Administração Diamantina

15-09-2011 11:42

7 Tempo
Relações de poder no Tejuco
ou Um teatro em três atos
Júnia Ferreira Furtado *
I. Prólogo
Ao longo do tempo, a historiografia salientou a especificidade das relações de
poder tecidas no Distrito Diamantino no período do monopólio régio dos diamantes,
que se estendeu entre 1771 e 1830. Segundo esses autores, a administração especial
criada para ordenar a produção e controlar a população local, a Real Extração, aliada a
uma legislação rígida e autoritária, o Regimento Diamantino de 1771 ou Livro da Capa
Verde, teriam criado ali um mundo à parte, extremamente controlado e ordenado.1
Raimundo Faoro afirmou que o Regimento Diamantino foi “o instrumento mais duro,
cruel e tirânico dos três séculos de domínio metropolitano”.2 Silvio de Vasconcelos
acentuou o isolamento urbano do arraial do Tejuco, provocado pelo controle
administrativo.3 Caio Prado Jr. chegou a comparar o Distrito a um quisto, um presídio
a céu aberto, onde a coroa teria conseguido enfim impor seu autoritarismo e alcançado
o ideal de uma população atemorizada e sob severa vigilância.4 Mais recentemente,
Laura Mello e Souza acrescentou que “o território diamantífero foi o exemplo mais
* Professora Adjunta de História do Brasil – UFMG. Doutora em História Social pela USP.
1. A política administrativa para a área diamantífera foi variada. Inicialmente, estabeleceu-se a livre extração e o
acesso às lavras se dava pelo pagamento da taxa de capitação. Entre 1734 e 1739, a exploração diamantífera foi
totalmente proibida e foi criada a Intendência dos Diamantes. Entre 1739 e 1770, vigorou o sistema de contratos;
permanecendo o comércio das pedras como monopólio da coroa. Em 1771, dentro das reformas pombalinas, o
diamante foi declarado monopólio régio e criada a Real Extração, que tinha como objetivo a exploração das
lavras e o controle da região, sendo o Intendente dos Diamantes seu dirigente. Foi então editado o Regimento
Diamntino de 1771.
2.Raymundo Faoro, Os donos do poder, Porto Alegre, Globo, 1976, vol. 1, pp.224-5.
3. Silvio de Vasconcelos, "A formação urbana do arraial do Tejuco", Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Rio de Janeiro, v.14, 1959, pp.132-4.
4. Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo, 16a. ed, São Paulo, Brasiliense, 1979, pp.181-5.
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vivo da violência alcançada pela máquina administrativa colonial, da iniqüidade da sua
Justiça, da arbitrariedade de suas medidas”.5
Consulta à documentação encontrada no Arquivo Público Mineiro revelou que a
política administrativa instalada no Distrito Diamantino encontrava os mesmos
alcances e limites que nas demais áreas da Capitania das Minas.6 A edição de
legislações autoritárias e a criação de órgãos e administradores poderosos encontravam
limites na maneira como o poder se originava e distribuía desde o Reino. O caráter
patrimonial do Estado,7 a distância do centro do poder, a investidura privada dos
cargos, a inexatidão da noção de corrupção, a prebenda como forma principal de
remuneração dos administradores – em particular os de caráter fiscal e judiciário –
tudo contribuía para que se tornasse quase impossível separar os interesses públicos
dos privados.
A historiografia recente tem avançado na discussão da natureza do poder nas
colônias portuguesas. Maria Odila Leite da Silva Dias, em artigo pioneiro, chamou a
atenção para a necessidade de estudar essa relação para além da dicotomia entre
colônia e metrópole, ressaltando a interiorização dos interesses metropolitanos a partir
da difusão do comércio.8 António Manuel Hespanha salientou o papel das redes
clientelares de poder no Império Português 9. A J. Russell-Wood estudou as dinâmicas
das interações entre metrópole e colônia e a formação da identidade brasileira.10
Pandiá Calógeras acreditou que, no caso do Distrito Diamantino, a autonomia e
o excesso de poder conferidos aos Intendentes dos Diamantes teriam corrigido as
distorções da administração de além-mar e permitido a efetividade da política
despótica e autoritária intentada pela metrópole.11 O estudo das relações de poder que
foram tecidas no Distrito – passando pela Capitania e pelo Vice-Reinado do Rio de
Janeiro e atingindo Portugal – desnudaram que não só a autonomia dos intendentes
nunca existiu ou foi pretendida pela coroa, como seu poder era revestido de caráter
contraditório. Eram os mesmos paradoxos que faziam com que as autoridades fossem
acusadas ora de discricionárias, ora de inoperantes, ou até mesmo de corruptas,
provocando a sensação de desgoverno e de que nas Minas tudo estava fora do lugar.
Porém, quando esses funcionários corruptos eram confrontados com a lei, em
processos que geralmente se arrastavam durante anos, pouco ou quase nada se
conseguia provar.
5. Laura Mello e Souza, Desclassificados do ouro, Rio de Janeiro, Graal, 1982, p.135.
6. Júnia Furtado, O Livro da Capa Verde: a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração, São
Paulo, Anna Blume, 1996.
7. Segundo Weber, quando a prebenda assume a forma de principal sustento do servidor, o Estado revela seu
caráter patrimonial. (Max Weber, "Os tipos de dominação", in Economia e sociedade, México, Fondo de
Cultura, 1994, cap. 3, pp.172-173)
8. Maria Odila Leite Dias, "A interiorização da metrópole", in Carlos Guilherme Motta (org), 1822 – Dimensões,
São Paulo, Perspectiva, 1982, pp.160-184.
9. António M. Hespanha e Angela Xavier, "As redes clientelares", in José Matoso, História de Portugal. O
Antigo Regime (1620-1827), Lisboa, Editorial estampa, 1993, v.4, p.381-393.
10. A.J.R. Russell-Wood, From colony to nation – essays on Independence of Colonial Brazil, Baltimore, Johns
Hopkins University Press, 1975.
11. João Pandiá Calógeras, As Minas do Brasil e sua legislação, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1904,
pp.303-4.
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O sétimo Intendente dos Diamantes, Modesto Antonio Mayer, que ocupou o
cargo entre 1801 e 1806, em sua descrição do destino dos intendentes precedentes,
mostra o estreito fio em que se equilibraram esses pequenos régulos, entre a legalidade
e a severidade de um lado e a devassidão e a corrupção de outro. São suas palavras: “O
arraial do Tejuco e Demarcação Diamantina foram sempre um covil de intrigantes e
um foco de intrigas e calúnias contra os indivíduos particulares, contra mandantes,
contra ministros e contra todos aqueles que desagradavam pela sua honesta conduta ou
obstavam pela sua posição a sórdidos e culpáveis interesses”. O 2o intendente “se viu
precisado a defender-se de mil imputações”. O terceiro “morreu fora do serviço e no
Real degredo”. O próximo, “espaudado das tempestades e tormentas”, “tomou o
partido de expor-se o menos que pudesse, tendo-se em casa, a título de moléstias” e
“foi, com esse sistema, o mais bem livrado”. O quinto “foi acusado da maior parte dos
cargos que possam manchar e denegrir a reputação de um magistrado”. Finalmente,
seu antecessor, “à exceção do crime de peculato, foi representado como criminoso em
todos os sentidos”.12
Há evidentemente exagero nas palavras de Modesto Mayer. Das rusgas e
conflitos entre moradores e intendentes surgiram diversas acusações, mas apenas um
deles foi efetivamente processado, e na sentença de seu processo concluiu-se que se
limitara às obrigações do cargo.
A tensão resultante do efetivo desempenho destas funções não se deu apenas
entre o intendente e a população local. Diversas rusgas interpuseram autoridades
locais, como ouvidores, oficiais dos destacamentos, fiscais, fiéis e os próprios
governadores. Eram resultantes do caráter pessoal do mando, delegado pelo próprio
Rei, que dava ao poder dessas pequenas autoridades cunho nitidamente privado,
gerando arbitrariedades, desentendimentos e acusações de todos os lados.
Providos diretamente por ordem real, os funcionários passavam a encarnar em
“terras brasilis” o poder que se originava no Rei. Na impossibilidade de uma contínua
consulta a Ele, para fielmente atender suas vontades, era necessária uma livre
interpretação de seus desejos. Naturalmente, como isso era feito segundo os interesses
dos próprios funcionários locais gerava conflitos e, não raro, reprimendas. As dúvidas
nascidas dessa contínua reinterpretação do desejo real podem ser vistas no cuidado
com que as autoridades comunicavam à coroa suas ações. O Governador Pedro Maria
Xavier de Athaíde Mello, por exemplo, ao informar o Visconde de Anadia sobre as
providências tomadas para apurar irregularidades do Ouvidor do Serro do Frio, em
1804, precavia-se de ser acusado de conivente no caso e avisava: “o que obrei em tais
circunstâncias, pareceu-[me] que em nada me apartei da Suprema e Augusta vontade
de Sua Alteza Real, que em tudo deseja e quer a felicidade de seus povos”. Mas,
cautelosamente, pedia ao Visconde, que informasse o Rei de suas atitudes, “para eu
poder ficar na perfeita inteligência de como me hei de haver d’hoje em diante, porque
só assim poderei convencer-me, ou que fiz a minha obrigação, ou que alterei, por
ignorância insensível e por erro de espírito, as ordens do Meu Soberano”.13
Se os funcionários eram cuidadosos quando confrontados diretamente com as
ordens do soberano, muitos súditos não tinham dúvidas de que da distância que os
12. Arquivo Público Mineiro (a partir dessa nota: APM.), Seção Colonial (SC) 302, fs. 76-77.
13. APM. SC. 203. f. 9v a 10v.
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separava do poder real nasciam os régulos, que os atemorizavam. Um morador
anônimo, ao enviar uma petição ao rei, na qual denunciava as arbitrariedades de um de
seus funcionários de além -mar alertava que “se o Príncipe (como a Divindade, da qual
é imagem) estivesse em todos os lugares, nenhuma representação deveria fazer-se aos
pés do Trono, porém nas distâncias destes, o mais bom (sic) dos Príncipes precisa
ouvir pelas vozes da verdade”.14
Ao analisar as relações de poder entre os diversos Governadores da Capitania e
Intendentes dos Diamantes foi possível observar os conflitos e paradoxos resultantes
dessa relação. Ao intervirem dentro da Demarcação, os governadores expunham,
muitas vezes, as dificuldades de regrar o comportamento dessas autoridades e, por
extensão, manter sob controle a população local15.
Neste artigo a análise recairá sobre outro foco de tensão: o estabelecido entre o
Intendente dos Diamantes e outros funcionários destacados ao nível da Comarca, como
é o caso dos ouvidores. Por meio desses conflitos intra-autoridades locais foi também
possível perceber esses paradoxos com que se defrontava a instituição do poder real no
distante quadrilátero diamantífero, tanto como no restante da América Portuguesa.
Comecemos pela narração dos acontecimentos, utilizando a fala e argumentos
alinhados pelos atores.
II. Jogo de cena
O Distrito Diamantino estava sob a jurisdição da Comarca do Serro Frio e seus
moradores estavam subordinados a vários administradores nomeados para toda essa
região e sediados na Vila do Príncipe. O cargo de ouvidor era um dos mais importantes
e acumulava considerável poder.
Em 1801, foi nomeado Intendente Interino dos Diamantes Modesto Antonio
Mayer, já que seu antecessor enfrentava processo na corte, movido pelos próprios
moradores.16 No ano de 1803, apesar de não haver nomeação definitiva, o Governador
Pedro Maria Xavier de Athaíde Mello comunicou ao Visconde de Anadia que
mantinha Mayer em seu cargo, pois “nada por ora o Mesmo Augusto Senhor
[Príncipe] tinha ordenado em contrário”.17
Nesse ínterim, várias disputas impediam a oficialização de Mayer
definitivamente no cargo. O novo ministério português, de cunho reformista e
esclarecido, pressionado também pela elite local,18 tentava nomear o primeiro
brasileiro para a função, Manoel da Câmara Bithencourt. Naturalista proeminente,
14. APM.SC. 311. f. 448.
15.Junia F. Furtado, O Livro da Capa Verde, op.cit.
16. Segundo documento encontrado no arquivo Histórico Ultramarino, Modesto Mayer acumulava o cargo de
Intendente dos Diamantes com o de Ouvidor de Vila Rica. Arquivo Histórico Ultramarino. (a partir dessa nota
AHU) Avulsos de Minas Gerais ( a partir dessa nota AMG). Cód.. 12.096. Cx.157. Doc.11.
17. APM. SC. 303. f. 2 e 2v. AHU. AMG. Cód.12.592. Cx. 167. Doc..55. (Governador informa ao Visconde de
Anadia a manutenção de Mayer no cargo).
18. Desde 1799, quando enviou petição à corte pedindo a destituição do Intendente João Inácio do Amaral
Silveira, a elite dos moradores do Tejuco pressionava por reformas do sistema. Enviaram José Joaquim Vieira
Couto como seu representante junto ao Conselho Ultramarino. (Administração Diamantina, Revista do Arquivo
Público Mineiro, v.2,1897,p.141-85.)
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tinha percorrido a mando de Dom Rodrigo de Souza Coutinho as minas de Saxe e da
Prússia e representava a ala iluminista, que defendia, entre outras medidas, o
desenvolvimento da colônia e o relaxamento do Pacto Colonial, em proveito da
própria metrópole.
Num jogo de força com os setores ortodoxos e tradicionais da política
portuguesa, D. Rodrigo, sem conseguir nomear seu escolhido para cargo tão
importante, arrastava o processo e a decisão. Aproveitando-se do vácuo de poder,
outros se dispuseram a alcançar o cargo.
Foi o caso do então Ouvidor do Serro do Frio, Antonio de Seabra Motta e Silva.
Este, segundo denúncia anônima datada de 1802, determinou ao Governador da
Capitania, “que saíssem do Arraial do Tejuco, o Intendente [Modesto Mayer] e o
Fiscal dos Diamantes advindo ele substituir ao primeiro”.19 Certamente, o pedido de
afastamento do Intendente ao Governador, baseava-se em denúncias graves
sustentadas pelo Ouvidor Seabra Motta e Silva. Não foi possível saber seu teor, mas
obrigaram o Intendente a se defender em carta indignada, onde afirmava que era tudo
calúnia, decorrente de ocupar cargo tão cobiçado; o que fazia chover “representações
que inocentes queixosos dirigiam à Vossa Excelência e [acreditando nelas] me
desacreditarão na sempre respeitável presença de Vossa Excelência”. Atribuía tais
desagrados ao seu “sistema, e o tem sido, até agora, ver se podia reunir a doçura de
uma administração moderada e a invariabilidade da justiça, (...) se a primeira parte
agrada a todo mundo, a segunda em parte alguma satisfaz os orgulhosos e
prepotentes.” 20
O Governador Pedro de Athaíde e Mello ficou ao lado do Intendente. Informoulhe
que recorrera, do modo “mais legal e legítimo” que achou conveniente, do
procedimento “ilegal e inaudito que contra [ele] perpetrou o atual Ouvidor dessa
Comarca”. Manteve Mayer como interino, apesar das denúncias, e intercedeu por sua
nomeação definitiva.21
Em 24 de janeiro de 1804, o Governador informava ao Visconde de Anadia das
providências que tomara contra o Ouvidor Seabra Motta, nas perseguições contra o
Intendente Mayer. Logo depois, no mesmo ano, comemorava sua vitória, “não tanto
pela satisfação que pode resultar ao meu amor próprio” e comunicava a Mayer, que o
príncipe o nomeara definitivamente no cargo de intendente, “que tão dignamente tem
desempenhado, com decidido e calculado proveito de Sua Alteza Real” 22, o qual
ocuparia até 1807.
Apesar desse enfrentamento inicial com o Ouvidor Seabra Motta, tudo indica
que Mayer manteve um afastamento prudente em relação ao seu desafeto. Político
hábil, afirmava que sua política conjugava o agre e o doce.23 Ao contrário do que
tentava demonstrar, certamente direcionava a primeira política aos escravos,
subalternos e às camadas populares. Já a segunda, efetivava com os funcionários de
alta patente e famílias de poderosos locais – com isso angariava simpatias, movia
19. APM. SC. 311. f. 450.
20. APM. SC. 302. fs. 76-77.
21. APM. SC. 302. f. 18v.
22. APM. SC. 302. fs 90v-91.
23. Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro, op. cit, pp.91-100. A autora analisa a alternância da
política do agre e do doce entre as autoridades coloniais.
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interesses. Mas, ele insistia, era preciso sempre ter cuidado pois, “denúncias são
forjadas com sinistras intenções de obter alguma vingança particular”.24
Já contra o Ouvidor Seara Motta começaram a chegar a Lisboa uma série de
denúncias. Datava de 1795 a primeira delas, dirigida à Sua Alteza Real.25 Mas no ano
de 1800, tudo ainda parecia em calma entre o Ouvidor e a população da Comarca do
Serro do Frio, pois nessa data os oficiais da Câmara da Vila do Príncipe encaminharam
ao Príncipe Regente, Dom João VI, uma carta pedindo sua recondução ao cargo por
mais três anos.26 A situação começou a mudar com a chegada de uma denúncia mais
consistente em 1801, assinada por um certo Francisco José Monteiro.27 Este chegou a
renunciar, em favor dos órfãos pobres da comarca, à metade dos bens confiscados a
que tinha direito pelas informações, certamente pretendo dar confiabilidade a suas
ações.28
Poucos meses depois, o Visconde de Anadia enviava ordens ao Barão de
Moçamedes para que o Conselho Ultramarino cuidasse de verificar as suspeitas contra
o Ouvidor.29 Em 1802, novas denúncias foram feitas, por um tal Francisco José Salles,
que depois se averiguou não ser conhecido nem pelos mais antigos moradores da Vila
do Príncipe, aventando-se a possibilidade de que fosse nome “suposto”, para “poderem
se colocar a salvo e atacar a honra de um ministro”.30 As acusações visavam o Ouvidor
Seabra Motta de “ter soltado as rédeas do mais violento despotismo”; de ter passado “à
crueldade, à injustiça e ao latrocínio, com a mais decidida prevaricação” e de ter
“iníquo procedimento”.
Os próprios moradores diziam que não havia sido esse seu comportamento
desde que chegara à vila. De início, como era o costume, era preciso se fazer
respeitado, freqüentar e ser recebido pelas famílias poderosas, ser amado, honrado
pelos principais, mas também temido pelos humildes. O Ouvidor Seabra Motta agiu
conforme o padrão de sua época: “Os seus primeiros passos se dirigiram a visitar
enfermos, acompanhar as procissões e afetar grande zello pela observância das Leis”.31
Logo, “cuidou com exação, em prevenir o Povo da privança que tinha com um
dos Ministros do Estado, tanto pelo estreito vínculo de parentesco, que ele se tem
arrogado, como principalmente por ser compadre de Sua Alteza Real.” 32 Nessa
sociedade, os laços de identificação e reconhecimento se faziam, não segundo o valor
de cada um, mas pelos elos de parentesco e compadrio que se teciam desde o Reino.33
Para se fazer respeitado, Seabra Motta utilizava -se não só dos atributos que eram
inerentes ao cargo, alcançados no momento de investidura, mas evocava quem o
protegia além -mar.
24. APM. SC. 302. f 770.
25. AHU. AMG. Cód. 12.070. Cx.159. doc.14.
26. AHU. AMG. Cód.11.730. Cx.154.Doc.50.
27. APM. SC. 311. fs. 427-429. AHU. AMG. Cód.11.957. Cx. 157. Doc.46..
28. AHU. AMG. Cód.12.077. cx.157. doc.66.
29. AHU. AMG. Cód. 12.070. Cx.159. doc.14.
30. APM. SC. 311. fs. 517-518.
31. APM. SC. 311. f. 448.
32. APM. SC. 311. f. 427.
33. Júnia F. Furtado, Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas Setecentistas,
São Paulo, Hucitec, 1o.cap. (no prelo).
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Esse era o comportamento habitual de todos os recém-chegados à sociedade
instável e fluida das Minas, principalmente quando chegavam pobres, necessitando
exacerbar outros vínculos para alcançar o prestígio e o reconhecimento desejado. Tal
parece ter sido o caso do Ouvidor, que trouxe “consigo mulher e filhos, e um fâmulo
(...) todos em manifesta pobreza.” 34
A população acusou-o de se utilizar de nome de Sua Majestade para daí “nascer
o terror de que um povo rude é suscetível”, fazendo de seu primeiro comportamento,
uma “conduta (...) toda farisaica, (...) as virtudes lhe eram estranhas [e] desertou logo
da falsa imitação delas e rapidamente passou à crueldade”.35
Quais eram as acusações contra Seabra Motta? A principal era a utilização do
cargo de ouvidor, junto com o de Juiz dos Órfãos e Ausentes, que acumulava, o que
lhe permitia manipular testamentos, dívidas, criando um sistema infalível de corrupção
e “como um lobo voraz, decidindo sobre sua mesma presa”.36
As acusações incluíam dois comparsas: o primeiro, o fâmulo que o
acompanhara do Reino, a quem nomeou tesoureiro do Juízo dos Órfãos e Ausentes e
que, com esse poder, manipulava os processos, substituindo os testamenteiros
nomeados pelos falecidos, pelo próprio Ouvidor, como testamenteiro dativo. Devido à
sua ganância e enriquecimento rápido deram-lhe o apelido de Kri-Kri, “que no idioma
dos naturais do País se interpreta gavião pequeno e ligeiro (...) pelas suas rapinas e
pequena estatura.” 37 O outro era o Procurador dos Resíduos, “ou antes do seu
sistema”, que recebia 400 réis de cada “testamento sem regimento” que conseguia
prevaricar.38
O crime do Ouvidor era de não ter “outra Lei para as suas decisões, que as
cavilosas dúvidas do seu Promotor”; “a impunidade dos crimes é um dos ramos de seu
comércio. Se o réu tem dinheiro, nunca deixa de ser inocente” . Com ele, “um
turbilhão de criminosos apareceu sobre a face daquela comarca envolvida na teia que
cegamente fabrica o orgulho da ambição”, tudo “contra as mesmas Leis positivas que
servem de base à administração da justiça naquela comarca”.39 Novamente se
interpunha a objetividade das leis contra a livre interpretação das mesmas, por
funcionários corruptos, que visavam unicamente seus próprios interesses.
Mas vejamos o desenlace do caso de Seabra Motta: ele nos permite refletir
sobre esses paradoxos de que se revestia o poder. A primeira comunicação sobre o
caso que o Rei fez ao ainda Governador Bernardo José de Lorena datava de 1802.
Nela, ordenava que “ouvido o Procurador da Fazenda”, o informasse “com o vosso
parecer, procedendo as mais exatas averiguações legais de todos os fatos expostos na
dita denúncia”. Logo depois, alegando que não fora respondida a ordem, a enviava por
segunda via.40
Só no final de 1803, o novo Governador, Pedro Xavier de Athaíde e Mello,
escreveu ao Ouvidor imputando os desacertos deste ao “insaciável tesoureiro”. Sem
34. APM. SC. 311. f. 448.
35. Idem. Ibdem.
36. Idem. Ibdem.
37. APM. SC. 311. f. 448.
38. Idem f. 449.
39. Idem. Ibdem.
40. APM. SC-311. f. 423. Nesta carta faz referência ao ano de 1795 como o da 1a denúncia.
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entrar em conflito direto com Motta, decidiu-se por suspender o tesoureiro, “aquele
péssimo oficial”, fazendo-o ir à sua presença, para “dar os motivos de seu estranho e
ilegal e altivo procedimento”. O Ouvidor, por sua vez, não aceitava passivo a
interferência em sua jurisdição, apontou “leis sobre leis” para persuadir o Governador
de que não tinha ingerência na administração dos Defuntos e Ausentes.41
De sua parte, o Governador conclamava que sua autoridade era ilimitada,
aproveitando-se do fato de que a legislação colonial não deixava claras as hierarquias
ou a divisão entre os poderes. Legitimava sua interferência utilizando o argumento da
necessidade de “acorrer com providências aos clamores incessantes do povo vexado”.
Por fim, incitava o Ouvidor a “olhar para as ordens do trono”, ao invés de se entregar a
“animosidades pessoais, ódios antigos, e causas fúteis, que deslumbram o caráter do
Magistrado”.42
Mas o régulo não ficou paralisado. Em 1804, o Governador foi advertido pelo
Intendente dos Diamantes de que o Ouvidor fizera contra ele uma representação junto
à Mesa de Consciência e Ordens, sobre a arrecadação dos Defuntos e Ausentes na
Demarcação Diamantina, e que essa o intimava a se apresentar no prazo de seis meses.
O Intendente se queixava de que Seabra Motta novamente o “inquietava na sua
jurisdição tão privilegiada, pretextando com embustes e falsidades.” 43
Nesse novo choque de interesses, o Governador não pôde ficar omisso. Até
então sua correspondência indicava que ele procurava contemporizar ambos os lados e
se justificava perante o Rei, pois sua atitude ambígua parecia negligência e
afrouxamento das ordens reais. Dessa vez, imediatamente, suspendeu o Ouvidor
Seabra Motta do cargo de Provedor dos Órfãos e Ausentes e também paralisou a ação
contra o Intendente Mayer junto à Mesa de Consciência e Ordens. Comunicou o
afastamento definitivo do tesoureiro protegido do Ouvidor, sugerindo não só uma
ligação criminosa entre os dois, mas também baseada em outros atrativos, pois o tal
fâmulo, “tanto mais escandaloso quanto reconhecida criatura, muito particular do dito
Ouvidor, de quem é amigo e comensal, desde o Reino até o presente.” 44
Ainda em maio de 1807, tudo parecia estar na mesma, pois o Rei continuava a
exigir que o Governador abrisse a devassa, ordenada desde 1803, contra o já então ex-
Ouvidor Seabra Motta 45 e conclamava o novo Ouvidor do Serro que passasse à
inquirição das testemunhas.
III. Cai o pano
Tudo indicava um desfecho trágico, típico de um caso de funcionário corrupto e
prepotente. Mas as coisas não evoluíram exatamente assim.
No ano de 1806, certidão expedida pelo Conselho Ultramarino atestava que
Seabra Motta exercera os cargos de Ouvidor, Provedor dos Defuntos e Ausentes e
41. APM. SC-302. fs. 17 a 18v.
42. Idem. Ibdem.
43. APM. SC. 203. f. 9v-10v.
44. APM. SC. 303. fs. 12-13.
45. APM. SC. 203 fs. 14v-15. e SC 311 f. 423.
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Intendente do Ouro da Comarca do Serro do Frio de maneira exemplar.46 No ano
seguinte, o novo Ouvidor, José Ricardo de Gouvea Durão enviava, através do
Governador, os resultados de suas investigações, baseadas em extensa lista de
testemunhas ouvidas na vila, principalmente os mais antigos moradores. Concluíra que
o réu era inocente e que as acusações derivaram da “falsidade de tantas imposturas,
quantas sem pejo e sem remorso, [que] se acumularam contra a honra e procedimento
daquele Ministro”.47
Teria sido tudo mera invenção? Estariam certos os prognósticos de Mayer de
que uma pesada sina alcançava os notáveis da região, levando -os todos a morrer no
desterro e na desgraça? Mas não nos apressemos em aceitar a lógica que parecia surgir
do emaranhado de argumentos tecidos ao longo da correspondência. A exemplo de
Ginsburg e seu paradigma indiciário 48 passemos a dar vez às lacunas, aos espaços em
branco, ao sugerido mas não dito, ao jogo que se fazia por detrás das cenas.
Lembremo-nos da ordem dos fatos: a primeira denúncia ocorreu em 1795,
quando era ainda Governador da Capitania o Visconde de Barbacena. Essa era a
denúncia anônima e, ao que parece, não trouxe maiores danos à imagem do Ouvidor
nesse primeiro momento. Além do mais, a partir de 1789, outra devassa mais
importante consumiu o tempo do Visconde. Seabra Motta também passou incólume
por todo o governo de Bernardo José de Lorena, que se estendeu de 1797 a 1802.49
Não parece obra do acaso, o fato de as duas novas denúncias (essas assinadas,
com mais consistência) terem sido feitas exatamente em 1801/2, quando o Ouvidor e o
então Intendente Interino Modesto Mayer lutavam nos bastidores pelo mesmo cargo.
Naquela época, Seabra Motta frontalmente acusava o Intendente, esperando com isso
inviabilizar sua candidatura. Ao que tudo indica, Mayer utilizava artifícios mais sutis e
menos diretos, já que o Ouvidor tinha grandes protetores na corte. Não podemos
esquecer que a inquirição de 1807 concluiu que o signatário de uma das petições era
provavelmente um nome falso. O certo foi que, só com a posse do novo Governador,
Pedro Maria Xavier, em 1803, a engrenagem do processo começou a andar.50
A atuação de Xavier foi no momento inicial de aparente imobilidade e
prudência, como se não levasse o processo à frente, apesar das determinações reais. Ao
que tudo indica, o desfecho rápido dos trâmites não lhe seria favorável, sendo
preferível cozinhar o caso em fogo brando e, na surdina, ir envenenando o Rei contra o
Ouvidor. Sua atitude foi bem sucedida, denegriu a imagem do adversário e consolidou
a posição de seu apadrinhado, Modesto Mayer, conseguindo empossá-lo no cargo de
Intendente. Não era sem razão que o Governador alardeava que tal vitória satisfazia
46. AHU. AMG. Cód.13.493. cx.181. Doc.50.
47. APM. SC. 311. fs. 517-518; AHU. AMG. Cód.12.859. Cx.171. Doc.52.
48. Carlo Ginsburg, "Paradigma de um sistema indiciário", in Mitos, emblemas e sinais, São Paulo, Companhia
das Letras, 1989, pp.143-180.
49. Nesse ano o Governador se limitou a informar ao Visconde de Anadia que recebera as ordens régias relativas
às denúncias de Francisco José Monteiro. AHU. AMG. Cód.12.378. Cx.165. Doc.12.
50. É preciso salientar que, em 1799, quando da prisão de um indivíduo chamado Francisco Álvaro da Silva
Freire, que aguardava para seguir expatriado para Goa, foram encontradas cartas dirigidas a Mayer, à época da
Inconfidência Mineira Ouvidor em Vila Rica, sugerindo seu envolvimento com a Maçonaria. Se tais ligações
eram verdadeiras explicam grande parte das relações tecidas entre Mayer e outras autoridades, inclusive no
Reino. (Ver: Paulo G. Leite, "A Maçonaria, o Iluminismo e a Inconfidência Mineira", Revista Minas Gerais,
v.33, Belo Horizonte, 1991, pp.18-23.).
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seu amor próprio,51 fora um golpe de mestre. Vencera o Ouvidor e interesses
poderosos na corte.
Nessa perspectiva, a denúncia do Ouvidor contra o Intendente dos Diamantes à
Mesa de Consciência e Ordens, ao invés de um ato de um régulo obstinado, parecia
uma última tentativa de conseguir a intermediação de altas patentes, que ele acreditava
melhor manobrar, nesse conflito local, onde o Governador se movia com calculada
astúcia e prudência. Mas a jogada desesperada do Ouvidor foi também o xeque-mate
contra ele, pois o Governador Xavier de Athaíde encontrou na ação os pretextos para
eliminá-lo.
Sob esse novo ângulo a devassa de 1807 não fora um engodo, encontrara apenas
o que estava lá desde o início: nada havia de concreto que pudesse manchar a conduta
do Ouvidor. Tudo não passara de um jogo de poder e conflito de interesses entre os
grupos que procuravam dominar os cargos coloniais e, a partir deles, auferir vantagens
lícitas ou ilícitas. Esse não era caso inédito. A história do Distrito Diamantino foi
cercada dessas contradições: moradores e autoridades pertencentes a oligarquias rivais
se acusavam mutuamente, desnudando a complexa rede de interesses que se teciam do
Reino ao interior das Minas. Nesses momentos, era possível perceber as dificuldades
de regrar o comportamento desses funcionários e, por extensão, manter sob controle a
população local.
Mas o Ouvidor não saiu completamente derrotado. Não foi possível saber se
fruto direto da sua ação, ou de outros interesses que o Intendente ameaçou no Tejuco,
denúncias contra esse último também começaram a subir ao Reino. Da primeira, em
1804, o Intendente Mayer tomou sua própria defesa. Mas em 1806, foi designado um
Coronel Inspetor, para seguir à Demarcação e apurar as irregularidades. O relatório do
Inspetor Antonio Dias Coelho foi tão devastador que o próprio Governador foi
obrigado a fazer severas advertências ao Intendente, seu protegido. Contra as ordens e
interesses reais, a vigilância e o controle sobre a região estavam completamente
relaxadas.
Segundo a apuração da devassa, os principais artigos do Regimento Diamantino
de 1771, aqueles de cunho nitidamente ordenadores da sociedade, estavam sendo
desrespeitados. Não havia controle sobre os negros que entravam na Demarcação,
contrariamente ao que estava disposto nos parágrafos 5º, 6º e 7º; nem sobre os
moradores, que deviam ser registrados na Intendência, segundo o § 10º; muito menos
sobre a entrada de comboieiros e cobradores de dívidas, maiores responsáveis pelo
contrabando de gemas, determinação imposta pelo § 11. As negras de tabuleiro,
proibidas pelo § 12, vagavam pelo arraial e serviços; lojas e vendas eram abertas
indiscriminadamente, embora devessem ser severamente controladas de acordo com o
§ 33. Não se faziam mais buscas e apreensões nas casas dos moradores, reguladas pelo
§ 26, ou determinavam -se ordens de despejo que, conforme o § 13, deviam incidir
sobre qualquer suspeito, mesmo de denúncia anônima, e não se emitiam mais bilhetes
nos registros, havendo a livre entrada de pessoas na Demarcação, o que era
terminantemente proibido pelo § 37.52
51. APM. SC. 302. fs. 90v-92.
52. APM. SC. 302. fs. 124-125.
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As denúncias eram muito graves e certamente contribuíram para a suspensão do
Intendente no ano seguinte, sem que o Governador Athaíde pudesse impedir. Se o
discurso dos atores fosse tomado ao pé da letra, tudo parecia convergir para os dois
clássicos embates de que estava repleta a história do Império Português. De um lado
moradores se revoltavam contra o autoritarismo do régulo local – o agre. Do outro, o
funcionário benevolente, que por prudência, acabava não executando com presteza e
obstinação as ordens reais – o doce. Como se ambos, por seus excessos, pusessem em
risco o próprio domínio real.
Na verdade, sutis e poderosos jogos de poder se desenrolavam por trás dos
panos. Jogos que envolviam interesses privados, tanto de moradores quanto de
funcionários reais. Era o custo de se manter privado o conteúdo do poder. Mas, ao
contrário do discurso recorrente “de que nas Minas, tudo parecia fora do lugar”, era
essa mesma indistinção entre o público e o privado que estendia até o menor dos
súditos a presença e a proximidade do poder real, e constituía sua base de sustentação
na longínqua América Portuguesa.
[Recebido para publicação em setembro de 1997]