A Missa das Almas

25-02-2011 08:32

    As cidades antigas são cheias de histórias, mitos e lendas movimentadas; Diamantina tem também as suas lendas, transmitidas de geração em geração, de mães a filhos, pela boca das velhas mucama, por escrito em velhos papéis de autores desconhecidos.

    Muitas tradições tendem a desaparecer. As próprias casas de telhados arqueados, com beirais "cachorros do século XVIII", já de muito teriam deixado de existir para dar lugar a desgracioso "bangalôes", ou "missões" ou "normandos", não fosse a ação fiscalizadora do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, aliás tão impopular ali.

    Entretanto, a missa da madrugada ainda se celebra até hoje.

    Esta missa, desde da época remota, é dita ás 4 horas da manhã, na velha Sé, de saudosa memória. Esta magnifica e vestuta igreja foi demolida para, em seu lugar, se fazer um inexpressiva imitação do barroco, em pleno século XX.

    Após a missa, segundo hábito antigo, as pessoas que saíam da igreja costumavam comprar o afamado bolo de arroz ainda quente do forno, com delicioso sabor, sobretudo se tomado com café.

    A missa acabava ás cinco horas e permitia ás pessoas voltarem para casa e ainda dormir até mais tarde.

    Quando havia bailes, no Sábado, em casa de alguma família, o seu término era sempre marcado para ás quatro horas, afim de que as pessoas pudessem ouvir a missa antes de irem para a casa repousar.

    Mesmo em época de verão, ás quatro horas da madrugada ainda está escuro.

    Então, meia hora antes da missa, o velho bronze da Sé anuncia - aqueles que não têm relógio.

    Diz a lenda que uma velha preta, lavadeira, de nome Aninha, acordou ouvindo o sino e levantou-se apressada para a missa. Saiu de casa, levando na cabeça a trouxa de roupa que lavava para uma família da rua do Amparo. A preta tencionava deixar a trouxa atrás da porta da igreja, enquanto assistisse á cerimônia para, em seguida, levá-la a entregar na casa, depois das cinco horas da manhã.

    Quando chegou ao adro, viu que a igreja estava ás escuras, com exceção de duas velas no altar. Notou, com estranheza, que as pessoas assentadas no chão, conforme o velho costume da Terra, estavam embuçadas em panos brancos e procuravam esconder o rosto. Algumas, que, não obstante ela pode ver, tinham a cara pálida de assustar.

    O padre subiu no altar, paramentado de preto e iniciou logo o santo sacríficio, como normalmente. Entretanto, o silêncio era aterrorizante. Nem ao menos se ouviam as contínuas tosses, tão comuns em missa cedo.

    Sia Aninha sentia-se em um mundo irreal. Não obstante ouviu a missa e rezou muito pelas almas das pessoas que lhe eram queridas e para as mais necessitadas.

    Quando acabou a cerimônia, viu saírem pela porta aqueles vultos embuçados e silenciosos.

    Ela foi uma das últimas a se levantar. Finalmente, resolveu ir-se embora e foi buscar a trouxa atrás da porta. Não tinha forças para pô-la na cabeça, o que atribuiu ao fato de estar em jejum desde de muito cedo. Precisando de auxílio, foi ao adro, onde viu dois homens: um magríssimo  e de estranha palidez e outro um pouco mais gordo, mas estava afastado.

    A necessidae fez-lhe perder o temor e dirigiu-se ao primeiro:

- Bom dia, meu senhor. Poderá me ajudar a colocar a trouxa de roupa na cabeça?

- Impossível, respondeu este em um sussurro e com uma fina voz de falsete.

- Porque? Fez a mulher.

- Porque estou fraquíssimo. Morri de diarréia. Peça aquele outro mais gordo que morreu de tiro.

    Desnecessário será dizer que a mulher abandonou a trouxa e desandou a correr como uma louca pela rua Direita abaixo, sem olhar para trás.

    Este é o fato que nos trouxe a tradição.

    Verosemelhança?

    Existe sim. Não poderia ter sido uma simples brincadeira de algum rapaz brejeiro para se divertir á custa da velha preta?

    Aí está toda a questão.

Mourão, Paulo Krugger, Voz de Dtna, 1948.