Tipos Populares

28-11-2010 12:56

 Maria do Zé Eleutério

    "Calôio, Calôio, canaia, corja de sem vergonha, fios da... (e citava nomes), tão fazendo colôio p'ra perdê mais fia"

    Essa descomponenda fluia aos borboltões, em tons variados, da boca escura e desdentada da Maria, chamada  - do Zé Eleutério, nome do seu antigo senhor.

    Preta, magra, sessenta anos presumíveis, saia de algodão, outrora preto, ora cor indecisa, casaco de chita, lenço na cabeça e pés descalços, ía a Maria gesticulando, arrancando de insultos os perseguidores de sua filha, com uma lata d'água equilibrada na cabeça.

    Era incansável no trabalho.

    Para abastecer os potes das famílias, carregava água do chafariz da Câmara, situado na convergência dos Macaus, do Meio e de Baixo.

    A água desse chafariz passa até hoje por ser a melhor entre as excelentes águas de Diamantina e mesmo de Minas Gerais.

    Não havia talhas com torneiras, retirava-se a água do pote para o copo de prata ou de cristal, por intermédio de um caneco de folha de flandres, com um longo cabo, tendo os bordos recortados de lâminas ponteagudas para evitar que o levassem a boca e se contaminasse a água do pote.

    A Maria também jogava cisco fora, isto é, conduzia o lixo, em bacias ou gamelas, das casas par os terrenos vagos, onde iam fariscar as galinhas e andavam os cães á cata de ossos e restos de comida.

    Lavava casa e carregava areia.

    A areia, extraída, em toda parte, das rochas em decomposições, principalmente nos terrenos da Almotolia, é claríssima e fina e tinha várias aplicações.

    Peneirava-se no assoalho das casas, depois de lavado, dando-lhe tom festivo em aniversários, banquetes, batizados ou chegada de hóspede querido  - um parente, filho vindo dos estudos.

    São tão fortes as impressões que se recebem em menino que eu sempre associo á idéia da areia aos sons musicais do almofariz secando canela de cheiro para polvilhar o doce de leite ou arroz doce, dos dias de festa.

     Nas ruas por onde passavam procissões ou o Viático era uso por areia em mentículos equidistantes e por cima folhas verdes de cafeeiro.

    Pessoas simples faziam dessas folhas, pisadas por centenas de pés, um cha que julgavam eficaz par qualquer moléstia.

    Usava-se também a areia nos presepes e nas festas de Santa Cruz, onde, na arcadas de bambu, com vistosas lanternas de papel, balançavam as enormes flores escariates do papagaio, de cor berrante, para gáudio da meninada, a soltar os foguetes minúsculos da Carlota Bosta d'Anta, preta velha, viúva, trajada de luto, lenço sobre a cabeça e pontas atadas debaixo do queixo, honrada fabricante de fogos pequeninos e inofensivos, para uso de crianças.

    Lá uma vez ou outra decaía do seu esplendor, e, associada ao estrume de vaca, ía a areia formar o reboco para as raríssimas construções, em que o telhado precedia ás paredes de barro e varas.

    "Colôio, colôio, cojra de canais..."

    As veze, em suas descomposturas, a Maria focalizava algum garoto malcriado e provocador, ameaçando-o de ir queixar-se aos pais.

    Uma senhora quis contratá-la para o trabalho e ela prontificou-se logo, ditando condições: "Oncê sabe que eu trabaio mêmo; eu capino horta, lavo casa, dou água, ponho cisco fora, busco areia e carrego lenha, mas não ajusto por menos de dois mil réis por semana, menos nem um deréis".

   É verdade que nesse bom tempo nem se sonhava com a estabilização da moeda e, talvez por isso mesmo, um vintém ou um "derréis", era a unidade monetária, - valia nas lojas algumas agulhas, um novelo de linha, uma caixa de fósforos, etc.

    Muitas vezes as mãos da Tia Rosa, da Idalina ou da Tia Brígida interrompiam o estalado morticinio de piolhos nas cabeças das filhas ou companheiras para tirarem do taboleiro um pe de moleque, um doce de cidra ou duas broinhas que se adquiriam por um vintém, provavelmente lambuzadas de sangue dos parasitas.

    As moedas de cobre, do valor de 10 réis, recunhadas para 20 réis, eram muito comuns.

    Daí o nome de "derréis" ás moedas de 20 réis.

    Um dia, num dos seus contínuos acesos de furor contra os seus perseguidores imaginários, bradava: - "Canaia, tem inveja de mim porque eu trabaio mias coisa e passo muito bem, graças a Deus.... ( Com um sorriso de vaidade  e importância) ainda onde comi um arroz com uma carne seca gostosa... (e lambia os beiços como se ainda estivesse saboreando o guisado).

    Note-se que o arroz era um prato fidalgo, inacessivel aos pobres que se arranjavam com a canjiquinha de milho quebrado.

    Pobre Maria!

    Aquele cerebro desenquilibrado, aquele organismo mesquinho, desprezado de todos, chasqueado pelos desalmados, tinha no coração um trono alcandorado onde colocava sua filha estremecida. Era a mãe e ai daqueles que tentasse tocar no seu tesouro.

    Contra ele enfurecia-se, como uma leoa, e desferia a única e terrível arma que possuía - o insulto cortante e soez bradado em altas vozes pelas ruas da cidade.

    "Colôio, colôio, corja de canaia"...  ( do livro Tipos Populares de Diamantina, de Fernandes Augusto).

PARA VER TODOS OS CONTEÚDOS DESTE SITE -- CLICA NO MAPA DO SITE  -  NO RODAPÉ.