O "Neguinho"

02-01-2013 10:18

 O "Neguinho" , ou Focinho de Porco, na boca dos moleques, era um tipo exótico que perumbulava pelas de Diamantina, na máxima preocupação de agourar os doentes: dizem mesmo os supersticiosos que a sua passagem pela rua onde morava algum doente era sinal que o freguês tinha infalívelmente de arrumar as malas para o outro mundo.

 Seria louvável, entretanto, se, como o Avelino, se entregasse a humanitária ação de fazer quarto ao defunto ou cantar o Bendito; mas, pelo contrário, farejador de defunto rico, fazia na vinda a profissão de agourar, somente para pegar uns bons cobres da empresa funerária, porque além de dar os passos para o enterro, era também de dar os passos para o enterro, era também sacristão da igreja do Rosário, depositária outrora de pepitas de ouro e picuás de diamantes que os escravos punham nas salvas nos dias de festas.

 Um sinal muito conhecido nas rodas dos sacristães, de defunto pobre, era quando os sino das almas da velha catedral badalava sozinho, compassadamente, num dobre rouquenho e triste; nesse dia, que era de folga para o "Neguinho", porque não dava confiança ao cheiro de alecrim, entendia de bancar o doido, andando pelas ruas metido num esverdeado "croizé", com camisa de mulhere, de tira bordada, cartola á Rio Branco, e nos olhos uns grandes óculos de aro de tartaruga.

 Tipo feíssimo, de estatura pequena com uma boca afunilada e saliente que valeu o apelido de "Focinho de Porco", e uns bigodes desalinhados e sujos, sempre tresandando a creosôto,e ra uma sujeito que me causava pavor, muito embora tivesse também de receber das suas mãos os chorados dez tostões de registro de óbito; por isso não deixava de ser um popular tipo de rua muito conhecido tanto mais quanto da sua vida se contam as histórias, mais repugnantes como por exemplo, a de cavar as sepulturas para tirar o ouro das dentaduras das caveiras e o vender aos dentistas.

 Quanta moça bonita que tem na boca dente de ouro deve haver por aí, sorridente e satisfeita sem saber que usa resto de defunto!...

                            Foto do Museu do Diamante - inaguração da Biblioteca no Museu- julho/2012

 

 Numa hora destas, ao ler esta crônica, há de alguma ficar bem desafinada e numa contração melindrosa, com a boca fechada para que ninguém o veja, dirá intimamente: "Meus Deus!... Que horror!... Será o meu?"

 Fora a gorgeta de quinhentos réis que arranjava de cada óbito, ganhava o "Neguinho", como sacristão, a miserável quantia de oito mil réis por mês; entendeu por isso de criar galinhas dentro da igreja.

 Em certa ocasião no dia da procissão de Nossa Senhora do Rosário, verificaram que o "Neguinho" chocava galinhas dentro do andor, isto mesmo depois que andaram com a Santa pelas ruas e que ouviram com espanto, o piado dos pintos que, alvoraçados, voavam dos enconderijos dos enfeites, fato que confessou e que até hoje não nega, esfregando as mãos e dando boas gargalhadas.

 Companheiro de Gabriel "Badalo" e inimigo de Avelino, pousou também as suas asas de ave agourenta na porta do Silogeu, chegando á imortalidade, fora esse ideal pecaminoso, pela asqueirosa mania de cavar o ouro das dentaduras das caverias, qualidade excêntrica que deverá ser repelida pelo "Capitão" e combatida pelo "Bispo", quando estiverem discutindo sobre a liderança da sua gloriosa agremiação.

 - Um cérebro tão desequilibrado, dirá o "Bispo", com a sua acatada autoridade, não pode representar o pensamento da nossa pujante classe de tipos populares!

 - Seja derrotado o "Neguinho"!... - retorquirá o "Capitão", cofiando as suas barbichas brancas!...

 Mas serenados os ânimos, pelo menos em espírito, irradiará no salão a voz retumbante do "Chico Guedes", do popularíssimo advogado "Dr. Guedes", como assim se intitulava nos dias de camoecas, e da tribuna fará valer os seus direitos, porque a "imortalidade sublime que conquistou, dirá, por tão extravagantíssima mania, quando não seja realmente um patrimônio de gl´roias para a sua classe, será a demonstração de uma alma forte que não se deixou amedrontar pela careta das caveiras".

 Tal será a verbosidade do "Dr. Guedes", grande jurisconsulto popular, perante tão douta reunião, que o "Neguinho", repugnante e extravagandíssimo, embora tenha hoje mudado de vida, será sagrado ilustre  "líder" da maioria dos tipos populares de Diamantina!...

FERNANDES, Augusto, Tipos Populares de Diamantina, O "Neguinho", pág. 99-102, editora São Vicente, Belo Horiozonte, 1929.