Os viajantes ingleses e a representação do brasil - parte 1

19-11-2013 23:47

Os Viajantes Ingleses e a Representação do Brasil: A Cartografia do Ouro das Minas Gerais (1809-1867) (Parte 1)

por Fábio Adriano Hering 

 

Sobre o artigo[1]

 

Sobre o autor[*]

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Quando o então cônsul e famoso explorador britânico Richard Francis Burton idealizou seu roteiro de viagem pela região do ouro de Minas Gerais, em 1867, ele não tinha em mente uma “viagem de exploração” propriamente dita. Para os padrões britânicos oitocentistas, e principalmente para os padrões de Burton, uma exploração deveria ser uma viagem para regiões ainda não observadas, descritas e mapeadas por um europeu.[2] Com 46 anos de idade, recém casado, egresso de duas desgastantes e controversas viagens pelas regiões centrais da África, patrocinadas pela Royal Geographical Society of Londone das quais colhera mais polêmica acerca de seu nome que o reconhecimento científico esperado,[3] agora investido do cargo de cônsul britânico na cidade de Santos, ele seguia para os planaltos do Brasil, acompanhado de sua esposa Isabel, em busca, dente outros de seus recorrentes interesses, de alguma possibilidade de enriquecimento com a mineração.[4] Nas palavras de abertura de sua narrativa, publicada em 1869, partindo do Rio de Janeiro para as Minas Gerais e os Planaltos do Brasil, Burton caracterizaria o trajeto a ser percorrido como algo que, em um futuro próximo, teria “seu próprio guia de viagem” e faria “parte do Grand Tour do século XIX”.[5]

Deve ter-se em conta que o interesse europeu pela exploração das regiões consideradas selvagens do mundo (por questões científicas, geoestratégicas e econômicas) já tornara a América do Sul um destino previsível para viajantes europeus desde o século XVIII. A mais célebre e representativa expedição desse período foi a “expedição científica internacional de 1735”, conhecida pelo nome de um de seus poucos sobreviventes, o geógrafo francês Charles de la Condamine. Seguindo o programa e os métodos da História Natural (com sua presunção tentacular de descrever todo e qualquer ser vivo, assim como o mundo físico e seus fenômenos), tal expedição contribuiu para estabelecer aquilo que Mary Louise Pratt denominou de “consciência planetária”.[6] Tal consciência é responsável, de acordo com aquela autora, por estabelecer uma percepção de mundo por meio da consecução de um arquivo[7] composto de textos, mapas, diagramas, pinturas, desenhos, coleções de objetos, entre outros tipos de descrições, produzidos e relacionados pelos mais diversos colaboradores.[8] Burton se insere nessa tradição descritiva e colecionadora que tornou possível a um moderno homem ilustrado “ver” o mundo ao folhear uma descrição de viagem ou ao vagar pelos corredores de um museu europeu. Com sua personalidade formada pelos períodos de juventude fora da Inglaterra (que o condicionaram a dominar diversas línguas) e com seus anos de dedicação ao exército (trabalhara anos como oficial britânico lotado na Índia) e à Royal Geographical Society (com livros publicados sobre o Oriente e a África), ele era tanto um consumidor voraz quanto um agente engajado na produção desse arquivo sobre o mundo.[9]

Burton era, em 1867, então, um viajante ilustrado no Brasil, consumidor e produtor dos arquivos da ciência da época e representando a tradição de descrição e coleta de informações sobre o mundo. Mais do que isso, ele era um representante do governo britânico, lotado no Brasil em um período em que a influência inglesa no país era maiúscula, tanto material quanto culturalmente.[10] Desde 1808 que o Brasil se abrira aos países estrangeiros, e à Inglaterra fora dada preponderância nesse processo. Tais laços com o Brasil, reforçados no início do século devido à aliança contra Napoleão e aos compromissos assumidos quando do traslado da corte portuguesa para o Brasil, intensificaram-se, sem a intermediação de Portugal, com o apoio político e econômico dado pela Inglaterra quando da Proclamação da Independência por D. Pedro I. Quando da visita de Burton ao Brasil já haviam se passado quase sessenta anos de ininterrupta presença britânica no país.[11] Os britânicos instalaram casas comercias no Rio de Janeiro, implantaram fábricas e companhias de capital internacional, deambularam pelo território nacional em busca de espécimes minerais e vegetais, maravilharam-se e desiludiram-se com o Brasil, e de todas essas experiências ficara um significativo arquivo de textos, imagens e mapas. É importante ressaltar que Portugal e Brasil não figuravam como meros pacientes de um processo de influxo cultural unidirecional, promovido demiurgicamente pela Inglaterra. O próprio Burton reconhece na introdução de seu livro que o percurso intelectual que ele seguiu, ainda em Lisboa, antes de sua partida para o Brasil,[12]prefigurando e projetando o que ele empreenderia depois de assumir o consulado em Santos, trilhou as páginas, dentre outros autores, de Alexandre Rodrigues Ferreira, José Vieira Couto e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, representantes brasileiros do Iluminismo Português, que empreenderam viagens buscando superar as dificuldades estruturais da economia brasileira ao apelar para o saber científico.[13] Outros autores estrangeiros são também citados por ele, entre aqueles reconhecidos pela historiografia da ciência no Brasil, de diversas proveniências, que tornariam possível seu Grand Tour pelos planaltos do Brasil, cada um esboçando um protótipo daquele “guia de viagem”, como Burton sugeriu, que estaria por vir: Whilhelm Ludwig von Eschwege, Spix e Martius, Auguste de Saint-Hilaire, para citar apenas alguns deles.[14]

Mais do que tudo isso, é importante ter em conta que quando Burton deitou a pena para registrar sua viagem ele já tinha ciência que apesar dos inúmeros perigos da jornada, da falta de infra-estrutura oferecida pelas estradas e trilhas, do desapontamento que ele experimentaria ao visitar as mais renomadas cidades mineradoras (Mariana e Ouro Preto), ele encontraria também aquilo que não se esperaria de uma região selvagem: núcleos de povoamento organizados, empreendimentos industriais lucrativos, a capacidade de aplicar a ciência e o método para retirar as riquezas do solo que os portugueses já consideraram exaurido no século XVIII, levados adiante pelos ingleses.[15] Talvez esses traços ressaltados acima tivessem levado Burton a considerar, mesmo com o recurso à hipérbole, que uma viagem ao Brasil poderia se tornar “roteiro turístico” para aqueles em busca de aventura e, até mesmo, como era seu caso, de oportunidades de investimento. Mas a recorrência à consagrada dinâmica aristocrática parece mesmo buscar ressaltar aquilo que, sabia Burton, um público europeu (que leria sua narrativa) não se esperaria do Brasil: núcleos de povoamento civilizados (como as vilas inglesas, estabelecidas junto às companhias mineradoras), a formalização de um conhecimento que representasse o desbravamento do território (como os relatos de viagem, as descrições científicas e as representações cartográficas do espaço geográfico brasileiro) e a possibilidade de que se poderia voltar de Minas Gerais com algum souvenier (como os ambicionados metais e pedras preciosos). É interessante perceber que a possibilidade de identificar o Brasil como um futuroGrand Tour também só é possível a partir de uma inversão que se processaria na idéia de roteiro turístico para Burton: se no século XVIII os filhos dos ingleses iam para Roma, ou Grécia, em busca da civilização, agora, nos territórios fora da Europa, os súditos da rainha Vitória, vivendo sob o apanágio do Império, seriam aqueles que levariam a civilização para os territórios em desenvolvimento.[16]

Como já visto, caracterizar Minas Gerais como um espaço já desbravado e do qual se poderia potencialmente tirar algum proveito econômico foi uma decorrência da imersão de Burton na literatura dos viajantes, com a qual ele pôde tomar contato, em Portugal e no Brasil, durante sua aclimatação intelectual para o período consular em Santos. Dentre as obras por ele inspecionadas, principalmente no que diz respeito à região do ouro de Minas Gerais, ele leu: em edição francesa, as Viagens ao Interior do Brasil, do comerciante e mineralogista John Mawe, que esteve no Brasil nos anos de 1809 e 1810; as Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil, do comerciante John Luccock, que viajou pelo interior do país entre os anos de 1817 e 1818; as Notícias do Brasil, do médico e capelão Robert Walsh, que viajou até Vila Rica, nos anos de 1828 e 1829; e a Viagem ao Interior do Brasil, do botânico George Gardner, que viajou pelo Brasil entre os anos de 1839 e 1840. Tais autores, que representavam uma pequena parcela dos britânicos que estiveram no Brasil no século XIX e que produziram relatos escritos (24 no total, de acordo com Bethell),[17] registravam, cada uma de sua forma, que a presença britânica no Brasil se configurava com um resultado da influência que o Império Britânico exercia sobre o Brasil desde 1808. Um império, como a estrutura de dominação de um contexto metropolitano sobre outro contexto colonial, como assinalou Edward Said,[18] é uma relação formal ou informal em que um Estado controla, direta ou indiretamente, a economia, a política, a cultura ou os recursos naturais de outro Estado, seja por meio da colaboração política, da dependência econômica, social ou cultural. Tal vigor imperialista, como sugeriu Iglésias,[19] caracterizou o que, para o público da época, caracterizava um “novo descobrimento do Brasil”, que se configurava diante de uma luta pelo controle e exploração de um novo território, de uma “luta pela geografia”, o que a Grã-Bretanha, com seus oficiais, diplomatas, comerciantes e cientistas, de uma forma intencional ou não, acabou por efetivar.

Nesse sentido, é importante, antes de tudo, caracterizar o que foi essa luta pela geografia, empreendida pelos agentes do império britânico no século XIX. Ela deve ser caracterizada como a posse formal ou simbólica de um espaço geográfico estratégica ou economicamente relevante, legitimada não apenas pelo recurso a soldados e canhões, mas também idéias e representações.[20] Um bom documento dessa retórica imperial de ocupação territorial do globo (relacionado por J. B Harley em seu artigo Maps, Knowledge and Power)[21], é omapa mundi de Walter Crane, composto a pedido da revista britânica Graphic, de 1886.

Imperial Federation of The British Empire – 1886, de Walter Crane In https://victorianpeeper.blogspot.com/2007_04_01_archive.html

Tal gravura é ordenada sob a égide do tridente de Britannia (a personificação do Império), que governa o mundo com uma serenidade imperial própria de uma deusa romana, demonstrando os espaços ocupados por seus súditos enquanto as rotas que interligam os diversos pontos do “Império onde o sol nunca se põe” se estendem atrás de si. Podem-se ver dois soldados britânicos, de casaca vermelha, portando suas armas de fogo e demonstrando, com sua postura relaxada e casual, uma confiança própria de quem toma o exercício de poder sobre um território colonial como algo natural; os nativos representados, como o indiano que carrega o fardo no canto inferior esquerdo e o indígena portando arco e flecha no canto superior esquerdo, representam a submissão e a resignação diante do poder que os constrange e os tornam ferramentas ou artefatos do império; o nativo sobre o elefante, ao lado de um dos oficiais britânicos à esquerda, parece querer nos lembrar que a permanência dos britânicos nos territórios coloniais no século XIX nunca prescindiu da colaboração de parte das elites locais, em um regime de parceria que nunca permitiu isolar de forma simplista uma parte da relação imperial em um espectro maniqueísta; o colono que repousa relaxadamente o corpo sobre o cabo de sua pá, por outro lado, parece esperar que uma cerimônia termine antes de que ele volte ao seu trabalho de explorar os recursos da terra. Todas as figuras orbitam harmonicamente ao redor de Britannia e se poderia, com alguma justiça, descrever a postura geral dos personagens como de reverência ao poder exercido pela personificação do império britânico que governa o mundo inclusive (como se pode ver a seus pés) com a colaboração das forças da natureza, tornando ainda mais inquestionável seu poder.

Não se pode dizer que um soldado britânico com um mapa mundidesses debaixo do braço poderia silenciar, em meados do século XIX, a revolta dos sipaios na Índia, explicando-lhe seu lugar na ordem universal; ou que um engenheiro ou empreendedor britânico que o apresentasse para D João VI, no início do século XIX, demonstrando o justo direito dos ingleses de resgatar o ouro do coração da terra, teria por esse artifício garantidos os seus direitos de exploração do ouro de Minas Gerais. Mas como um elemento da cultura letrada que representa o auge do imperialismo britânico, o mapa mundi de Crane se refere a um processo cultural que o antecedeu, do qual ele se nutriu e que ele opera para preservar, sem o qual a Grã-Bretanha não teria conquistado (de acordo com os termos gramscianos) o consentimento necessário para governar seu império. Nesse processo, por exemplo, onde por um longo período da história da Índia foi possível que milhares de sujeitos não massacrassem um exército alienígena significativamente inferior numericamente, não se pode desconsiderar o papel da difusão de produtos culturais ingleses de uma forma geral, como aqueles propostos pela Minuta de Macaulay (que instituiu um sistema educacional indiano fundado na cultura inglesa), ou mesmo da literatura inglesa de forma geral.[22] Como relacionam diversos viajantes ingleses no Brasil durante o século XIX, não era incomum encontrar volumes de Robinson CrusoeIvanhoe e The Treasure Islandnas bibliotecas brasileiras. Em outro sentido, como ressalta Mello Leitão,[23] não se deve subestimar a imagem popular dos ingleses, que tornava possível a qualquer um, como registrara Euclides da Cunha, por conta da capacidade empreendedora e do diferencial de poder cultural que eles exerciam no período, reconhecê-los como pontos de exclamação que se destacavam na paisagem, associando à sua figura a imagem daqueles exploradores ou engenheiros capazes de desbravar florestas, atravessar sertões, escavar a terra e encurtar as distâncias com suas máquinas.

A literatura britânica nos traz outro exemplo, instrutivo e revelador, de como os ingleses se relacionavam com a conquista e a representação do espaço. O exemplo em questão é a obra de Robert Louis Stevenson, A Ilha do Tesouro (1881-1882), que apresenta na suas páginas de abertura um mapa do tesouro desenhado pelo próprio autor como uma forma de ilustrar o que levara o garoto Jim Hawkins a promover uma busca pelo cofre do pirata Flint.

Mapa do Tesouro de Stevenson. In https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8c/Treasure-Island-map.jpg

O mapa do tesouro de Stevenson é parte de um portulano (uma carta náutica, com rotas marítimas e portos conhecidos), traçado, de acordo com a trama de Stevenson, pelo mais temível e admirado pirata inglês (que, segundo o autor, faria a Inglaterra ser respeitada fora de suas fronteiras) como uma forma de registrar o local onde deixara seu tesouro, composto das moedas de ouro pilhadas dos galeões espanhóis. O mapa, traçado em milhas inglesas, tem anotações de como chegar até a ilha, de como aportar e desembarcar nela, e de como encontrar o local, marcado com um emblemático “X”, onde foi enterrado o cobiçado ouro americano. Tão direta e abertamente tal romance, com sua gravura ilustrativa, falava sobre uma aventura que fascinava adultos e crianças ingleses, letrados ou não, que se conta que o primeiro ministro William Gladstone (admirador das escavações de Heinrich Schliemann e comentador de Homero) ficou uma noite inteira sem dormir por não conseguir parar de lê-lo antes de chegar ao seu desfecho.[24]

O que é interessante do mapa de Stevenson é que ele nos oferece um exemplo popular de um tema recorrente da modernidade, a busca por tesouros, a exploração e a conquista do espaço geográfico, o estabelecimento de um conhecimento formal e normatizado sobre a terra e os mares, a representação do mundo como algo útil ao império, seja por escrito, pictórica ou cartograficamente. Uma informação em especial, constante do mapa do tesouro de Stevenson, vale ainda ser levada em consideração: o ano grafado pelo pirata Flint em seu mapa, 1754. Meados do século XVIII é o período em que a mineração do ouro na América estava em seu auge, quando as minas de ouro brasileiras eram exploradas pela coroa portuguesa, quando os ingleses apenas podiam ter acesso ao ouro brasileiro por meio dos acordos com Portugal, quando o ouro era encontrado nos leitos dos rios (borbulhando nas gamelas, de acordo com Diogo de Vasconcellos),[25] em seus barrancos ou à flor da terra nos tabuleiros. Em uma palavra, quando o antigo sistema de exploração colonial, e as tecnologias usadas pelos portugueses e detidas pelos escravos africanos ainda podiam gerar lucro; quando, é bom lembrar, qualquer informação sobre as minas de ouro das Minas Gerais era vetada aos estrangeiros.[26]

O período de que estamos tratando aqui, por outro lado, o das leituras de Burton e de sua própria viagem ao interior (do prenúncio do que seria um futuro Grand Tour, de acordo com ele), é aquele em que, pela falência do sistema de exploração mineral, outrora centrado no almocafre, na canoa de depuração do minério, na bateia e na força braçal dos escravos, buscavam-se alternativas para a exploração mineral brasileira. Depois de esgotadas as reservas superficiais, o minério teria de ser buscado nos veios mais profundos, necessitando-se para essa tarefa de tecnologias mecanizadas de escavação, de esgotamento de água das minas por bombeamento, e do beneficiamento por meio de pilões mecânicos, sem esquecer-se dos sistemas mais modernos de amalgamação (não mais com a saliva dos escravos e com as ervas da região), tecnologias que, no decurso do século XIX, seriam aplicadas pelos ingleses no Brasil, organizados então em companhias que explorariam o ouro de forma industrial.[27]

Os relatórios dos cientistas brasileiros, comissionados pelo governo português, como José Vieira Couto e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, formados no bojo das reformas pombalinas e das investigações científicas orientadas por Domenico Vandelli, preconizaram a necessidade de novos homens, tecnologias e máquinas, preparando a chegada dos técnicos alemães, Varnhagen, Feldner e Eschwege no primeiro decênio do século XIX, e contribuíram para que o governo português, paulatinamente, permitisse, desde 1803, a criação de companhias de exploração mecanizadas e, já no Primeiro Reinado, com a constituição de 1824, a concessão da exploração das minas para estrangeiros.[28]Todo esse processo contribuiu para abrir as portas do Brasil e de suas riquezas naturais e minerais para os estrangeiros, confiando nas suas contribuições para o estudo e a exploração das minas brasileiras e do território brasileiro. Os ingleses, para com quem os portugueses mantinham estreitos laços de compromissos políticos e econômicos (e dívidas), fizeram valer suas prerrogativas nesse contexto. É nesse período e a partir desse contexto que o inglês John Mawe, um dos autores ingleses lidos por Burton antes de sua viagem, seria o primeiro estrangeiro a ter autorização de D João VI para visitar as minas de ouro e diamante do Brasil. Conhecido colecionador e comerciante de pedras preciosas de Londres, célebre por seus mostruários geológicos (ambicionados por investidores no setor de mineração e pelos monarcas ibéricos), Mawe adentrou o território da província de Minas Gerais pelo caminho novo da Estrada Real, partindo do Rio de Janeiro até Mariana e Vila Rica e de lá seguindo para o Tejuco (visitando os principais centros de mineração em seu trajeto). Um dos resultados mais interessantes de sua viagem é o mapa que ilustra o seu volume sobre o Brasil, publicado na Inglaterra em 1812.[29]

Reprodução do Mapa da Rota do Autor do Rio de Janeiro (...) ao Cerro do Tijuco, de Mawe (1812).

Tal mapa, gravado sob encomenda da companhia editora de seu livro a partir das instruções do autor, tem o frescor de um esboço, com a costa do Brasil na região do rio de Janeiro apenas sugerida por uma linha grosseira, com o trajeto delineado como se fosse uma anotação tomada durante a viagem, o que possivelmente não aconteceu, pois Mawe foi acompanhado, pela intervenção do Conde de Linhares, de guias que seguiram um caminho conhecido. De acordo com as normas cartográficas, o mapa estabelece um paralelo de referência no topo da página (lat. 16º. 40’.), embora não haja escala para ordenar as distâncias relativas entre as cidades marcadas no mapa. O mapa indica ter sido gravado na loja número 3, da Somerset House, o que sugere ter sido montado a partir de desenhos e mapas já conhecidos dos ingleses, pois estes passaram a imprimir mapas encomendados pela coroa portuguesa a partir do início do século XIX. Os acidentes geográficos retratados recorrentemente são os rios, pois servem de indicação ao viajante dos momentos em que será necessário vadear de uma margem à outra. O mapa também documenta informações não circunscritas à sua viagem, e das quais ele (ou o executor do mapa) deve ter se informado em mapas portugueses ou colhido oralmente, como: a existência dos índios antropófagos, na parte direita do mapa (os botocudos); o Rio Doce, “precariamente conhecido”, como indica o texto ao lado de sua bacia; um trecho do caminho velho, ligando São Paulo a São João Del Rei, não visitado por ele. Chamam atenção no mapa as legendas numeradas que designam: os pontos mais relevantes da região do Tejuco (seu principal foco de interesse, devido à sua experiência com pedras preciosas); no que diz respeito à mineração do ouro, os pontos onde ainda se faísca (gold washing) o ouro, como Vila Rica e Mariana, e o centro efetivo das Minas de Ouro do Brasil, identificado por ele como as regiões próximas de Barão de Cocais (onde a historiografia registra a mineração do ouro até pelo menos a metade do século XIX).

John Mawe era colaborador da Geological Society of London, um experimentado pesquisador de campo que formara coleções geológicas e estratigráficas como uma atividade paralela, e muito lucrativa, de seus encargos no escritório londrino de uma companhia de lápides e mármores de Derbyshire. Entre seus clientes devemos citar Carlos IV da Espanha, que lhe encomendara um mostruário geológico, para ser usado possivelmente na formação de especialistas em mineralogia. Mawe se comunicava com especialistas em mineralogia da Inglaterra e da França e mantinha uma respeitada loja em Covent Garden, Londres (recheada, depois de seu regresso do Brasil, com pedras e amostras dos minérios brasileiros). Em visita à América do Sul para empreender pesquisas para o rei da Espanha, Mawe acabou sendo preso como espião em Montevidéu (por conta da eclosão das animosidades entre Espanha e Inglaterra no desenrolar dos conflitos napoleônicos). Salvo pela intervenção inglesa, Mawe buscou refúgio na porção da América onde se localizava o então príncipe regente de Portugal, parceiro da Inglaterra, o Brasil. Com a intermediação do Conde de Linhares consegue a permissão real para visitar as Minas, como já exposto, e empreende a viagem que frutificou no mapa acima descrito e no relato de viagem que abre século XIX brasileiro. Em seu relato, Mawe se debruça sobre uma série de assuntos, como era o costume entre os viajantes de então, mas, ao se referir precisamente à geologia, delimitando seu saber como aquele proveniente da “observação direta”, decreta que uma das riquezas futuras de Minas Gerais seria o minério de Ferro, registra a ocorrência do topázio imperial, documentando sua forma específica, e decreta que os diamantes do Tejuco estão entre as melhores gemas do mundo. Seu mapa, como vimos, tem uma objetividade e uma clareza muito parecidas com a de seu texto: na placidez de um esboço ele busca documentar a jornada de um especialista pelas até então muito pouco conhecidas minas do Brasil. Seu mapa, marcado mais por espaços vazios do que por informações relevantes, parece projetar o futuro da região: a ser explorada sem empecilhos pelos futuros empreendedores e engenheiros ingleses.

Associar o conhecimento sobre as Minas e o Brasil com a cartografia era uma forma de representar uma informação direta, sem intermediários, da qual o relato teria se originado e que o mapa testemunharia convincentemente: “falo por ter visto e aqui está o trajeto que percorri”. Essa possibilidade de “fazer ver” o Brasil por meio do mapa vai se tornar possível principalmente por conta do projeto cartográfico organizado por Manoel de Azevedo Fortes, trasladado para o Brasil já no final do século XVIII e ampliado com a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Surgiriam, então, as primeiras cartas oitocentistas do território brasileiro, construídas a partir da coleta de dados dos engenheiros e cientistas portugueses e brasileiros, e impressas na Inglaterra, como já acontecera em 1807 com a carta denominada Colombia Prima – South America, elaborada pelo geógrafo francês Louis Stanislas Darcy e impressa pelo geógrafo inglês William Faden. [30] A partir de então, o acesso ao vasto conhecimento português garantiria outro tratamento aos mapas de Minas Gerais constantes dos livros de viagem ingleses, como se pode ver, principalmente, no mapa do livro de Robert Walsh.

Mapa de parte das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, com a rota do autor, constante do 2º volume da obra Notícias do Brasil (1821-1829), de Robert Walsh (escâner da edição brasileira.).

Walsh foi médico e capelão da colônia britânica no Rio de Janeiro, tendo efetuado viagem em sua estadia no Brasil para conhecer a região da mineração, principalmente seu principal empreendimento inglês, a Saint John Del Rey Mining Company, situada ainda na cidade de São João Del Rei, antes do acidente que fecharia suas atividades e que faria a companhia instalar-se na região de Morro Velho, atual Nova Lima. Sua obra se detém na descrição dos sucessos e insucessos da mineração. O mapa estampado no segundo volume de sua narrativa, intitulada Notícias do Brasil (1828-1829), é também um mapa editorial, não composto pelo autor, que busca reproduzir, pela recorrência a mapas conhecidos e estabelecidos sobre o Brasil, o percurso empreendido por Walsh. É fácil perceber o incremento no número de detalhes geográficos, os cursos completos dos rios com suas bacias hidrográficas representadas, até mesmo o Rio das Velhas, suprimido no mapa de Mawe, aparece aqui nas proximidades das cidades de Sabará e Caeté. Há um universo de cidades registradas, mesmo que não visitadas por Walsh. São também documentadas as principais cadeias de montanhas que delimitam os vales das regiões conhecidas. Há uma impressão de realidade que parece ser confirmada pelas vistas de perfil das principais composições rochosas, possíveis de serem encontradas por um viajante no interior do Brasil. A região costeira é reproduzida em detalhes. O mapa não apresenta uma escala de proporcionalidade, mas registra em suas margens as coordenadas geográficas dos meridianos e paralelos. Em certo sentido, podemos dizer que, se o compararmos com o mapa de Mawe, é possível identificar retóricas diferentes: o mapa de Mawe testemunha a urgência de um empreendimento pioneiro, o de Walsh registra uma viagem que os ingleses já conheciam muito bem.

Uma série de outros viajantes ingleses que estiveram no Brasil no século XIX publicaram mapas de Minas Gerais junto com suas narrativas: o comerciante John Luccock, que viajou pelo Brasil entre os anos de 1817 e 1818 (a edição brasileira de 1942, da editora Martins, reproduziu os mapas da edição original); o mineralogista e botânico Alexander Caldcleugh, que esteve no Brasil no ano de 1821 (o extrato da obra traduzido para o português em 200, pela Fundação João Pinheiro, não reproduziu o mapa da América do Sul constante da edição original do autor); o botânico e zoólogo George Gardner, que esteve viajou pelo Brasil entre os anos de 1839 e 1840 (a edição brasileira de 1942, da Companhia Editora Nacional, reproduziu o mapa da edição original); o engenheiro civil ferroviário James Wells, que se embrenhou pelo território brasileiro durante os anos de 1873 e 1875 (a edição brasileira de 1995, da Fundação João Pinheiro, traz o mapa do autor como encarte); a naturalista e pintora Marianne North, que se deteve no país durante os anos de 1872 e 1873 (o extrato da obra da autora traduzido para o português em 2001, pela Fundação João Pinheiro, não trouxe reprodução do mapa de Minas Gerais constante da obra original da autora); o engenheiro civil ferroviário Hastings Charles Dent, que se deteve no Brasil no ano de 1883 (cuja obra ainda não foi traduzida para o português). Dentre esses autores, apenas os três primeiros, além de Walsh e Mawe, foram lidos por Burton. Todos eles, entretanto, representam uma tradição de representação do espaço territorial brasileiro, e de Minas Gerais, com características próprias e que merecem ser analisados com cuidado. Mesmo seus mapas não sendo discutidos aqui, aqueles inéditos em língua portuguesa podem ser inspecionados no anexo no final desse artigo.

Talvez uma informação adicional venha ao encontro de nossa discussão e nos ajude a concluir o argumento que abre essa exposição. Quando Burton seguia para a região das minas de ouro brasileiras ele carregava consigo algumas ações da Saint John Del Rey Mining Company, com as quais ele buscava realizar um sonho de longa data: enriquecer com a exploração mineral. Pode-se dizer que ele ia inspecionar o seu investimento e se depararia com o que ele chamaria de “uma aléia britânica nos trópicos”, uma prova, segundo ele, de que os ingleses em Minas Gerais teriam inaugurado:

“um novo capítulo na história provincial, provando que, mesmo em circunstâncias adversas, muita coisa pode ser feita, por homens em que a honestidade e a energia se combinam com o conhecimento científico e prático de sua profissão”.[31]

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[1] Este trabalho é o resultado de pesquisa de pós-doutorado desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da FAFICH da UFMG, que contou com o apoio financeiro da FAPEMIG e com a supervisão da Profa. Dra. Júnia Ferreira Furtado.

[*] Prof. Dr. Fábio Adriano Hering, Professor Efetivo do CEFET-MG, Unidade Timóteo.

[2] Aschcroft, 2003: 96

[3] Dugard, 2004: 24-25

[4] Lovell, 1998: 467 e 475

[5] Burton, 1976: 35

[6] Pratt, 1999: 41 e 42

[7] Foucault, 2000: 175-181

[8] Harley, 2005

[9] Kennedy, 2005, 93.

[10] Freyre, 2000: 38 e 50

[11] Graham, 1995.

[12] Burton, 1977.

[13] Novais, 1979; Carvalho, 2002; Furtado, 1994.

[14] Oliveira Pinto, 2004.

[15] Correia, 2006; Ellis, 1995.

[16] Black, 2003.

[17] Bethell, 2003b.

[18] Said, 1995: 32.

[19] Iglésias, 1970.

[20] Said, 1995: 65.

[21] Harley, 2005: 86.

[22] Freyre, 2000.

[23] Mello Leitão, 1937: 11.

[24] Jenkins, 2002

[25] Vasconcelos, 1999.

[26] Gonçalves, 2004.

[27] Como preconizado por Paul Ferrand, em seu estudo de 1894. Vide Ferrand, 1998

[28] Oberacker, 2003; Domingues, 2001 e 2008.

[29] Torrens, 1992.

[30] Bueno, 2007; Cortesão, 1965.

[31] Burton, 1976: 186.