As aventuras do João Francisco

16-03-2011 23:23

As aventuras do João Francisco

Ao poeta Celso Brant.

Não há cidade do interior que não tenha o seu tipo de patusco. Diamantina não faz exceção ás demais e dada a característica inteligência dos filhos da terra, o tem com mais espírito e finura que muitos outros seus colegas bufões municipais.

Tais gaiatos tem uma sina e um programa: divertir os demais. A fama que adquirem é tal que nunca são levados a sério, nem mesmo quando tratam de assuntos mais circunspectos, como um personagem de Monteiro Lobato, fazem as pessoas rebentar de rir, mesmo quando solicitam um emprego, pedem casamento ou queixam de alguma moléstia grave.

Assim era o João Francisco, em Diamantina, nos primeiros anos deste século.

Parente por linhas transversas de uma distinta família local, este rapaz era bem recebido em toda a parte e todos o estimavam.

Não havia gente triste que ele logo não fizesse rir com ditos brejeiros, anedotas e, sobretudo, contando as suas patuscadas de vagabundo.

Havia grande indulgência para com os seus atos, ás vezes, pouco austeros, mas sempre engraçadíssimos.

No fundo, o rapaz era de boa índole: se roubava galinhas nos terreiros dos ricos, em compensação era incapaz de dar o menor prejuízo aos pobres, a quem pelo contrário, ajudava, muitas vezes, dando-lhes dinheiro e prestando serviços.

Tinha também grande espírito de justiça e tratava a todos com bondade e préstimo.

Para caracterizar a vivacidade do seu espírito e tendência á malandragem, basta o seguinte fato de quando ainda criança:

Havia na cidade um celebre delegado, de nome Maldonado, que era prepotente e arbitrário. Sem se estribar em nenhuma lei, resolveu proibir  o trânsito pelas ruas, depois das nove horas da noite. Só permitia exceções muito restritas, ao seu critério. Quando o velho relógio da Sé batia ás nove badaladas, a cidade ficava deserta e os poucos retardados dirigiam-se apressados ás próprias resid6encias.

Era um regime quase de terror – uma reminiscência da lei draconiana dos intendentes, no período colonial, em que, depois daquela hora, só se ouvia, nas ruas, o passo cadenciado da ronda noturna, fazendo tinir as armas que eram, então, lanças alabardas e partazanas.

O Maldonado era o terror das mulheres velhas que, ás oito e meia da noite, saíam das casas das amigas e da visita ao “Santíssimo”, para tornar a o lar “antes de dar nove horas”.

Ora, a uma noite, o nosso João Francisco que teria os seus treze anos, deixou-se ficar na rua depois das nove. No beco atrás da Sé, ele, que ia correndo, foi interprelado por um soldado “apertado”:

                 -  Psiu, menino, que é que está fazendo na rua a esta hora?

A principio, embatucou; depois a sua imaginação fértil concebeu uma idéia:

                    -  Seu guarda, me solte, tô com muita pressa.

                  -   Pra que, menino?

                   -   Vou buscá parteira pra minha mãe!

Era mentira, mas o guarda não sabia e soltou-o.

Quando já rapaz, apenas por espírito de aventura, se metia em roubos de criações, com mais dois ou três companheiros de vadiagem.

Certa vez, ele, com dois outros companheiros de vagabundagem “abafaram” um leitão grande, no largo do Curral. Mataram o bicho no próprio local e vinham trazendo para dividí-lo, no Rio Grande, em casa de um dos componentes da roda.

Descendo a rua de São Francisco, tinham de passar por perto da cidade. Eram oito horas da noite. Conhecidos que eram, certamente seriam interpelados pela guarda da prisão, para que explicassem onde obtiveram o porco.

Foi quando o João Francisco, teve uma idéia: despindo o velho sobretudo, já bastante surrado que usava, colocou o animal dentro e, auxiliado pelos outros dois, vieram carregando o fardo pela rua abaixo.

Quando passavam adiante do velho presídio, um solado saiu da guarita e indagou:

                   -  Que é que vocês levam aí?

                   -  É o nosso companheiro, coitado!

                   -  Morreu ou está doente?

                   -  Qual nada; é pileque. Tá ruim o homenzinho. Tamo levando ele para casa.

E passaram.

Algumas vezes ele e os outros da súcia chegaram a passar fome.

Em certa ocasião, estavam rodando nas proximidades do Barracão da Cavalhada Nova, quando sentiram delicioso aroma de carne assada. Atraídos por aquela sedutora emanação, aproximaram-se e viram um tropeiro assando em um brazeiro uma grande manta de carne seca, com um aspecto de extasiar o próprio Pantagruel.

O João Francisco, com água na boca, chamou os dois de parte e expôs o seu plano. Em seguida, vieram vindo, com quem não quer, e, por um motivo de somenos, começaram uma grande discussão que foi se elevando de tom até degenerar em briga feia. Pelo menos assim o pensou o tropeiro e, no honesto propósito de apasiguá-los, largou a carne de um lado e foi exortar um deles que já brandia o punhal.

Neste momento, o João Francisco deu uma voltinha, apoderou-se do ambicionado assado e saiu em desabalada carreira pelo Burgalhau a abaixo. O tropeiro não o viu. Os outros dois aceitaram logo a intervenção, cessaram de brigar e também deram as de vila Diogo. Dez minutos depois, em frente á Capela do Bambães, os três, já reconciliados da briga comiam grandes bocados da carne tostada e suculenta.

Os roubos de jaboticabas dessa trinca de malazartes são incontáveis. Todas as chácaras da cidade foram vítimas deles, com exceção das que tinham cachorros bravos.

O mais burlesco dos episódios da história movimentada do João Francisco foi o que se deu com o Major Fernão.

Nessa época, era costume em Diamantina lavarem-se os corpos dos falecidos, antes de serem vestidos dos trajes com que faziam a sua última viagem aos carneiros das igrejas. Se era homem, os amigos da casa, ou simplesmente os conhecidos, ajudavam nesse fúnebre mister. Em seguida, havia bebida e ceia para os que velavam o cadáver.

Certo dia, um dos companheiros do João Francisco, encontrou-o e deu-lhe uma boa nova:

                   -  Esta tarde vamos ter lava-corpo, velório e o complemento: cachaça e ceia.

                   -  Porque? Quem morreur?

                   -  O Major Fernão.

                   -  É prá já.

Lá foram os dois que, encontraram um terceiro companheiro e tocaram pra a casa do Major, no Macau de Baixo.

Quando chegaram, o João Francisco bateu palmas e esperou. Veio uma criada, abriu uma porta do corredor e perguntou;

                   -  Que é?

O João Francisco adiantou-se, já arregaçando as mangas  e disse:

                   -  Estamos aqui pra lavar o corpo.

No corredor havia outra porta que dava para o quarto do Major. Este gritou da cama, enraivecido:

                   -  Lavar meu corpo não, canalha, que ainda não morri.

Desnecessário será dizer que os três correram, em desabalada carreira, pela rua afora, rindo a mais não poder.

A última troça do João Francisco, de que tenho notícias, acabou infelizmente, em tragédia e foi no Rio de Janeiro.

Tendo-se transferido para aquela capital para tentar a vida, o João Francisco se apercebeu logo de um traço característico do carioca – a curiosidade. Sabia que basta parar na rua e observar algo atentamente para imediatamente se formar uma roda de curiosos.

Uma tarde, ele e outro conterrâneo resolveram a se divertir com a curiosidade do povo do Rio. Em conseqüência, pararam em frente a uma vitrina e se puseram a apontar para um objeto que lá estava, fazendo exclamações e comentários exagerados, com gesticulações excessiva. Logo parou um transeunte; em seguida outro e mais outro. Dentro de cinco minutos havia, em frente á montra uma verdadeira multidão... mas ninguém sabia do que se tratava, com exceção dos dois diamantinenses.

           Infelizmente, houve um conflito entre dois dos curiosos que se esforçavam pra ver melhor, resultando uma apunhalar o outro.

Anos depois, o João Francisco resolveu, finalmente, a levar a vida a sério: casou-se, tornando-se o que é hoje: um chefe de família exemplar.

MOURÃO, Paulo Krüger Corrêa, Voz de Dtna, 1948.

O Cruzeiro da Igreja do Rosário foi erguido em 1825 pelos missionários do Caraça, para  recordar a segunda missão em Diamantina, visto que a primeira fora realizada anos antes, por um bom zeloso Frade Capuchinho.

“E como se soube disto?

Nesta cidade ainda é viva uma pessoa idosa (1946) no Arraial de Baixo que disse ao traçador destas linhas: O Cruzeiro do Rosário foi erguido por Frei Jeronimo e Frei Moura, que vieram de muito longe pregar para o povo. Minha bisavó assistiu a tudo e viu e repetiu várias vezes”.

FRAGOAS, Osório, Voz de Dtna 1946.