A fuga Trágica

16-03-2011 23:32

A fuga trágica

O velho casarão do Macau do Meio, onde funciona hoje o Fórum, foi, durante muitos anos, a cadeia de Diamantina. Não o foi desde os tempos coloniais, pois a primitiva ficava no Largo do Rosário, tendo em frente o pelourinho onde foi outrora açoitado Isidoro , o mártir, aquele garimpeiro que se tornou o símbolo da destemida classe de mineiros que considerava as riquezas da terra um dom da Providência acessível a todos que as fossem tirar.

Mudada para a casa do Macau do Meio, talvez ainda no século XIX ou nos primeiros dias do século XX, a cadeia não apresentava  mais em 1918, as condições mínimas de higiene e conforto necessário a uma casa onde viviam as criaturas humanas segregadas da sociedade e destinadas á regeneração.

O pavimento inferior, onde ficavam os presos, era um antro infécto de aparência repulsiva, rescendendo a mofo e a cheiro de corpos que jamais se banhavam.

Havia três ou quatro amplos salões, cheios de presos mal asseiados que nem ao menos tinham cama e dormiam em esteiras, no chão térreo.

A direita de quem entrasse no vestíbulo, havia uma sala menor destinada ás mulheres. Esta não era melhor  do que as dos homens e nem ao menos era fechada a não ser com a grade da porta e a da janela, sendo, por tanto, devassada pelos soldados do corpo da guarda.

As instalações sanitárias nem deveriam ter este nome. Constavam as privadas feitas de banca de madeira sobrepostas á fossas, já cheia e de horrível mau cheiro.

Nesta verdadeira masmorra medieval, onde só faltava a câmara de tortura para realmente se identificar com as prisões daquela época, viviam criminosos de toda a espécie, desde os primeiros e passionais até os verdadeiros facínoras que matavam para roubar ou para dar largas dar largas ao seu instinto de perversidade.

Não era fácil a regeneração em tal ambiente.

Contudo, por paradoxal que pareça, havia velhos prisioneiros, tidos por bons e muito conhecidos da cidade.

Nenhuma família diamantinense deixou de dar serviços de latoeiro e bombeiro ao Seu Cassimiro, detento antigo de muita habilidade profissional. Ninguém sabia que crime havia ele cometido, entretanto, estava ali havia muitos anos e, com era bom, hábil e trabalhador, todos o estimavam.

Era muito comum esse preso e outros mais fazerem pequenos serviços, visando apenas, em pagamento, um “gole de café e um pedaço de pão”.

Apesar da rotina da administração, as autoridades competentes chegaram á conclusão de que a cadeia local já não preenchia os fins a quem se destinava. Isto em 1818 onde já estavam adiantados os estudos penais  e a criminologia se libertava das teorias lombrosianas que negavam o livre arbítrio.

A opinião que desde então dominava era que a cadeia deveria ser um reformatório e para tal, deveria ter as condições necessárias ao processo psicológico que se visava obter na mente do detento.

Nessa época, era delegado de polícia o jovem Dr. Túlio Moura, de distinta família local, tão bom de coração que – dizia-se – na casa dele não consentia matassem galinhas para comer.

Depois de um ano de construção, terminaram a cadeia nova no mesmo local onde havia o antigo teatro colonial, com linhas do estilo Império, francês, o qual nunca foi acabado, por lhe ter faltado forro. Este magnifico edifício foi vandalmente posto abaixo para nele se construir a nova cadeia que, apresentando melhores e mais higiênicas instalações, era, contudo, de mau gosto arquitetônico, de um estilo a 1900, surgido tardiamente.

Finalmente, ficou definitivamente marcada a mudança dos presos para a nova casa. Antes, porém, algumas senhoras piedosas e as irmãs do Colégio Nossa Senhora das Dores conseguiram permissão das autoridades para fazer celebrar na antiga prisão uma missa com comunhão geral dos presos.

O ato realizou-se em uma manhã de maio. Era de notar o respeito e recolhimento dos detentos, muitos dos quais receberam a hóstia consagrada, com muita devoção.

A mudança efetuou-se três dias depois e começou muito cedo, logo que clareou o dia.

Por falta de carregadores suficientes, os próprios detentos deveriam conduzir as suas coisas e ainda outras da prisão.

O José Marcelino, um criminoso de morte, foi encarregado de trazer uma grande trouxa.

Pelas ruas da cidade, os presos eram vigiados por soldados embalados e, atrás de todos, vinha o delegado, o Dr. Túlio Moura.

Ao chegar em frente á nova prisão, repentinamente o Marcelino atirou a trouxa á cara do guarda que lhe estava próximo e disparou em vertiginosa corrida pelo largo em direção á igreja do Rosário que contornou, desaparecendo dos olhos dos outros guardas atônitos.

O Dr. Túlio, tomou, então, uma rápida resolução: tirando o revolver, manteve em respeito os demais presos, e ordenou a todos os soldados que ali estavam que perseguissem o preso e o capturassem.

Quem conhece bem Diamantina sabe que, atrás da igreja do Rosário, o terreno é extremamente acidentado, descendo em forte declive para o vale da Palha. Há inúmeros obstáculos, como pedras, árvores, espinheiros, etc., que dificultam a passagem por ali.

Entretanto, o homem corria desabaladamente, depois de ter saltado o muro de trás da igreja.

Os soldados, quando aí chegaram, já foram vê-lo a grande distância, saltando, caindo e levantando-se para tornar a correr. Perderam a esperança de agarrá-lo, porque se chegasse ao Arraial de Baixo encontraria muitas lapas e árvores da Chácara do Juca Neves, onde esconder facilmente até a noite para prosseguir á escapula.

O Dr. Túlio, neste momento, estava longe, não podendo alvitrar-lhes o modo de agir. O prisioneiro distanciava-se e, nesta conjuntura eles próprios resolveram como fazer: ajoelharam-se fizeram pontaria sobre aquele vulto em movimento e abriram fogo. Cinco ou seis espinguardas detonaram quase ao mesmo tempo e algumas repetiram os tiros. O pobre homem, mortalmente atingido, deu um salto e estendeu-se no solo de barriga para baixo.

Constatou-se depois que havia recebido dois tiros no crânio e dois nas costas.

Concluída a macabra tarefa, foram procurar o Dr. Túlio e o cabo, adiantando-se, disse:

- Doutor, tivemos de atirar, senão o homem não seria mais apanhado.

- Quem lhes deu ordem de tal? Exclamou indignado o delegado.

- Ninguém doutor, mas nós tínhamos que resolver, senão o homem iria embora. Além disso, o senhor sabe que nas diligências o criminoso dever ser apanhado vivo ou morto.  

- Sei disso, mas vocês não estavam em diligência e parece que não sabem, o valor da vida humana.

- Paciência, doutor, agora já não há mais jeito.

- Isto vai dar complicações: ponderou o delegado.

Com um rito de amargura, o Dr. Túlio terminou a tarefa e providenciou o recolhimento do cadáver. Este tinha um aspecto horrível e foi recolhido em um lençol. Quando o examinaram encontraram uma pequena bolsa de couro presa por um cordel, que o detento trazia no pescoço.

Ao abrirem, a surpresa foi maior; lá estava, aparentemente, uma partícula e um bilhete. Neste, o detento explicava que era a hóstia consagrada que recebera no dia da comunhão. Ele acreditava que a sagrada partícula o livraria das balas dos soldados.

O fato foi levado ao conhecimento do Sr. Arcebispo que, pessoalmente, foi á prisão para recolher a partícula sagrada.

Mais tarde, um jornal de Belo Horizonte, por motivos políticos, quis levantar a hipótese da culpalidade do Dr. Túlio, na trágica ocorrência.

Este jovem delegado estava, entretanto, tão isento de culpa que, o rigoroso inquérito instaurado provou, desde logo, a sua completa inocência.

Mourão, Paulo Krüger Corrêa, VD., pág 4, nº 14, 1948.

Gírias diamantinenses: Pagar a cabrita é dar ou oferecer bebidas, quando alguém é agraciado com uma nomeação qualquer, faz anos, é elogiado, etc. Amarrar-se é o gesto de uma mortal, quando pede casamento, e se diz: vai amarrar-se..., ou ficar preso... enforcar-se...

Estar pisando, apertado, que significa um indivíduo em apuros, comprometido, embaraçado; Quera, Guancha, no sentido de feio, palerma, incapaz de agir, de produzir, que faz tudo mal feito; Patife, quando é fraco, pusilanime, medroso, etc, em vez de brejeiro, maroto; Fintar não pagar o que deve, quando fintar significar impor finta a ...; Nesta cidade, na parte alta, existe uma rua ou coisa que pareça, com nome de Rua do Fintador, porque por ela passam os que devem e não pagam a seus credores da rua de baixo.

Encher o picoá (vocábulo indígena), que significa tirar fininho, namorar.

Tomar melosquete, beber aguardente (cachaça).

Virar a casaca, abandonar um partido e filiar-se a outro.

Entupir, arrolhar, não deixar falar.

Azedo, quando alguém está nervoso, encolerizado.

Lavar a tábua, quando foi recuperado pelo pai da namorada o pedido de casamento.

JAN, Voz de Dtna, 1949.