Benção do Quadro

15-03-2011 23:35

- Licença para dois?

            - Pois não!

            E o padre, ao levantar a cabeça, viu um casal avançar entre as curvaturas e sorrisos.

            - Queiram sentar-se!

            Ele! O tipo do neó-rico! Crânio semi-despido, fronte baixa, rosto bonachão, pescoço, acochado pelo colarinho, gravata berrante com vistoso alfinete, chatelaine grossa sobre a barriga expansionista, um anel de brilhantes em cada dedo.

            Ela! Cabelos á la garçone, pintadíssima e caiada, lábios com azarcão, braços presuntos, vestido acima da rótula e, sobre o vasto peito, um colar de pérolas que pareciam petecas.

            -Snr. Vigário, somos católicos, apostolicos, romanos   .

            - Muito prazer em...

            - E somos admiradores  de V. Revma.

            -Tanta honra...

            - Os paroquianos louvam todos a gentileza do sr. Vigário.

            - !?!

            - Não perdermos um só dos seus sermões, tão eloquentes e instrutivos!

            - Mas ainda não disseram o que de mim desejam.

            - V. Revema. é um sacerdote liberal, moderno, popular. Si todos os padres fossem assim, a religião não andaria como anda.

            - Bem, mas vamos ao que serve.

            -Sr. Vigário, - começou o marido -...

            A senhora deu, com o tronco, meia volta sobre a cadeira e, face a face com o consorte, intimidou: - Cale a boca, Rômulo. Em coisas de Igreja, as mulheres falam melhor.

            E descrevend, em sentido contrário, outra meia volta, a suplicante encarou o vigário.

            - Mandamos vir da França um quadro do Sagrado Coração.

            - Que me saiu num 1:500$000! – acrescentou o consorte.

            - Adquiri um vidro e uma moldura, sem calcular despesas, - continuou a matrona.

            - lá se foram 665$000! – gemeu o marido.

            - Finalmente, aceitamos, em redor do quadro, lâmpadas elétricas muito chics.

            - Nota a pagar: 200$000.

            - O conjunto ficou uma belezinha. Não é, seu Rômulo?

-          É, pois não! Também pelo preço....

Divertido com o diálogo do casal, o vigário aproveitou uma pequena folga, para introduzir uma pergunta.

- Enfim, que desejam de mim?

            - Que vá benzer o quadro, em nossa casa.

            - Não poderiam trazê-lo aqui?

            - Impossível, por causa dos convites, - disse a senhora.

            - Aliás, - acrescentou Rômulo, - não fazemos questão de pagar. Por quanto batiza um quadro em casa?

            - Batizar,não, benzer!

            - Por quanto benze um quadro em casa? – respetiu Rômulo.

            - Não se trata de dinheiro.

            - Mandaremos nosso automóvel, - prometeu a senhora.

            - É um Dodge Brothers, que me custou 22:000$000, mas não me arrependo, confidenciou Rômulo.

            - Venha, pois, o Dodge Brothers. Quanto á remuneração, ficara para outra vez.

            - Fazemos gosto de recompensar...

            - É de coração, - atalhou o marido.

            - Não, senhor; obrigado! A que hora mandam o automóvel?

            - Ás oito.

            - Da manhã? É cedo.

            - Da noite!

            - É tarde.

            - É por causa do baile, logo depois da benção.

            - Baile? Depois da benção? Não pode ser!

            - E porque?

            - É uma profanação!

            - Uma quê?

            - Como quem diria, um desaforoao Santo.

            - Os convidados são gente de respeito.

            - Não duvido, porém os Santos não gostam de bailes.

            - Isso é lá no céu. Se estivessem na terra!

            - Em vida, fugiram de danças, como de Satanás. Vejam S. João Batista, vítima da bailarina, que lhe pediu a cabeça num prato.

            - Afinal, V. Revma. Vai ou não vai?

            - Não vou, pois não me convém encorajar batuques.

            - E os doces e frios que paguei ? – perguntou Rômulo.

            - Podem ser comidos sem danças.

            - E o “jazzband” que contratei?

            - Nada tenho com isso!

            - V. Revma. não é padre moderno.

            - Diziam o contrário, há pouco.

            - Nem liberal!

            - Vão tirando!

            - Nem é popular.

            - E meus sermões ?

            - Nunca os ouvimos, pois consta que são paulificantes.

            - Então, não são mais meus admiradores?

            - Nunca fomos, a não ser por mentira convencional.

            - Assim, o vinho passa a vinagre!

            - Aliás, recepcionaremos sem V. Revma. São os padres como o senhor, que botam a religião a perder.

            - Sejam felizes! Quanto á benção do quadro, poderei realizá-la algum dia, pela manhã.

            - Dispensamos.

            -!?!

            - Ficará para quando tivermos um vigário moderno, liberal, popular.

            - E bom pregador, - repetiu a dona. – Passe muito bem, e até logo!

-          E a matrona riscou uma trajetória imponentem através da sacristia, donde, seguida pelo consorte, desapareceu num passo mastodôntico.

P.D.Voz de Diamantina, A Bençam do quadro, 1934.