A reconstrução do antigo distrito Diamantino

04-04-2014 08:41

 

ISSN 0103-8427 Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011

 

Viajantes e Naturalistas do século XIX: A reconstrução do antigo Distrito

Diamantino na Literatura de Viagem

Fabrício Antonio Lopes1, Alcione Rodrigues Milagres1, Danielle Piuzana2, Marcelino Santos de Morais2

RESUMO

O município de Diamantina apresenta uma rara possibilidade de investigar diversos aspectos da

vida cotidiana cuja ocupação remonta no mínimo ao século XVII. Isso se justifica pela região ter

sido intensamente descrita, reescrita e interpretada por Viajantes e/ou naturalistas que vieram ao

Brasil atraídos, principalmente, pelas jazidas minerais. Apesar do foco em minerais preciosos esses viajantes e/ou naturalistas descreveram em seus cadernos de campo (que posteriormente vieram a se tornar livros) aspectos de cunho biológico, antropológico, mineralógico, sociológico, geográfico e geológico do Brasil oitocentista. Essas descrições de importância interdisciplinar vieram a contribuir com a historiografia brasileira e permite o resgate geográfico, histórico e cultural de uma região que foi economicamente importante para o Brasil e que atualmente seu principal centro colonial é considerado Patrimônio Cultural da Humanidade. Este trabalho enfatiza no conceito da paisagem embasado pela descrição e compreensão dos processos históricos do uso e ocupação do solo. A representação cartográfica dos caminhos feitos pelos viajantes contribui com informações físicas, sociais e histórico-culturais possibilitando uma melhor localização dos principais pontos naturais e históricos citados nas obras, o que pode gerar um renascimento do sentimento de pertencimento das comunidades, principalmente as rurais, ao espaço que hoje habitam.

Palavras chave: Naturalistas, Viajantes, Cartografia, Paisagem e Territorialidade.

Travelers and Naturalists of the 19th century: The reconstruction of the Old

Diamantino District in the literature of travels

ABSTRACT

The municipal district of Diamantina presents a unusual opportunity to investigate aspects of the

daily life whose occupation remounts at least the XVIIth century. That is justified for that area was

described intensely, rewritten and interpreted by travel naturalists that came to Brazil mainly

attracted for the mineral beds. Despite the focus on precious minerals, they described in field

notebooks (which became books later) aspects of biology, anthropology, mineralogy, sociology,

geography and geology issues of the Brazilian nineteenth-century. Those interdisciplinary

descriptions came to add with the Brazilian historiography and it allows to make geographical,

historical and cultural rescue of an area that was economically significant to Brazil and nowadays

its principal colonial village is considered Unesco World Heritage site. This work emphasizes in the

concept of the landscape based on description and understanding of the historical processes of the use and occupation of this area. The cartographic representation of the roads done by the travelers it contributes with information physical, social and historical-cultural making possible a better location of the main natural and historical points mentioned in the works, which can generate a renaissance of the belonging feeling of the communities, mainly the rural ones, to the space that today inhabit.

Key words: Naturalists, Travels, Cartography, Landscape and Territoriality

ISSN 0103-8427 Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011

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1. INTRODUÇÃO

No início do século XIX os europeus controlavam 35% das terras habitáveis do planeta e cem anos mais tarde, em 1914, passaram a controlar 84% dessa área (AMORIM FILHO, 2008). Observa-se nesta afirmação o quanto foram importantes as expedições dos viajantes e naturalistas durante todo século XIX para expansão do conhecimento do ecúmeno, pois, apesar de ter a posse de colônias, as metrópoles europeias não detinham o conhecimento necessário para explorar seus bens naturais de forma que contribuíssem com sua economia e industrialização. Para isso, foram implantados departamentos e laboratórios de botânica, zoologia, geografia, etnologia, literatura e geologia nas principais universidades europeias, e posteriormente, a partir de 1821, foram criadas diversas sociedades geográficas que patrocinavam as expedições e viagens de exploração (TABELA 1). Ao final das expedições, os viajantes deviam apresentar seus resultados, relatos orais e relatórios escritos nos eventos essas sociedades. Todo conhecimento acumulado constituiu acervo bastante rico que contribuiu para executar interesses da metrópole sobre a colônia, conforme Amorim Filho (2008):

Neste sentido, o século XIX parece ser o apogeu de todo tipo de expedições para o melhor conhecimento do mundo. Além disso, é certamente o momento histórico de maior prestígio para a já antiga atividade geográfica, que atinge o status de disciplina acadêmica, status este que, a partir da Europa, se generaliza rapidamente por quase todo mundo

(AMORIM FILHO, 2008, p. 110).

 Muitos foram os viajantes/naturalistas estrangeiros, financiados pelas sociedades de geografia, que estiveram no Brasil no século XIX por objetivos distintos e que contribuíram, através de seus relatos, para a produção científica da época. Tal fato se deu uma vez que não existiam estudos profundados das riquezas naturais, sociais e econômicas da colônia portuguesa. Na Tabela 2 encontram-se dados sobre estes viajantes/naturalistas em ordem cronológica de visitas efetuadas no Brasil, segundo Martins (2007). Parte do incentivo à vinda desses pesquisadores foi a mudança da família real, em 1808, para as terras Brasilis: Para o Estado português, o conhecimento pormenorizado da colônia era vital para o empreendimento das reformas necessárias à adaptação do sistema. O domínio destas informações consistia, antes de mais nada, expressão de seu poder. À maior centralização do poder monárquico, concretizada a partir de Pombal, correspondia a crescente necessidade de apreensão mais exata do Reino e da Colônia: conhecer para poder decidir (FURTADO, 1994, p.15).

A área deste estudo encontra-se no município de Diamantina, localizado no Estado de Minas Gerais e apresenta uma espetacular possibilidade de investigar diferentes aspectos da vida cotidiana de uma região que ainda são conduzidos por uma herança cultural que remonta, no mínimo, ao início do século XVIII. A descoberta de diamantes na região de Diamantina data de 1714, tendo sido reconhecida pela Coroa Portuguesa em 1730. Nesta mesma década, para garantir um eficaz sistema de extração da gema, o governo enviou especialistas para analisar, controlar e demarcar as terras do distrito minerário, denominado Distrito Diamantino, o qual abrangeu uma área maior do que ao atual limite municipal Para a região deslocaram-se principalmente paulistas, portugueses e negros, ao lado de outros estrangeiros em número menor. Nas palavras de Couto (1954) “O ouro passou a ser satélite do diamante. A terra desvirginada mostra, no seu leito recamado de ouro, a pedra que fascina e encanta. Enche-se o distrito diamantino de aventureiros, beleguins e tropas”. A formação territorial promovida pela exploração do diamante deixou marcas nas diversas paisagens desta região, marcas essas que se fundaram nesse sincretismo cultural. Desse fato resultou uma estratificação étnica que, aliada às questões sociopolíticas e às condições do meio ambiente físico, definiram a originalidade da paisagem do século XVIII não somente na região do Tijuco, mas em toda região do Alto Jequitinhonha e tudo isso foi reconhecido e descrito pelos viajantes/naturalistas cujas obras estudadas nesta pesquisa, permitem fazer um resgate histórico cultural de uma região que foi economicamente importante para o Brasil e hoje, seu principal centro histórico (Diamantina) é considerado patrimônio da humanidade. Há de se relevar que muitos escritores defendem a ideia de que estas obras carregam um preconceito sobre a população brasileira já que no contexto histórico, o Brasil estava por civilizar e o europeu por se considerar uma raça superior teria as condições necessárias para dar o refinamento cultural ao brasileiro: Mas essas narrativas precisam ser lidas com cuidado porque carregam uma marca de determinados preconceitos europeus. A ideia da superioridade do complexo cultural europeu transparece nas opiniões dos viajantes, a miúde negativas, sobre as gentes do Brasil. Opiniões e comentários maledicentes que estavam associados às concepções em voga sobre a inferioridade das raças de cor e de seus descendentes (MARTINS, 2007, p.66). Entretanto, o presente trabalho tenta ressaltar não o olhar do “colonizador”, mas sim a riqueza de detalhes envoltos nos aspectos geológicos, geográficos e biológicos, que são fatores a ser utilizados neste estudo da paisagem.

ISSN 0103-8427 Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011

 

LIMITES DO DISTRITO DIAMANTINO NO SÉCULO XVIII

Figura 1 - ISSN 0103-8427 Caderno de Geografia, v.21, n.36, 2011

 

Tabela 1 – Lista das sociedades de Geografia criadas no século XIX.

Fonte: Site da Société de Géographie de Paris, 2008 apud Amorim Filho, 2008 p.111.

1.2. OBJETIVOS DO TRABALHO

O objetivo geral da pesquisa foi à descrição ambiental de alguns dos caminhos feitos pelos viajantes que estiveram no antigo Distrito Diamantino no século XIX, focando na ocupação histórica e relatos sobre a paisagem de trechos como Diamantina – Guinda – Sopa - São João da Chapada e Diamantina – Extração.

Entre os objetivos específicos podemos citar: Elaboração de um contexto historiográfico regional, apoiado em fontes primárias;  Produção de documentação cartográfica com a localização e inserção dos marcos geográficos na paisagem e caracterização fisiográfica dos caminhos percorridos ao longo das jazidas minerais exploradas no passado;  Criação de um acervo fotográfico destas rotas relacionado ao mapa;  Descrição e avaliação das alterações na paisagem promovida pela ocupação humana e pela mineração.

2. MATERIAIS E MÉTODOS

2.1. LOCALIZAÇÃO DA ÁREA DA PESQUISA E CARACTERIZAÇÃO FISIOGRÁFICA.

O antigo Distrito Diamantino encontra se na porção meridional da Serra do Espinhaço, onde as paisagens se apresentam de maneira singular do ponto de vista geológico e geomorfológico, devido à especificidade dos agentes e processos que foram responsáveis por sua formação. Sua toponímia remonta ao Barão de Eschwege, um importante engenheiro de minas e geólogo com enfoque em mineralogia, que veio ao Brasil na segunda década do século XIX (Tabela 2) com o objetivo de observar, obter informações e tentar aplicar as técnicas de extração do ouro já existentes na Europa para aumentar a arrecadação do mesmo. Eschwege fez muitas observações sobre a geologia brasileira, em uma delas batizou a Serra do Espinhaço:

Uma dessas principais cadeias montanhosas, chamada em alguns lugares de Serra da Mantiqueira, encerra os pontos mais altos do Brasil, tais como o Pico do Itacolumi perto de Vila Rica, a Serra do Caraça junto a Catas Altas e o majestoso Pico do Itambé, perto da Vila do Príncipe, e atravessa, pelo norte, as províncias de Minas Gerais e da Bahia seguindo até Pernambuco e para o sul, a de São Paulo até o Rio Grande do Sul. A ela denominei Serra do Espinhaço (“Rückenknochengebirge”), não só porque forma a cordilheira mais alta, mas, além disso, é notável, especialmente para o naturalista, pois forma um importante divisor não somente sob o ponto de vista geognóstico, mas também é de maior importância pelos aspectos da fauna e da flora. [...] As regiões ao leste desta cadeia, até o

mar, são cobertas por matas das mais exuberantes. O lado oeste forma um terreno ondulado e apresenta morros despidos e paisagens abertas, revestidas de capim e de árvores retorcidas, ou os campos cujos vales encerram vegetação espessa apenas esporadicamente. O botânico encontra, nas matas virgens, plantas completamente diferentes daquelas dos campos e o zoólogo acha uma outra fauna, especialmente de aves, tão logo passe das matas, pela Serra do Espinhaço, para os campos. (ESCHWEGE,2005, p. 99).

Tabela 2 – Viajantes que estiveram no Brasil no século XIX.

Fonte: Modificado de Ribeiro, 2005, p.365.

A Serra é uma região com cerca de 1200 km de extensão na direção aproximadamente norte-sul, abrangendo áreas dos estados de Minas Gerais e Bahia. Sua porção meridional estende-se por cerca de 300 km localizada integralmente em território mineiro e constituindo um dos principais marcos geográficos deste estado.

Viajantes Nacionalidade Formação/Profissão Época de passagem no Brasil

John Mawe Inglês Comerciante 1809-1810

G.W. Freireys Russo Naturalista 1814-1815

Barão de Eschwege Alemão Mineralogista 1811 -1821

Auguste de Saint-Hilaire Francês Botânico 1817 - 1822

John Luccock Inglês Comerciante 1817 - 1818

K. Martius e J. Spix Alemães Zoólogo/Botânico 1818

Johann E. Pohl Austríaco Médico e Botânico 1818, 1820 - 1821

Barão de Langsdorff Alemão Naturalista 1825

Alcide D' Orbigny Francês Naturalista 1833 - 1834

Charle J.F. Bunbury Inglês Naturalista 1834-1835

George Gardner Inglês Médico naturalista 1840

Johann Jakob Von Tschudi Suíço Naturalista 1858

Louis Agassiz Americano Geólogo 1864 - 1866

Richard Francis Burton Inglês Geógrafo/Diplomata 1867

James Wells Inglês Engenheiro 1875

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Esta região tem sido objeto de estudos de cunho geológico pelo menos desde o início do século XVIII. O acervo bibliográfico existente sobre a região, decorrente da descoberta dos depósitos diamantíferos no século XVIII, é vasto e distribuído em diversas publicações. O relevo da serra é marcadamente agressivo com altitude geralmente superior a 1000 m, alcançando um máximo de 2002 m de altitude no Pico do Itambé, localizado a cerca de 30 km a sudeste de Diamantina. Tal elevação foi um importante marco geográfico natural na orientação das viagens entre o Distrito Diamantino e demais localidades. Topograficamente, discute-se sua denominação, pois por ser considerada um vasto conjunto de terras altas ao invés de ser chamada de serra, deveria levar o nome de Planalto de Diamantina (ABREU, 1982) e mais tardiamente Planalto Meridional do Espinhaço (SAADI, 1995), o que corrobora em sua importância como área de passagem e não como empecilho a ocupação interiorana. Este planalto compreende um divisor de três grandes bacias hidrográficas, que são as bacias dos rios Jequitinhonha, São Francisco e Doce. A paisagem gerada pelo entalhamento das rochas predominantemente quartzíticas da Serra do Espinhaço, com a formação de elevações e espigões de formas diversas, é de extrema beleza, a qual sempre presente nos relatos e descrições dos viajantes. O quadro final é dado pelo contraste

entre os rochedos e as superfícies mais baixas, que geralmente são cobertas por vegetação singela. Estas superfícies constituem extensos pediplanos onde existem intercalações de litologias mais susceptíveis à decomposição. A presença do diamante, mineral que possibilitou a constituição do antigo Distrito Diamantino, ainda é cenário de discussões sobre sua origem. Consenso é de que as unidades litológicas diamantíferas encontram-se na Formação Sopa-Brumadinho, uma das unidades basais do Supergrupo Espinhaço de vasta ocorrência na Folha Diamantina.

 O procedimento metodológico ocorreu em etapas distintas e de forma qualitativa. Primeiramente foi realizado estudo detalhado dos caminhos percorridos pelos viajantes e naturalistas. Além disso, foi realizado levantamento de dados fisiográficos que caracterizam a Serra do Espinhaço Meridional. Uma vez realizada a primeira etapa, passou-se à identificação e espacialização de informações contidas nos relatos para base cartográfica. Foi utilizada a carta topográfica de Diamantina (Folha SE-23-Z-A-III, Escala 1:100.000). Tal procedimento permitiu a espacialização de possíveis rotas percorridas no século XIX por meio de comparação entre marcos geográficos descritos pelos viajantes e marcos geográficos representados na carta topográfica tais como nomes de rios, córregos, ribeirões, regiões, atuais distritos, além de outros atributos geográficos. Esta etapa subsidiou as atividades de campo. Os trabalhos de campo foram realizados da sede municipal de Diamantina em direção aos distritos de Extração e Capão Mata-Mata e Guinda, Sopa e São João da Chapada.

 Em campo buscou-se uma comparação da paisagem e ocupação do solo descritos nos diversos momentos históricos do século XIX e nos dias atuais, o que possibilitou identificar elementos na paisagem que permitiram entender os fatores que condicionaram a modificação do espaço neste intervalo temporal. As coordenadas geográficas de marcos geográficos e históricos impressos na paisagem e relatados nas obras dos viajantes foram obtidos pelo sistema GPS e tratadas nos softwares ArcGis, TrackMaker e Corel Draw para reconstrução cartográfica dos caminhos percorridos e que serviram de base para as interpretações deste trabalho.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Na primeira campanha de campo, foi realizado um percurso na parte oriental da atual cidade Diamantina onde se encontram antigos serviços de extração de diamantes; os serviços de Curralinho e Mata-Mata. O embasamento teórico para tal trabalho baseou-se em relatos de dois viajantes, Richard Francis Burton e Auguste de Saint-Hilaire devido à maior riqueza de detalhes referentes aos aspectos físicos, econômicos, sociais e culturais do Distrito Diamantino presentes em suas obras. As referidas obras possuem vastas informações presentes em várias áreas do conhecimento acerca da região estudada. Mais precisamente na porção oriental do Distrito Diamantino, no percurso para a região de Curralinho e Capão do Mata-Mata Auguste de Saint-Hilaire e Richard Burton descreveram toda composição paisagística dos locais por onde passaram – vegetação, composição litológica e rios – dos quais a maior parte das designações de marcos geográficos perduram até hoje, como observado na carta topográfica de Diamantina, dentre eles: o córrego Junta-Junta , o Ribeirão do Inferno, o Pico do Itambé, a Montanha Maravilha. Burton (1983) cita: “Em torno de nós, viam-se habituais afloramentos de itacolomito quartzoso...” (p. 100). A denominação para o itacolomito quartzoso citado é o quartzito (com mais ferro em sua composição), rocha predominante da Serra do Espinhaço. No caminho para o Capão Mata-Mata, Burton (1983) descreve a vegetação denominada por ele de “tabuleiro”, uma mata fechada em um local de difícil acesso, este caminho foi inferido e representado mapa da, por conter características como descritas pelo viajante. Em trabalho de campo, notou-se que a paisagem descrita pelo naturalista ainda apresenta-se no mesmo contexto do Século XIX, ou seja, as matas presentes no relevo tabular, enclaves de mata Atlântica, encontram-se quase que intactas na paisagem atual dificultando ainda a acessibilidade para essa região. Ao passar pelo Ribeirão do Inferno, em 1817, Saint-Hilaire descreve que o leito deste rio foi posto a seco e que suas águas foram desviadas para um canal artificial por causa do garimpo: Ao fundo do Vale corre um regato chamado Ribeirão do Inferno; seu leito foi posto a seco, sendo suas águas desviadas para um canal artificial, muito acima do leito verdadeiro; grandes pedras que os trabalhadores haviam deslocado com dificuldade jaziam esparças aqui e acolá; enfim, de todos os lados viam-se montes de terra e montanhas de cascalho (SAINT-HILAIRE, 2004, p. 36).

Ainda sobre o Ribeirão do Inferno, Richard Burton, em 1867, relata que: antes esse rio era muito difícil de atravessar e por isso lhe foi dado o nome de Inferno: [...] atravessamos, em uma boa ponte, o ribeirão, chamado pelos antigos viajantes de Inferno, por causa das dificuldades que oferecia (BURTON, 1976, p. 100). Hodiernamente, o referido trecho do ribeirão ainda guarda marcas das atividades minerarias do Século XIX, porém tal constatação foi realizada com um olhar extremamente aguçado, pois evidências de uso e ocupação às suas margens mostram através de edificações tanto do Século XIX como do Século XX a intensiva exploração mineral que teve como consequência o seu assoreamento. O que se pensa como atual processo de assoreamento do Ribeirão do Inferno na verdade remonta do Século XIX, ou até mesmo antes. Portanto, todas as mazelas trazidas pelo

assoreamento não são específicas da mineração contemporânea. Fato este se comprova na

leitura dos dois viajantes quando da descrição de suas passagens pelo ribeirão.

 

A segunda campanha de campo foi realizada no caminho Diamantina-São João da Chapada, passando por Guinda e Sopa  e para este trabalho, focalizou-se na obra de quatro viajantes: John Mawe, Auguste de Saint-Hilaire, Johann Jakob Von Tschudi e Richard Burton. Da mesma forma que no caminho para Curralinho (atual Extração) e Capão Mata Mata, observa-se que no percurso entre Diamantina e São João da Chapada o nome de muitos dos marcos geográficos citados nas obras perduram até hoje tais como Tromba D’Anta, Córrego Morrinhos, Rio Caldeirão e Morro Redondo identificados. Entretanto, há locais cujos nomes são designados de forma diferente entre os viajantes, como o caso de São João da Chapada, conhecida por de Aldeia de Chapada nos relatos de Saint-Hilaire, São João na obra de Tschudi e São João do Descoberto nas descrições de Burton. O pico do Itambé, designado “Espigão Mestre” por Burton é avistado desse local e descrito como o grande divisor de águas ao norte para o Rio Jequitinhonha e ao Sul para o Rio das Velhas. Era, ainda, um atributo natural de orientação para os viajantes como pode ser observado. Tendo por base os relatos, observa-se que a região, às vistas dos naturalistas, não era mais economicamente importante quanto à extração dos diamantes; Saint-Hilaire, em 1817, já descrevia sua escassez: “[...] Os regatos que correm por Chapada deram outrora muitos

diamantes, mas agora a maioria está esgotada [...]” (SAINT-HILAIRE, 1974, p.24).

 Provavelmente, Saint-Hilaire, Burton e Tschudi visitaram o local por causa dos serviços de diamantes de Rio Pardo e Córrego Novo, localizados à Oeste de São João da Chapada e importantes pelo fato de terem fornecido os diamantes mais preciosos do Brasil, conforme o viajante John Mawe descreveu, em 1808, ao passar pela região:

Embora lamacento e pouco considerável, o Rio Pardo produziu tantas pedras belíssimas quanto qualquer outro rio do distrito. Nele se encontram os diamantes verde-azulados, antigamente tão apreciados pelos holandeses. As pedras desse córrego são ainda hoje tidas como as mais preciosas do Brasil (MAWE, 1978, p. 160).

Durante o trajeto (Diamantina – São João da Chapada), observam-se áreas que permanecem quase intactas no que se refere às “longas planícies” e sua composição vegetal. Locais de ocorrência dos metaconglomerados diamantíferos, vertentes e córregos próximos a estas rochas sofreram amplas interferências antrópicas e esse quadro ocorre devido ao uso de máquinas como bombas de água, dragas e dinamites. Quanto ao garimpo artesanal, não se percebe impactos significativos ao ambiente natural.

4. CONCLUSÕES

Uma primeira consideração é que no decorrer desta pesquisa embasou-se em uma linha de pensamento da geografia denominada geografia humanista-cultural, pois trata das percepções, representações e cognições do ambiente geográfico e de seus “lugares e paisagens valorizados” (AMORIM FILHO,2008). Neste sentido, a percepção de um viajante naturalista do século XIX é bastante diferente daquela que se dispõe hoje, entretanto tal comparação é a melhor forma de analisar a paisagem em dois momentos distintos (século XIX e século XXI); uma vez que seus estes relatos consistem em documentos de fácil acesso e irrestritos, diferente de diversos documentos historiográficos do poder público que não se encontram disponíveis para esta região. A representação cartográfica dos caminhos feitos pelos viajantes contribui com a melhoria do conhecimento sobre a realidade do antigo Distrito Diamantino, uma vez que a identificação em mapas atuais de elementos descritos no século XIX permitiu que fossem seguidos os itinerários dos naturalistas; ademais, auxiliou na contextualização das mudanças da paisagem e territorialidade vinculadas às informações geológicas, hídricas, sociais e histórico-culturais que possibilitam uma melhor localização dos principais pontos naturais e históricos retratados nas obras, o que pode gerar um renascimento do sentimento de pertencimento das comunidades ao espaço que hoje habitam. Foi evidenciado que desde o século XIX a paisagem vem sofrendo constantes mudanças devido a fatores econômicos. Tais modificações são principalmente causadas pelo extrativismo mineral, que levou à necessidade de intervenção de órgãos ambientais à proibição da maior parte de garimpos e minerações de diamante na região, imposta legalmente através da Constituição Federal de 1988 e da legislação ambiental que atuou com a ajuda da imposição de Áreas de Proteção Ambiental – APA da Águas Vertentes e da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço (SATHLER, 2008).

 Nota-se a necessidade de estudos aprofundados dessas obras que podem fazer um resgate histórico de um patrimônio extremamente importante para história ambiental de Minas Gerais, sendo esses relatos, importantes fontes para o entendimento da evolução da paisagem. Quanto às fontes etnográficas encontradas na forma de desenhos presentes em várias das obras analisadas, entende-se que são de grande importância nestes estudos, pois, apresentam a forma como os viajantes percebiam a paisagem. Essa atividade, realizada no ato do trabalho de campo, era bastante valorizada dentro da geografia e áreas afins durante os anos oitocentistas, hoje praticamente deixada de lado. Entretanto, também é preciso ler essas imagens com cuidado, pois apesar de nos fornecer dados primários, podem apresentar erros provenientes do ato de tradução e (re) edição, o que pode ser um empecilho nas pesquisas relacionadas ao tema.

AGRADECIMENTOS

A.A.Lopes e A. R. Milagres agradecem

à Bolsa de Iniciação Científica da

FAPEMIG/UFVJM. Os autores agradecem

ainda ao Rommel Machado, responsável pela

Biblioteca Professor Reinhardt Pflug da Casa da

Glória, IGC/UFMG, pelo apoio com as obras

consultadas.

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1981 [1823], 231p.

TSHUDI, J. J. von. Viagens através da

América do Sul. Belo Horizonte: Coleção

Mineiriana, Fundação João Pinheiro, vol.2,

2006. 341 p.

1- Bacharéis em Humanidades. e-mail:

fabricioantoniolopes@gmail.com

2- Professores do Bacharelado em Humanidades da

UFVJM. E-mail: dpiuzana@yahoo.com.br