Loucura, caridade cristã e modernidade no Arraial do Tijuco

19-07-2015 15:13

Loucura, caridade cristã e modernidade no Arraial do Tijuco

 

Madness, Christian charity, and modernity in Arraial do Tijuco

 

 

 

Leandro de Martino Mota

Sociólogo e doutor em saúde pública. leandro.mota@ensp.fiocruz.br

 

 

Durante boa parte da história da humanidade, temos sido convidados a imaginar e a crer que a razão é símbolo da certeza científica, um pilar que ajudou a erguer a sociedade moderna. A própria designação historiográfica Idade das Trevas para a época do medievo, contraposta à Idade das Luzes, reforça essa premissa. Essa noção foi ainda mais incrementada por René Descartes, no século XVII, ao assegurar a correspondência entre pensar e existir - o que pode nos levar a crer, num raciocínio reverso, que quem não pensa não pode existir. Foi nesse panorama racional que a percepção da 'desrazão', ou da loucura, em vez de representar uma busca por auxílio e recuperação, passou a reificar o mundo sombrio, desconhecido, o que muitas vezes faria erguer uma ponte com a sociedade 'racional' apenas através da descriminação e do preconceito. Felizmente, não em todas as realidades, épocas e culturas os 'alienados' foram tratados com descaso ou largados à própria sorte.

Ao abordar a cidade mineira de Diamantina, Maria Cláudia A.O. Magnani nos mostra, em relevante trabalho de pesquisa e interpretação histórica, os encontros e desencontros da sociedade, do meio acadêmico e de representantes da Igreja, para resolver a problemática regional dos cidadãos 'alienados' da razão.

Um dos primeiros aspectos que chamam a atenção, ao ler o livro dessa filósofa-historiadora, fruto de sua dissertação de mestrado, é a importância da pesquisa e da preservação de dados primários relativos às unidades de saúde e aos seus usuários. Outro aspecto relevante da pesquisa são as diferentes memórias que compõem a história da saúde mental em Minas Gerais e a aspiração à modernidade através da institucionalização dessa especialidade médica. De fato, a história do hospício de Diamantina se confunde com a história do tratamento e da recuperação de pacientes psiquiátricos nessa porção territorial do Brasil.

A criação do hospício de Diamantina ocorreu em meio a interações entre as questões econômicas, culturais e políticas do fim do século XIX, em um contexto de 'modernização' social iniciado com o apogeu da mineração local e a institucionalização da psiquiatria em Minas Gerais. Foram basicamente dois os movimentos que, seguidos por debates epistemológicos, culminaram na criação do hospício de Diamantina. De um lado, os adeptos da retórica da cidade 'moderna', organizada e higienizada, que deveria transformar o louco em alienado mental, passível de tratamento - numa forte apropriação do saber médico europeu (francês) da época - e, de outro, o discurso religioso de caridade, do cuidado e amor ao próximo, que também isolava o indivíduo que antes perambulava pelas ruas. Ainda assim, o hospício de Diamantina, que tanto significou no processo de medicalização do paciente psiquiátrico e funcionou durante 17 anos, foi negligenciado e nem sequer foi inaugurado oficialmente.

O conceito de alienação mental inserido na cidade moderna, que a autora nos traz, corresponde à noção foulcaultiana que atribui à modernidade a criação de novos espaços de sociabilidade e interação dos loucos, bem como a compreensão da loucura como doença mental. Entretanto, o tratamento dessa doença mental é também entendido como parte do processo de disciplinarização do homem e de controle da sociedade. Tal linha de pensamento remete ao que Illich (1979) denominou medicalização da vida e alienação da dor. Destaque-se, portanto, que a compreensão da doença mental ocorre para além da experiência individual, abarcando questões inerentes à história e à política da sociedade, e que o estudo do tratamento clínico não pode ser dissociado do mundo social e político (Rauter, Passos, Benevides, 2002).

A origem do hospício, no Brasil, remonta à tentativa de escamotear, com uma roupagem republicana de preferência ilustrada e do tipo europeu, uma realidade que trazia as marcas da história colonial brasileira, de injustiça, preconceito e desigualdade social. O hospício de Diamantina é exemplar dessa concepção. A loucura, tradicionalmente vista como desrazão, fator considerado comprometedor da ordem e do progresso, precisava ser combatida com razão, ordem e isolamento. Esta passou a ser, durante muito tempo, a única possibilidade de cura: o tratamento moral. Embora tratasse seus clientes com muitos esforços, boas intenções e com o saber de alguns médicos e leigos, a precariedade tecnocientífica (incluindo o limitado conhecimento psiquiátrico) e a forte presença das instituições religiosas nas esferas de poder político fizeram com que o hospício de Diamantina convivesse também com a "prática violenta de recolher e isolar", assinalada por Foucault (2004) acerca das condições do hospital geral. O autor da História da loucura destaca que, entre os séculos XVIII e XIX, internava-se o louco do mesmo modo que o devasso e o libertino, pois o essencial não era mais o desconhecimento da loucura como doença, mas sim que ela era percebida de outra forma.

O 'cenário diamantinense' delineado por Magnani oferece elementos para compreender a história do apogeu e do declínio de Diamantina, como também boa parte de seus projetos, não só econômicos, mas também políticos e de saúde pública. O povoado começou a ser formado a partir 1722, na mesorregião do Jequitinhonha, sempre seguindo as margens dos rios onde havia garimpo. A partir de 1730, ainda com uma população flutuante, o Arraial do Tijuco foi ampliando o seu adensamento. Por meio da expansão de pequenos arraiais ao longo dos cursos d'água em direção ao núcleo administrativo do Tijuco, formou-se o conjunto urbano que hoje compõe Diamantina.

É interessante notar que muitas cidades mineiras, como Diamantina, viveram o apogeu cultural e econômico trazido pela mineração durante alguns anos ou até décadas, e viveram também uma abrupta decadência social, econômica e ecológica, devido à degradação intensa que a mineração causou a seus solos. A maioria dessas cidades não teve alternativa a não ser seguir o velho caminho da pecuária, que inviabilizaria ainda mais intensamente os solos já desgastados. Diamantina, sem condições para a pecuária em virtude da constituição do solo e do relevo, buscou na indústria de tecidos sua salvação econômica, a partir de meados do século XIX. A bacia do Jequitinhonha, cujos diamantes deram tanta riqueza a Minas Gerais e a Portugal no século XVIII, é hoje uma das regiões mais pobres do Brasil.

A autora enfatiza que os marcos da modernização do arraial foram a instauração de uma nova ordem urbana e a construção do hospício destinado exclusivamente a pacientes alienados. Esse projeto contou com o auxílio da caridade e da filantropia de Diamantina, que eram os responsáveis pelo hospício (Santa Casa de Caridade). De modo geral, pode-se dizer que as Santas Casas funcionavam como abrigos para cidadãos desvalidos, órfãos, aleijados e loucos, e seus hospitais muitas vezes não possuíam nenhum médico. Em Diamantina, onde também não havia médicos, o hospital não seria destinado apenas a receber inválidos e moribundos e tratar dos últimos cuidados e do enterro desses indivíduos; sua missão seria cuidar dos pobres e miseráveis, amparando os doentes, dando abrigo, cuidados básicos e educação. Não se identifica, portanto, o hospício de Diamantina como um 'depositário' humano. E embora tenha funcionado em prédio anexo ao hospital da Santa Casa - enquanto aguardava ser cumprida a promessa de construção de instalações modernas e adequadas - é possível que ele tenha sido uma das unidades pioneiras de saúde a medicalizar a doença mental respeitando protocolos internacionais de classificação e tratamento das diferentes doenças.

A caridade e, mais particularmente, o sentimento religioso de cuidado ao próximo conviveram com o higienismo, ideologia ou uma vontade política alimentada pelo avanço da medicinal social e da engenharia sanitária que pretendia limpar a cidade e reordenar seus espaços públicos conforme a tradição francesa. Um exemplo dessa perspectiva em Diamantina foi a construção, em fins do século XIX, do cemitério municipal, para o 'bem da higiene pública', uma vez que as igrejas passaram a ser consideradas anti-higiênicas devido à grande quantidade de cadáveres enterrados em seus arredores.

Na iniciativa de criar um hospício na cidade - repercutindo de certa forma a tradição de professores e médicos mineiros, no desenvolvimento de estratégias terapêuticas voltadas para pacientes alienados -, estiveram presentes diversos e conflitivos interesses, desejos e valores. E a despeito de todas as controvérsias, nenhum poder público assumiu plenamente a responsabilidade pela gerência e administração do hospício. Essa multiplicidade de interesses influiu também para o fechamento do hospício, que funcionou de 1889 a 1906. Como bem descreveu Magnani, o atendimento aos pacientes psiquiátricos no Hospício de Diamantina foi um processo embrionário, que não chegou a alcançar independência da religiosidade, nem a profissionalização e a medicalização, e embora tenha singularidades não ocorreu apenas ali.

De acordo com o estudo da autora, o Hospício de Diamantina não tinha características de um lugar de confinamento e isolamento, o que, de certo modo, o exclui da categoria de instituição total, "uma instituição definida como um local de residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada" (Goffman, 2007, p.11), sendo os principais exemplos os manicômios, as prisões e os conventos.

Em que o paciente desse hospício seria diferente dos demais indivíduos? Ou, como propôs a autora, o que era ser normal naquele contexto? Embora compreenda-se que a precariedade dos registros médicos daquela época levou a dados de pesquisa igualmente precários, que, por sua vez, podem comprometer a interpretação histórica, sabe-se que os loucos eram, principalmente, negros, mestiços, pobres, escravos e depois ex-escravos, trabalhadores simples, mendigos ou desocupados; além de mulheres que, mesmo 'protegidas pelo casamento', perdiam a razão, conforme a visão da época, em virtude de sua fragilidade biológica e natural. Aliás, a estratégia psiquiátrica de controlar e qualificar os comportamentos sociais parece ter funcionado inversamente em relação às mulheres, entre 1866 e 1882: não só os preceitos médicos mas também os da Igreja, que incitavam as mulheres a um comportamento maternal, passivo e benevolente, não foram suficientes para impedir o aumento significativo de processos de divórcio no Tribunal Eclesiástico de Diamantina.

A loucura é um fato relativo às culturas, e não um fato da natureza, e as próprias estratégias para tratá-la são também ditadas culturalmente. No entanto, me parece que a sociedade tem cada vez mais facilidade para criar loucura e mais dificuldade para resolvê-la... Além disso, o hospício pode ser compreendido como um objeto de múltiplas interpretações, bem como a loucura, o que contraria o primado de causa e efeito da medicina positivista.

Como enfatiza Magnani em Hospício de Diamantina, as promessas de modernização da cidade, fruto da industrialização e do enriquecimento gerado pela mineração, assim como a concretização de seu hospício não se cumpriram. Mas a proposta da autora em promover os estudos sobre a memória e a história da saúde mental foi plenamente cumprida. Numa próxima edição, uma revisão ortográfica e uma reformatação dariam à obra a qualidade editorial que ela merece.

 

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva. 2004.         [ Links ]

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva. 2007.         [ Links ]

ILLICH, Ivan. A expropriação da saúde: a Nêmesis da medicina. Rio de janeiro: Zahar. 1979.         [ Links ]

RAUTER, Cristina; PASSOS, Eduardo; BENEVIDES, Regina (Org.). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Te Corá. 2002.         [ Links ]