Pedra do Urubu Rei

15-03-2011 23:30

A uns quatro kilômetros de Diamantina, do outro lado do Pururuca, em uma bela posição, elevada sobre os lindos banheiros do Prata, há umas ruínas de casa e restos de muros, que não caíram de todo porque são de “taipa socada”, feita de gorgulho virgem, como já não se fazem hoje. Cercavam esses muros uma chácara, convertida em “tapera” há mais de cincoenta anos. Talvez restem ainda algumas jaboticababeiras, que são, naquele clima, os últimos vestígios de antigas habitações.

            O sítio é conhecido por – chácara  do Urubú-Rei. Lá fui muitas vezes, a passeio ou a colher as jaboticabas “sem dono”.

            É bem possível que se presuma provir aquele nome de ser ali comum o curioso “Sarcoramphus papa”, vulgarmente conhecido como urubu-rei...

            Não. Por esse nome era conhecido o útlimo proprietário da chácara. O apelido lhe veio de uma das suas muitas extravagâncias.

            Casára-se com uma senhora abastada. Em pouco tempo, dissipou os bens do casal, só restando a chácara, de que não podia dispôr, por ser “bem de raiz”, e negar-se a mulher e assinar escritura de venda.

            - Ora bem! – disse ele um dia. – Não posso vender a rez em pé: farei dela carne seca.

            E vendeu portas, janelas, telhas e umbreiras, caibros, pedras lavradas, depois de “torrada”  a mobília. Eis como ficou abandonada a chácara.

            Foi nessa ocasião que, vendo-se sem recursos, para atrair a compaixão dos parentes e amigos, já se havendo retirado da cidade, voltou trazendo um urubu-rei, que comprou no sertão. Mostrava-o por meia pataca a quem queria vê-lo. Daí lhe veio o apelido.

            Era um homem alegre e jocoso.

            Contava meu pai que, indo assistir a uma festa do Divino, no arraial de Datas, com vários amigos, meteu-se na “frota” também o Urubu-Rei.

            Hospedaram-se em casa de uma família do lugar. No dia do Império do Divino, houve distribuição de carne (dos bois do Divino) e mantimentos aos pobres.

            A distribuição era feita em casa do Imperador; por uma portinhola, aberta em uma janela, enfiava o braço cada pedinte.

            Como afluíssem muitos pobres, declarou o festeiro que cada um só recebesse a carne e mais um saquinho de outra coisa, conforme a necessidade de cada um.

            O Urubu-Rei, saíndo a passeio, viu a afluência de pobres. Meteu-se no meio deles, por troça, e recebeu um saquinho de açúcar. Trouxe-o para casa, dizendo á dona:

            - Não gosto de ser pesado a quem me hospeda; aqui tem açúcar para o nosso gasto.

            Voltou a distribuição e trouxe feijão. Depois, conseguiu sucessivamente arroz, fubá e farinha de milho.

            Riam-se todos da brincadeira.

            Mais se riram quando, depois de longa demora, chegou o homem, pedindo água quente e sabão para lavar a manga do casaco, toda untada de azeite...

            Contou a aventura assim:

            - Infelismente ia eu, com este casaco de manga terminada em canhão de pele de lontra. Quando pela quarta vez meti o braço na abertura da portinhola, agarramo-o, exclamando: “ Esta “lontra” já tem entrado aqui muitas vezes; há de ficar presa até acabar a distribuição .” E assim foi, meus amigos. Por mais esforços que fizesse, não conseguiu fugir. Que punhos de ferro os do tal tratante! O pior é que a última  distribuição foi de azeite, e, por maldade, derramaram-me uma garrafa na manga dizendo: “ Bezunte-se a lontra antes de soltá-la.”

SILVÉRIO, Padre, Quarenta Contos, O Urubu-Rei, 1918.