Diamantina 1889

30-04-2011 18:00

    Na cosinha de sua pequena casa, na rua do Amparo, Filina Seixas estava fazendo limões do entrudo (carnaval). Trabalhava sozinha e excelente senhora sexagenária, viúva havia longos anos, muito relacionada e querida entre as famílias de Diamantina. Dispondo apenas do pequeno aluguel de uma lavra, que possuía no Caeté Mirim, lutava com muitas dificuldades.

    Vivia quase constantemente em casa das amigas, onde passava os dias, fazia as refeições e tomava parte nos jgos de trinta e um, sete e meio, solo, víspora, politana e bisca, apenas dormindo na própria casa. Era disputada e adorada pelas crianças, por conhecer muitas histórias e contos de fadas, que lhes contava pacientemente.

    Filina untava de sabão da terra diversas pequenas laranjas verdes, que conservavam um pedaço do caule ou tinham uns pausinho ficado . Derretia numa caçarola certa quantidade de cêra, misturada com água. Depois, pegando sucessivamente nas laranjas caule ou pelo pausinho, mergulhava as primeira na cêra derretida, depois numa vasilha com água fria, e tirando-as colocava numa pequena mesa, ao lado, sobre uma toalha.

    Em seguida, com uma faca, fazia uma leve incisão, quase circular nas laranjas, não cortando a parte inferior; aos poucos, apertando com os dedos, ia destacando os dois hemisférios de cêra unidos apenas pela parte não cortada; com uma pena de galinha, embebida em cera fervente, ligava os dois hemisférios; pelo orifício do lcoal do caule, ia enchendo os limões com água perfumada, tapando o buraco com pingos de cera, prendia-lhes uma pequena flor e os ia arrumando cuidadosamente em fileiras, num taboleiro forrado com uma toalha branca.

    Estes limões eram dstinados á venda pelas ruas da cidade (a dez tostões a dúzia), na época do Entrudo (carnaval), que começava algumas semanas antes do Carnaval. Fifina incumbia deste negócio um menino, a quem pagava uma comissão. Na quarta feira de Cinzas ela esvaziava pacientemente os limões, que não tinham sido vendidos e os guardava vasios, para enchê-los de novo e vendê-los no Entrudo do ano seguinte.

    Deviam ser mais de três horas da tarde, quando a viúva terminou a fabricação daquela dia, cerca de dez dúzias. Acabava elaa arrumação do taboleir, quando entrou na cozinha o pequeno Aurelianinho Caldeira Brant.

    - Boa tarde, siá Fifina, disse o menino - como vai a senhora?

    - Bem, obrigada..., E a sua mãe e seu pai?

    - Bons, graças a DEus. Mamãe mandou convidar a senhora, para ir jantar lá em casa. Papai mandou avisar ontem que não voltaria hoje do Guinda, onde está a mineirando. Agora vejo: a senhora ainda faz limões de Entrudo com laranjas?  Porque não compra na loja do Mota uma forma de madeira? Fazem-se limões mais rapidamente com as formas e com muito menos trabalho.

    - Prefeiro a maneira antiga, respondeu Fifina. Pois assim que aprendi e os limões saem mais perfeitos.

    Transportou o taboleiro para outra mesa, na sala de visitas, dizendo ao Aurelianinho:

    - Espere aqui um momento, enquanto vou trocar de roupa, para sairmos.

    O Entrudo, introduzido pelos portugueses nos tempos coloniais, assumiu em Diamantina proporções brutais e fantásticas no último quartel do século XIX. Nas ruas violentos choques de homens e mulheres, atirando-se uns aos outros baldes d'águas, esguichos com seringas de bambú ou folha de Flandres, manobradas por meninos, agarrando-se transeuntes, apra mergulhá-los nos chafarizes da Câmara, da Cavalhada Nova e do Largo do Rosário.

    Das ruas para as sacadas, combates de limões entre moças e rapazes. Assaltos ás casas, por meio de escadas colocadas na rua, para molhar os moradores, que se defendiam com potes d'água, ou transcendo-se nos quartos. Apesar de tanta brutalidade, não havia conflitos, pois aquilo era considerado uma brincadeira. Começando a decair em 1900, o Entrudo, em Diamantina, foi extinto definitivamente em 1910, pelo delegado de polícia, Dr. Álvaro de Sena Vale.

    Naquela tarde de 1889, a que acima nos referimos, o Entrudo estava animadíssimo na cidade. Um grupo de mascarado comandado por uns elegantissimo dominó azul celeste, de gorro de veludo amarelo, máscara de arame, luvas de pelica, bombardeava com limões as moças, nas janelas das casa, que lhes respondiam com outros limões e baldes d'água. Na rua Direita, casa do Dr. Pechico (Dr. Francisco Corrêa Rabelo), família do Antonico Batista (Antônio Batista de Melo Brandão),; rua das Mercês, família Zezé Menezes; família Manoel César, Cavalhada Nova; família Antônio Eulálio, começo da rua do Amparo; D. Modestina Leão,no Macau do Meio; na rua do Amparo, casa do velho português  José Marques Nogueira Guerra, que tinha diversas filhas, muito sociáveis e festeiras.

    As grandes despesas daquela passeata alegre eram pagas pelo dominó azul, que ia comprando todos os taboleiros de limões e de doces, que passavam pelas ruas.

    Só altas horas da madrugada, dissolveu-se o grupo, no armazém de D. Maria de José Eleutério, no Beco da Tecla, onde os farristas tiraram as máscaras. O dominó azul era o infeliz rapaz morfético Lucas Coauto de Magalhães, filho natural do General Couto de Magalhães, que, desiludido de sua cura, o mandara para Diamantina, com uma opulenta mesada. O Lucas, muito generoso, gastava á alrga em empréstimo, presépios no Natal, custosos papagaios de papel, rebanhos de carneiros... Morava num quarto atrás da igreja do Rosário, próximo á casa do sr. João Batija (João Nepomuceno da Silva).

     Os seus companheiros da Súcia eram os endiabrados meninos Salatiel Moreira Costa, Juca Urso, João Colchão, Manoel Petelica, Juca Palhaço, Joaquim Leleu, SErafim Galinha (Serafim Pinheiro de lacerda ), Eliseu Cara Olho, assim chamado por ter no rosto uma horrível cicatriz, proveniente do coice de burro, Gabriel Matos, Osório Caldeira... Voz de Diamantina, ARNO Ciro, Tempos Idos.