1 parte - A História do Brasil no ano 2000 contada por Joaquim Felício dos Santos

03-09-2013 11:03

JOAQUIM FELÍCIO DOS SANTOS

 

PAGINAS DA HISTORIA DO BRASIL ESCRITA NO ANO DE 2000*

p( Excertos )

(" ) Publicando no seu caderno de Inéditos uma obra que, embora estampada, na

verdade se conservou desconhecida da quase totalidade da crítica e do público, a "Revista

do Livro" presta ao mesmo tempo serviço e homenagem à memória de Joaquim Felício

dos Santos. Antes de enfeixar em livro, corno pretende, trabalho de tão grandes dimensões,

oferecemos aqui êstes excertos cujo interêsse nos levou a deslocá-Ias, a fim de lhes dar

destaque, do nosso caderno de Arquivo para o de textos inéditos.

A HISTóRIA DO BRASIL ESCRITA PELO DR. JEREMIAS NO ANO DE 2862

São Francisco, 2D de novembro de 2862

Aqui cheguei ontem pelo caminho de ferro. São Francisco é uma cidade

secundária dos Estados Unidos Brasileiros. Só tem quatro l&.ma.s de comprimento

e três de largura. Sua população, conforme o recenseamento feito

ontem ao meio-dia, é de 3.964.632 habitantes; o de hoje, porém, talvez de

menos por causa de uma epidemia que começou a desenvolver-se esta noite.

São Francisco está edificada sôbre as rochas ~cas por cima das

quai~guebrava-~oll.trora a célebre cachoeira denominada Paulo Afonso.

Para facilitar a navegação a eletricidade - a navegação a vapor há muitos

séculos que foi abandonada por sua morosidade _ deu-se ao rio mn outro

leito, e, ficando a cachoeira a sêco, entulharam-se os ~ pe'Zos e profundos

abismos para formar-se o assento da cidade .

. Neste momento, quatro horas da tarde, cheso da C2.5a dos livreiros

Dracon, Braga & Cia., que acabam de ex-por a venda obra de suma

importância: - a História do Brasil pelo Dr. [eremías, O autózrafo foi à

tipografia esta manhã e já se acha composto, impresso, encadernado e publicado.

É portanto a história mais moderna que existe publica da até o presente.

Comprei um exemplar por 648 réís. Compõe-se de ~ - arossos volumes

in-folio, impressos em tipos finos, sem margens sem w ou espaços em

branco, a fim de economizar o material e não suceder como :Eaziam os editôres

da antiguidade que vendiam mais papel limpo do que roas. Os editôres

da obra de que falo são homens de consciência.

É um trabafuo monumental. Dr. Jeremias ~ou dois meses e quatro

dias na sua composição! Ocupado constantemente com a emprêsa não

poupou sacrifícios. Viajou o mundo inteiro colhendo documentos históricos;

revolveu as ruínas de Londres, de Paris de Hamburzo de Bruxelas, de

Lisboa e de outras cidades tão florescentes nos tempos antigos, em uma

palavra: todo o lugarejo onde supunha encontrar aizum esclarecimento foi

visitado. Graças aos progressos da civilização hoje ão tão fáceis essas investigações!

A eletricidade: - tal é a grande alavanca do éculo.

O Dr. Jeremias é um escritor de vasta erudícão. Fala perfeitamente

um milhão de línguas, sabe, cabalmente, dois milhões de artes e ofícios.

Sua História do Brasil é completa, imparcial e minuciosa, compreende o

espaço de 1362 anos, 4 mêses, 8 dias e 26 minutos, isto é, começa no descobrímento

do Brasil e termina-se no momento em que êle deixara a pena de

historiador. Todos os fatos importantes ocorridos nesse espaço de tempo aí

são relatados com tôda a imparcialidade. Digo "importantes" porque o Dr.

Jeremias, para não fatigar o leitor, não desce a minudências que nenhum

influxo tiveram nos progressos da civilização brasileira.

 

22 de  novembro de 1852 - REVISTA DO LIVRO

Para dar uma ideia desta obra, vou abrir ao acaso um de seus volumes,

e transcrever algum trecho. Deparei com o volume 94.°, abri à pág. 2680.

Eis um capítulo; é o MMMMDXCVI; tem por título - "O Segundo Reinado

de Bragança - Pedro II".  Transcrevemos esse capítulo. É pouco extenso: o menor da obra.

"Depois da abdicação de Pedro I em 1831, sucedeu-lhe Pedro II, que

só tomou as rédeas do govêrno em 1840, quando foi julgado maior por um

ato inconstitucional da Assembléia Legislativa, não tendo êle ainda a idade

legal. Pedro II subira ao trono pisando a Constituição: os homens políticos

enxergaram neste fato um mau agouro para o futuro; previram que ela não

havia de ser respeitada, e, desgraçadamente, seus pressentimentos não falharam.

"Este reinado nada oferece de importante. _- civilização se não retrogradou,

também não deu um passo para adiante por impulso do Covêrno. E

na vida dos povos, quando uma nação fica estacionária parece retrogradar.

"Misérias e corrupção": deverá ser a epígrafe dêste capítulo.

"Segundo Reinado significa um ensaio i!:6utí[ero que fizeram os brasileiros

do sistema representativo, A Constituição jurada pelo povo em 1825,

com suas reformas e interpretações posteriores, nunca foi respeitada. A

separação e dependências dos poderes fui sempre burlada. O Executivo

absorvera todos os outros. Era o Covêrno despótico e tanto mais intolerável

quanto êle sabia encobrir-se com o :Jl2.I:W da constítncíonalídade. Os brasileiros

aplaudiam, embasbacados com as palavras sonoras, pomposas, sesquipedais

do regímen representativo.

"A Câmara dos Deputados, que devia elevar-se à altura da honrosa

missão de que se achava encarregada pelo pO\-o, curvava-se submissa ao

menor aceno do Covêrno. O Senado, composto em geral de homens ineptos

que aí tornavam assento não por serviços prestados ao País, mas por intrigas

e influxo de reposteiros e criados áulicos, era inimigo de todo o progresso,

descuidado, negligente, sem patriotismo; era êsse o caráter dominante dos

corpos vitalícios que existiram na antiguidade. Felizmente hoje só há um

senado vitalício em Tomboctu, e aí mesmo já apareceu um projeto, que se

discute, para torná-lo temporário .

. . . , , inépcia .

. . . .. sensualidade dividir para reinar, ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::.( ~.) .

"Em conseqüência o Império estava sempre dividido em dois partidos

rivais, constantemente em luta renhida e porfiada; divergente em idéias e

princípios? não; divergentes no sistema de govêrno? não; disputavam sôbre o

poder? não. Disputavam o poder.

~ => "Nos altos empregos da Justiça dominava a mais escandalosa venalidade. ~ \ D Muitos magistrados recebiam dinheiro das partes litigantes para darem seu \J. ):' Yj)fj);; J;;y[)J' D;; plJe .melhor "p~ava.

Jy (") Não pude ler êste trecho da obra do DI. Jeremias por ter falhado a tinta. Só

a muito custo' pude decifrar as palavras que ficam transcritas. É pena, há de ser

interessante.

 

INÉDITOS

"O povo gemia sobrecarregado de imensos impostos, que tomavam díferentes

denominações para encobrir-se sua odíosidade, como tarifas, taxas,

selos, direitos, lotação e outras. As povoações, disseminadas em um vasto

território, separadas umas das outras isoladas por falta de vias de comunicação,

empobrecidas pelo vampiro do fisco que sugava-lhes tôda a vitalidade,

oprimidas pelos mandões que lhes enviava o govêmo central para governá-Ias,

definhavam à míngua, dormindo indolentes o sono da escravidão, sôbre as

imensas riquezas alastradas no abençoado solo brasileiro, e que não podiam

explorar por não terem meios para a exportação de seus produtos.

"E por que não havia de ser assim. A maior parte das rendas públicas

eram despendidas com a sustentação da Côrte, com sinecuras ruinosas, em

obras puramente de luxo, que só serviam para embelezar a capital. E na

verdade o Rio de Janeiro tornara-se para aquela época uma cidade importantíssima,

como ainda demonstram as suas ruínas. êem-se ainda restos da

Casa de Correção e Moeda, da Casa da Misericórdia, do Hospício de Pedro

II e das estátuas eqüestres, cujo bronze em 2462 foi vendido à Companhia

Progresso-Elétrico, organizada para a abertura do Istmo do Paraná,

"Assim ia o Brasil, quando em 1863 um partido político, desgostoso de

ter sido arredado do poder de que estava de posse a 14 anos, excitou uma

revolução em todo Império, e então "

Não posso continuar a transcrição por falta de espaço; mas por êste

trecho já se pode avaliar o mérito da história do Dr. Jeremias.

PÁGINAS DA HISTóRIA DO BRASIL ESCRITA NO ANO DE 2000

" Assim por maior que fôsse a reserva da

imprensa da época para não despertar susceptibilidades, o público que

apanha as coisas por alto, as entende, as compreende e muitas vêzes cala-se,

o público sabia que as graves e funestas complicações surgidas da guerra

com o Paraguai não teriam por tanto tempo embaraçado a marcha dos

negócios do país, se não fôsse a pressão que exerceram no espírito do Imperador

as ameaças do General Neto. Nas lutas da imprensa e da tribuna

perdiam os partidos um tempo precioso com inúteis recriminações, imputando

um 'ao outro as conseqüências dessa guerra fatal, e ninguém ignorava que

a iniciativa fôra exclusivamente do Imperador. Mas uma ficção constitucional

não permitia a discussão dos atos do Poder Moderador, que se devia reputar

impecável e incapaz do mal, como corolárío da irresponsabilidade. Assim,

jornalistas e homens de Estado, como autores de comédia, agrediam-se com

encarniçamento, assomados de fingida cólera, enquanto o público da platéia

aplaudia, julgando assistir a uma cena da vida real, e o Imperdor ria-se à

socapa debaixo das cortinas de seu camarote.

"E na verdade, nesse ano (1864) chegara inesperadamente à Côrte o

General Neto. O General Neto soube pintar com côres sombrias um estado

anormal, que ideou, da Província do Rio Grande do Sul, onde fürurava one

o exaltamento dos espíritos de seus comprovincianos, em conseqüência dos

insultos sofridos por brasileiros no Estado do Uruguai era tal que ameaçava

seu desmembramento do Império, se ° Govêrno não acedesse a seus caprichos

 

Saltemos várias páginas que tratam da Missão Saraiva, das represálias,

do protesto das nações neutras etc., etc. Depois o historiador continua:

" Desta forma, para derribar um govêrno legalmente constituído,

um govêrno que na forma da constituição da República representava

REVISTA DO LIVRO

guerreiros declarando a guerra àquela república, que até então se mostrara

amiga do Brasil.

"As guerras naquela província foram sempre acolhidas com simpatia

pelo mercantilismo de certas classes que, de contínuo à espreita, nunca

perdiam ocasião de locupletarem-se nas perturbações das coisas públicas, tais

os pescadores que melhor pescam com o turvamento das águas.

"A guerra do Paraguai, como depois narraremos, foi para essa gente uma

mina fecunda, que exploraram até à piçarra.

"O Partido Conservador que naquela época, em oposição, guerreava o

Govêrno, como especulação política, como meio estratégico de humilhação

para seus contrários fêz eco às exigências do General Neto, esquecido talvez

de que, se queixas havia contra o goyêmo da República Cisplatina já vinham

elas de longa data, e já pediam reparações quando êsse partido no poder

não cuidava senão de perpetuar o seu domínio por meio de uma política

interna que cavava um abismo ao país.

"O Govêrno bem conheceu as ínsídías de seus adversários políticos, que

sob a capa do patriotismo procuravam excitar descontentes no meio dos

sustentadores da situação; o Govêrno resistiria às perfídias de seus contrários,

esclarecia a opinião do país sôbre as conseqüências de uma guerra que necessàriamente

seria desaprovada pelas mais repúblicas americanas, desmascararia

as vistas ocultas dos especuladores; - mas eis que surge à tona uma

vontade superior, vontade que sempre foi fatal nas ocasiões solenes em que

urgia tomar-se uma deliberação de importância: falamos do Imperador.

"Foi êle quem dissipou as hesitações, foi êle quem caricaturando-se à

Breno atirou a sua espada na balança das perplexidades. Opinou-se pela

guerra.

"Seria porque êle conseguira mudar as convicções dos homens do Govêrno?

Não, não foi por isso. O Partido Liberal, possuído de patrióticas

aspirações, acabava, há pouco, de ser chamado ao poder; vinha esperançado

de que o Imperador acolheria favoràvelmente suas idéias, anuiria à realização

de seu programa político. Enganava-se, como depois mostraremos.

Sempre adversário dêste partido, o Imperador conservava saudades de seus

velhos amigos, os algemadores das liberdades públicas. O Partido Libera!

fôra elevado ao poder pela fôrça moral da opinião do país e não pela vontade

do Imperador. Assim iludidos, mas de boa fé, os homens de governança, qU.3

sabiam nada poderem fazer sem o concurso do Imperador, cediam às suas

vontades, - desculpemo-lhes essa fraqueza, que depois expiaram com amargura

...

"Aí está a história das nações para mostrar que os reis olham com

indiferença as calamidades geradas por seus caprichos; mas se entrevêem

no futuro, por qualquer causa, perigarem os interêsses dinásticos, se enxergam

ameaçada uma prerrogativa da realeza desvariam.

"D. Pedra Il, intimidado, sonhou que ia perder uma das mais lindas

pérolas de sua coroa, a Província do Rio Grande do Sul e, a pretexto de

reparações de injúrias, a guerra foi declarada à República do Uruguai. Logo

uma forte esquadra segue para as águas do Prata ;,

 

INÉDITOS

 

a verdadeira soberania popular, uniram-se as fôrças brasileiras com as de

um caudilho, o General Flores, rebelde, revolucionário, criminoso segundo as

leis do país; as baionetas do Brasil deram-lhe uma cadeira de Presidente em

que assentou-se manchado com o sangue de seus patrícios derramado pelo

estrangeiro.

"Já não bastavam às repúblicas vizinhas as dissensões intestinais em

que se dilaceravam, próprias do caráter espanhol. O Imperador entendeu

que também ali devia semear as discórdias, fomentar as paixões populares,

excitar os ódios dos partidos, perturbar a marcha do Covêrno desmoralizar

as autoridades com fúteis reclamações, enfim, intervir na sua política interna

como fazia no Império com o seu regímen da imoralidade e da corrupção.

Até a imprensa ali se assalariava para a defesa dos interesses do Império. Há

indolentes para o bem, que são ativos para o mal.

"Planos tenebrosos ocultava esta intervencão índevida os negócios internos das repúblicas americanas: visava o descrédito que se promovia das formas republicanas para que os povos cansados de dissensões intestinas não conhecendo a verdadeira causa, que lhes vinha de fora, o mudanças

no sentido de um sistema de estabilidade, e como tal se inculcava a monarquia.

"Eram poéticas as aspirações de D. Pedro, porém as poéticas, fofas

e fátuas, do que sensatas e realizáveis. Imaginava que em sua rida

seriam realizados seus sonhos: as repúblicas espanholas do antízo

regímen firmado com o sangue de patriotas, olhando Casa de Bragança,

donde lhes seria dado um salvador, um Messias, a sua rezeneração.

Imaginava ver sua ditosa descendência enxertando anarquia nas

frondosas árvores republicanas, absorvendo-lhes a seív as parasitas

de nossas florestas virgens. Que belo panorama. a Casa Bragantina. como

uma sementeira, espalhando príncipes que iam felicitar as nações americanas.

Que belo espetáculo para o tronco augusto, vendo sua re aerminar por

tôda a parte no solo rico das Américas!

"Soilhos e ilusões! Não se lembrava D, Pedro que tem . °a semelhante

havia já sido empreendida por um espírito superior República Mexicana;

não se lembrava que ainda trazia no peito a comenda de um imperador

fóssil, comenda com que o galardoara Maxímiliano em recompensa de haver

sido o primeiro a correr pressuroso ao reconhecimento do nascente Império

do México; não se lembrava que êsse Império desaparecera como um sonho

fugitivo que não deixava recordações; definhara e m:rera como a árvore

exótica da Europa que estranha o solo americano.

"Declarada a guerra ao Uruguai, viu-se D. Pedro também forçado a

aceitar a do Paraguai, que se apresentara em liça CO:aJ.O defensor de uma

república aliada e das formas republicanas ameaçadas pelo Império ;,

Seguem várias páginas que saltamos, para passarmos ao episódio da

Uruguaiana.

Continua o narrado  revocando os fatos que antecederam à crise

política de 68: a tomada de Uruguaiana, o panfleto de Erasmo, o

restabelecimento de relações com a Inglaterra, a verdadeira situação

da guerra. Mostra a impaciência dos conservadores para voltarem ao

poder, secretamente amparados pelo Imperador que nomeia um de

seus próceres máximos, o Marquês de Caxias, comandante em chefe em 68 

 

REVISTA DO LIVRO

do contingente brasileiro. D. Pedro vacila ainda quanto à mudança

do Gabinete, quando chega da Europa - provàvehnente a seu cnamado

- o Visconde de Itaboraí. O historiador transcreve a longa

conferência que tem o monarca com o politíco a respeito da situação,

e corno pode ser ela remediada em favor do "partido imperial".

"Considere agora V. M. a fôrça mágica da centralização no Brasil. Os

membros dos Tribunais superiores são nomeados pelo Govêrno, que os conserva

em sua dependência por meio de gorjetas, honras e espectativa de

acessos ou empregos mais rendosos. Os Juízes de Direito, também da

nomeação do Govêrno, se não pensarem como êle, têm o corretivo das remoções.

Os Juízes Municipais, que embora contra a Constituição foi-nos preciso

enxertar na magistratura, com o fim de torná-Ia mais dependente, são

magistrados temporários debaixo da ação imediata do Govêmo. Assim, no

Brasil, quem diz poder judiciário diz Govêrno.

"E a polícia, Senhor, êsse braço forte do Govêrno, que sabedoria na sua

organização! Como funciona essa máquina admirável! O Govêrno nomeia os

presidentes das províncias, seus baxás, que recebem diretamente seu pensamento.

Nomeia os chefes de polícia, que vão organizar a máquina policial

em todo o Império. Os presidentes de províncias nomeiam os delegados de

cada têrmo, e os subdelegados em seus respectivos distritos. Cada distrito

ainda é subdividido em quarteirões, cada um com seu inspetor nomeado pelo

delegado. Ainda fazem parte do engenhoso trama policial os oficiais de

justiça, escrivães, juizes de paz, juizes municipais, promotores públicos,

juízes de direito, etc., ete. E todos êsses empregados com atribuições de

prender ou ordenar prisões, processar, julgar, pronunciar, acusar, etc., etc.l

"Há, Senhor, nada mais artístico, mais bem organizado, mais harmônico?

Que pensamento admirável o do legislador de 1841!

"O Govêrno, Senhor, com o maravilhoso maquinismo da centralização,

é um Briareu com uma cabeça e milhares de braços, que se estendem e se

ramificam a todos os cantos do Império. -

"Ainda será preciso que eu faça ver a V. M. a fôrça do govêrno, que

tem em sua dependência milhares de funcionários públicos, empregados da

fazenda e de mil outras repartições criadas para acomodar afilhados e protegidos?

E a Guarda Nacional, e os agentes do recrutamento, e a fôrça policial,

e as fôrças de mar e terra. . . .. . .. Senhor, eu me confundo neste inextricável

labirinto que se chama administração brasileira! Ser-me-iam precisos

meses para apresentar aos olhos de V. M. o engenhoso entretecimento

de sua tela admirável.

"Dizia Arquimedes:

Dic ubi consistam coelum, terramque movebo.

6

"A centralização, Senhor, é essa alavanca portentosa com que, na ordem

política, o Govêrno é capaz de abalar todo o edifício social.

"Eu posso asseverar a V. M. que nem na França, nem em algum outro

país da Europa regido pelo sistema do absolutismo, nem na China, nem

na Turquia, nem nas tribos africanas se encontrará um sistema de centralização

tão sàbíamente organiz.ado no sentido de convergir tôdas as Iôrças

administrativas em um centro comum como no Brasil. Ao Brasil cabe a

INÉDITOS

glória da solução prática dêsse problema dificílimo que em tôdas as épocas

e em tôdas as partes do mundo tem ocupado o espírito dos governantes. O

nome de V. M., que tão sàbiamente dirige os negócios do Segundo Reinado,

por mais êste título passará imorredouro à posteridade! ...

"Dispondo de tais elementos, Senhor, com um sistema de administração

tão perfeito, em que tôdas as peças funcionam harmônicas, que receios pode

ter V. M. de chamar ao poder o Partido Imperial? Demita-se hoje o Ministro liberal,

dissolva-se a Câmara, que amanhã teremos uma outra representação genuína,

imperial: bastará fazermos desandar a máquina administrativa. Aí está a

sua grande vantagem; inverter tôdas as posições sociais, voltar para cima o

reverso da sociedade, sem ofensa dos direitos da monarquia. Algum sangue

que a polícia vê-se na necessidade de derramar para determinar as eleições

no sentido do pensamento do Govêrno, algumas violências contra os recalcitrantes

alzuns esquecimentos da lei, da honra, do pudor e do decôro são

bacatelas são perturbações locais, que não afetam ao todo social.

"- E a opinião pública, Visconde, que nos é adversa? disse o Imperador.

O Ministério, apesar da grande cisão do Partido Liberal, conta numerosa

maioria na Càmara dos Deputados.

<: _\ opinião pública! respondeu o Visconde com um sorriso sardônico.

Há no Brasil opinião? No Brasil o povo não tem opinião própria, pensa

conforme o pensamento do Govêrno: hoje por uma maneira, amanhã 1'01'

outra, 5e2UDdo as conveniências do momento. No Brasil, Senhor, com a hábil

política que t • M. tem adotado, tôdas as camadas sociais estão podres de

corrnpção e imoralidade; não há sentimentos de um verdadeiro patriotismo;

o vício é virtude, a honra é desonra, a verdade é mentira, o pudor é impudêneía

e rice-versa. E assim deve ser, para o Govêrno poder fazer sentir

a a ação e conter a anarquia. É preciso a obediência cega, a obediência

passiva dos cicos cadáveres, na bela expressão do Sr. Ferreíra Viana. De

outra forma não se compreende um govêrno regular.

a O justas as suas considerações, Visconde, disse o Imperador; mas

ainda receio a grande maioria de que dispõe o Partido Liberal no país.

«- Quem teme a maioria, Senhor, com a centralização que temos? Em

tôda a parte o Covêrno terá seus agentes, e êstes terão ampla autorização para

lançarem mão de todos os meios justos ou ilegais, pacíficos ou violentos;

corrupção intimidações, prisões, roubos, e mesmo assassinato, de tudo poderão

lançar mão. O fim justifica os meios; sabe V. M. esta máxima fundamental

de tôda a boa admi:nistração. Tão poderia dar-se melhor ocasião, Senhor,

agora que a pretexto das necessidades da guerra, poderemos usar de violência

por meio de recrutamento e designações na Guarda _-acional."

"O Visconde cai e como esperando a resposta do Imperador. Passados

alguns momentos êste rompeu o silencio:

"- Que pretexto, "íseonde teremos para demitir o _Iinistério liberal?

"- Temos excelente, Senhor. que tomarei a liberdade de expor a V. M.

Na lista tríplice, para o reenchimento da TIlO'ade um enador acaba a Província

do Rio Grande do _-arte de apresentar três nomes' Ratisbona, Tôrres

Homem e Bezerra Cavalcante. Tem Y. _L de escolher um.

::- Q~al escolherei?

- Torres Homem.

"- Tôrres Homem! Êste nome sempre êste nome maldito!

entrará em um Senado onde tem direito de assentar-se o herdeiro

da Coroa! ...

Não, não

presuntivo

 

REVISTA DO LIVRO

- E por que não, Senhor? Não sabe V. M. que já um imperador

romano conferiu as honras de senador a um seu cavalo!

"- Veja, Visconde, veja o que Tôrres Homem escreveu a respeito de

minha divina dinastia sob o pseudônimo de Tímandi o: "Assim estreou D.

Pedra a sua ominosa carreira; e que outra causa não tinham os brasileiros que

esperar de um príncipe da Casa de Bmgança? Não era êle a vergôntea dessa

estirpe sinistra, a que Portugal deveu durante dois séculos o fatal declínio

de seu poder e importância como nação, o aniquilamento de sua indústria

e a supressão de suas franquezas? Examinai a história de qualquer outra

raça real, e entre a longa sucessão de reis ígnomntes, cruéis e depravados,

·um ou outro enoontrareis sôbre quem a posteridade possa repousar os olhos

com satisfação. Na dinastia bmgantina, porém, nenhum há que esteja nesse

caso". .

"Tenho nojo de continuar a leitura de semelhantes blasfêmias, prosseguiu

o Imperador. E dizeis que devo nomear êste homem para Senador do

Império! E por que me aconselhais a que o escolha de preferência aos

outros?

<: Porque o Ministério não aprovará a escôlha de V. M.

"- Não aprovar a minha escolha! ...

«: Senhor, apesar da corrupção geral, ainda há moralidades no Partido

Liberal. Ou va s'asiler l'honneur!. .. Êste partido desmoraliza-se se Tôrres

Homem fôr escolhido senador. Todos os governistas da Câmara dos Deputados

abandonarão o Ministério e passarão para a oposição. Os ministros o

compreendem: é de fácil intuição. V. M. fará uma crise. 1tles pedirão sua

demissão.

"- Eu os demitirei, e depois?

<: E depois V. M. chamará um homem de confiança do partido imperial

para organizar o novo ministério.

"- Chamarei, por exemplo, ao Visconde de Itaboraí.

"c: Senhor, será grande honra; mas a bem da pátria, a bem do Partido

Imperial, a bem de V. ~f., nosso idolatrado monarca que eu adoro como a um

Deus sôbre a terra, eu tomarei sôbre meus débeis ombros, tão espinhoso quão

pesado encargo! ...

- Tendes razão, Visconde, disse o Imperador com malícia: escolherei

para senador a Tôrres Homem. Já também em 1827, se me não falha a

memória, fôstes presidente de uma associação republicana, em que se apregoava

como lícito o regícídío, e hoje sois senador ...

"O Visconde ficou vermelho até a ponta das orelhas." 

Interrompe o diálogo (que se prolongou variando sôbre os mais

diversos assuntos) a chegada de Zacarias. Trechos da conversa entre

Zacarias e o Imperador em que êste despede aquêle. D. Pedro,

auxiliado por Itaboraí, forma o novo gabinete. Reunião do Ministério

recém-criado

.

INÉDITOS

o que segue é extraído do Caricatury, jornal satírico que se publicava 9 (le maio

em New York no ano de 1869. de 1869

PALÁCIO DE SÁO CRISTÓVÁO. REUNIÁO DO CONSELHO

DE MINISTROS DO DIA 13 DE SETEMBRO DE

1868; PRESENTES O IMPERADOR DO BRASIL E OS

MINISTROS VISCONDE DE ITABORAí, BARÃO DE

MURITIBA, BARÃO DE COTEGIPE, ANTÁO, ALENCAR

E PARANHOS. O IMPERADOR OCUPA A CADEIRA DA

PRESID1tNCIA.

L

IMPERADOR- Senhores, preciso de mais dinheiro, de muito dinheiro para

continuar a guerra contra o sanguinário déspota do Paraguai. Reuni-vos para

deliberarmos sôbre o melhor meio de arranjarmos dinheiro. O último expediente

adotado foi ineficaz. Emitimos quarenta mil contos em papel-moeda ...

UMA voz - Inconstitucionalmente.

IMPERADOR- Quem fala-me aí em constituição? (Profundo silêncio).

Ninguém responde-me? Senhores, lembrai- os de que sou descendente de

D. João V: meu ilustre a 'oengo costumava fazer calar ministros por meio de

bastonadas ...

"Continuemos. Emitimos, como dizia, quarenta mil contos em papelmoeda;

mas êsse miserável papel aí vôa no comércio como fôlhas sêcas sem

valor. O câmbio baixa e continuará a baixar. De que serve-me um dinheiro

só com circulação forçada no Brasil e não aceito nos mercados estrangeiros?

com que não poderei prover o exército, comprar armamento, pólvora e balas

para metralhar os paraguaios? O que quero, senhores, é ouro; porque só com

ouro podemos continuar a guerra.

PAULINO DE SOUSA - Eu bem dizia a titio visconde que a emissão só

serviria para encher o comércio de papelásio. Titio mostrou um emperramento

...

VISCONDE DE lTABoRAÍ - Mais respeito, sobrinho, às minhas cãs e

ilustração.

PAULINO - Perdão, titio; não tive intenção de ofendê-Io. É que titio

não leria um discurso monumental que recitei na Câmara dos Deputados na

sessão de 5 de julho do ano passado.

VISCONDEDE lTABORAÍ- Li-o, sim senhor, e não vi nêle nada de notável.

PAULINO - Não viu nada de notável? Que injustiçal

VISCONDEDE hABORAÍ - Êsse teu discurso, sobrinho, foi mesmo uma vergonha:

um composto de banalidades desde a primeira palavra até a última.

Ninguém o entendeu, nem mesmo o Zacarias. Foi uma casaca feita de

retalhos que se descoseu ao vestir-se. Não estás habilitado para discutir as

transcendentes questões da ciência econômica.

PAULINO - Repilo, titio, repilo com tôda a energia dos meus pulmões.

IMPERADOR- À ordem, senhores, à ordem. Reuni-vos para tratarmos de

meios de arranjar dinheiro, e não para questões pessoais. Quero que cada

um de vós dê seu parecer por sua vez, e adotarei o que julgar mais razoável.

Não permito apartes e nem discussões odiosas, que não condizem com a

seriedade do ato. Tende a palavra em primeiro lugar, Sr. Cotegipe.

BARÃo DE COTEGIPE - Fui, senhor, sempre partidista da escravatura no

Brasil, e não me envergonho disso; porque no meu acrisolado patriotismo

entendo que foram os africanos que colonizaram o Império de Santa Cruz.

 

REVISTA DO LIVRO

Já no Senado apresentei-me como acérrimo esclavagista, e combati com vantagem

a tresloucada idéia do Ministério passado, que em seu programa se

propunha a abolir a escravatura. Sou í azendeiro e possuidor de muitos

escravos, não convém que êstes desapareçam.

"Para arranjarmos dinheiro, proponho que o Govêrno mande construir e

armar grande número de navios negreiros, com todos os cômodos e seguranças

necessárias, que sigam imediatamente para as cost~s da África, e importem-nos

o maior número de escravos que fôr possível. Estes serão vendidos aos fazendeiros

a quinhentos mil réís cada um. Posso responsabilizar-me pela

venda de quatro mil escravos, e eis já dois mil contos que entrarão de pronto

para os cofres públicos.

ANTÃO- Eu só comprarei quinhentos para um estabelecimento de apicultura

na Itaverava, Já são dois mil duzentos e cinqüenta contos.

BARÃO DE COTEGIPE_ Ao monopólio da importação de escravos exercido

pelo Govêrno, se poderá ajuntar uma especulação em ponto grande para a

compra e venda de carvão de pedra. É uma mercadoria que em tempos de

guelTa deixa grandes lucros. Eu sei por experiência própria. Tenho concluído.

IMPERADOR- O que dizeis a respeito, Sr. ltaboraí?

VISCO,,"DEDE lTABORAÍ- Não tive parte, Senhor, no negócio do carvão

de pedra. O Sr. Cotegipe sabe que isso teve lugar no ministério Ferraz,

IMPERADOR- Não é sôbre isso que vos pergunto; é sôbre o projeto da

importação de africanos.

VISCONDEDElTABORAÍ- Sou suspeito, Senhor, porque também sou esclavagista.

IMPERADOR- Sr. Cotegipe, vossa idéia é boa, mas não pode ser adotada

nas atuais circunstâncias, primeiramente porque os cruzeiros inglêses não

consentirão que importemos mais escravos para o Brasil; em segundo lugar

porque comprometi-me, a pedido de uma sociedade de sábios e literatos

de Paris, a abolir a escravatura no Brasil, e já tendo eu o nome conhecido

nas ciências, na poesia e nas armas, não posso desaver-me com literatos que

têm de escrever a história do meu reinado.

BARÃO DE COTEGIPE- Esta última razão convence-me.

IMPERADOR- Tendes a palavra, Sr. Muritiba.

BARÃO DE MURITIBA- Eu cá, Senhor, sou homem de ação e de poucas

palavras. Não gosto de panos quentes. A prova da Iôrça e energia de

minha vontade é o que já fiz em Pernambuco quando o govêrno encarregou-

me de acabar com os liberais: até pus cabeças a prêmio. Não conheço

meios têrmos, Precisamos de dinheiro: não é assim? Pois bem; mande-se

ordem a todos os delegados e subdelegados para que confisquem indistintamente

bens que cheguem para as atuais necessidades. Não lhe vejo outro

meio. Tenho dito. Multa in paucis.

ALENCAR- Multa bestialítas.

BARÃO DE MURITIBA (com ira) - O que dizeis, Sr. Alencar?

IMPER.ADOR - À ordem, senhores. .

BARÃO DE MURITIBA (avançando pam Alencar) - Eu atiro êste menino

pela janela abaixo. (Reina grande confusão na sala. O Imperador chama

à ordem, toca a campainha. Afinal o Paranhos, com palavras adocicadas;

conseguiu aplacar o [uror de Muritiba.)120

Caricatura alusiva ao gabine e conservador de Itaborai, sob a qual se lê:

LE MJt.:ISTÊRE nu 15 JUILLET

Sur ce [aible radeau, baUotté par l'oraçe,

Soms bussole et sans voile, ils coureni: à la m07·t.

Ils n'ont: pas ccperçu, moyen de sauvetaçe,

Le vaisseau de la paix qui lee menait au porto

Ba-ta-clan, 1 Aoüt 1868,

Revista do Livro, pág. 111a 169, ed. MEC, Ano II, RJ, 1957.