principal alvo era o concubinato. 
 Em 1766, Antônia de Oliveira Silva, parda, era irmã das Almas e da Terra Santa no Tejuco. Na Bahia, de onde era natural, era irmã do Carmo e de São Francisco e deixou esmolas para a celebração de duzentas missas em intenção de sua alma nos conventos destas Ordens na cidade de Salvador. No final do século XVIII, a crioula Rita Paes Gouveia321 era 
                                                          
 321 DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 35-35v. 
165 
 
 
irmã das Almas e, em 1815, a negra Ana da Encarnação Amorim era irmã do Rosário, Mercês e São Francisco de Assis, revelando o trânsito social que a condição de forra lhe abria. Ignês de Santa Luzia, mulata, filha natural de uma branca chamada Maria da Conceição pertencia à pretensa seleta Irmandade do Carmo do Tejuco. As autoridades que registraram a abertura de seu inventário trataram-na por Dona, sinal de que não era uma qualquer no arraial e, certamente, a cor de sua mãe facilitava sua aceitação. 
 A análise dos dados relativos às Igrejas onde foram realizados os sepultamentos confirma a mesma tendência acima: a maioria absoluta foi enterrada na Igreja do Rosário, mas realizaram-se funerais em Igrejas de brancos, negros e mulatos. Os enterros nas Igrejas Matrizes do Tejuco, Vila do Príncipe concentraram-se até a década de 1760 e no Rosário a partir de 1790, confirmando as mesmas tendências de conformação da sociedade mineira ao longo do período. 
 
QUADRO X Igrejas onde foram enterradas as testadoras IGREJA NÚMERO % Rosário 14 60,8 Matriz 6 26,0 Mercês 1 4,4 Na. Sa. Carmo 1 4,4 Amparo 1 4,4 TOTAL 23 100,0 Fonte: BAT e AEAD. Testamentos de mulheres forras. Lista completa em Fontes, p.100-101. 
 
Todos os enterros foram realizados com pompa, isto é, servindo de sinais exteriores de dignificação: Maria Vaz da Conceição322 exigiu que sua missa de corpo presente fosse rezada por oito sacerdotes, Gertrudez Angélica da Glória323 pediu que fossem seis os celebrantes, Inês Fernandes Neves324 que fossem em número de dez as missas de corpo presente, Bernardina Maria da Conceição325 fez-se acompanhar de todos os sacerdotes que estivessem 
                                                          
 322DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26,. Caixa 521, f. 49v-50. 323Ibid., f. 70-70v. 324DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, maço 26. 325DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 350, f. 38v-40. 
166 
 
 
no arraial por ocasião de sua morte, Maria Martins Castanheira326 pediu que seu corpo fosse acompanhado de seu Reverendo Pároco, dois capelães das Irmandades das Mercês e Rosário da qual era irmã e mais um sacerdote, posteriormente dez missas seriam rezadas por sua alma com a presença de todos os capelães do arraial, Tereza Feliz reservou dois vinténs para cada pobre que acompanhasse seu corpo à sepultura e pediu que seu velório fosse realizado em casa.327 Com exceção de Maria Vaz da Conceição,328 que pediu que seu corpo fosse amortalhado num hábito de lã, e Isabel da Silva329, cujo corpo foi enrolado num lençol, todas as demais foram enterradas vestindo o hábito de São Francisco ou Na. Sa. Carmo, com predominância para o primeiro. A negra Maria Martins Castanheira330 determinou que se lhe enrolasse na cintura o cordão de São Francisco das Chagas, santo protetor dos pardos. Como mulheres de seu tempo, significativa parte do espólio das forras era gasta na celebração de missas, fossem elas de corpo presente, ou em memória de suas almas. Era costume também celebrar missas por parentes mortos, pelas almas do purgatório e por escravos, para as quais também deixavam esmolas às igrejas onde seriam rezadas ou a instituições como Irmandades. A crença no Purgatório como local de remissão das culpas criava um rito forçado de passagem para a elevação da alma. Também as forras reservavam grande parte de seu espólio para a celebração de missas específicas para as almas que se encontravam no estágio intermediário entre o Céu e a Terra. Entre as inúmeras missas deixadas por todas as forras, destaca-se a precisão com que dispôs Tereza Feliz: dez celebradas na Matriz do Serro e vinte no arraial do Tejuco, nas Igrejas do Carmo, Mercês, São Francisco, Bonfim e Amparo, nesta última em altar privilegiado.  Como se pôde observar pela análise acima, Chica da Silva não estava só. O novo mundo e, principalmente, o rush minerador abriram espaços para a mobilidade social, apesar das tendências hierárquicas da sociedade. Observe-se, por exemplo, que, na prática, os estatutos excludentes das Irmandades mineira foram burlados, devido à ascensão dos estratos 
                                                          
 326DIAMANTINA Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 387v-388. 327Ibid., f. 48-49. 328Ibid., f. 49v-50. 329Ibid., f. 79v-80. 330Ibid., f. 387v-388. 
167 
 
 
sociais de forros e mulatos livres. Se a escravidão era fator de segregação, a conquista da alforria tornava-se condição para que, uma vez imersos no mundo livre, homens e mulheres buscassem os mecanismos e símbolos de dignificação social.  
Fonte: JULIA FERREIRA FURTADO