A Fábrica de Tecidos de Biribiri

23-03-2017 23:38

A FÁBRICA DE TECIDOS DO BIRIBIRI: EMPRESA E FÉ NO INTERIOR DE UMA VILA OPERÁRIA EM DIAMANTINA/MG.

 

THE TISSUE FACTORY OF BIRIBIRI: COMPANY AND FAITH INSIDE A WORKING VILLAGE IN DIAMANTINA/MG.

 

Kátia Franciele Corrêa Borges[1]

 

Resumo

Este artigo trata-se de um recorte dos estudos desenvolvidos para o projeto de doutoramento   intitulado  “Mulheres operárias: gênero, poder, disciplina e trabalho na Fábrica de Tecidos do Biribiri (Diamantina/MG)”. Fazendo uso de fontes primárias e secundárias ele dialogou-se com autores memorialistas, clássicos e contemporâneos onde foi possível constatar que nesta fábrica desenvolveu-se uma cultura fabril peculiar envolvendo empresa e religião católica. Para tanto, a abordagem utilizada foi qualitativa descritiva. Assim, considerou-se que as discussões e análises levantadas neste artigo contribuem para demonstrar a influência cultural da Igreja Católica na Fábrica de Tecidos do Biribiri delineando deste modo a formação e disciplinamento do seu operariado.

Palavras-chave: cultura, fábrica, empresa e religião católica. 

 

Abstract

  

This paper is about a cut out of the studies developed for a doctorate project intitled: "Women workers: gender, power, discipline and working in a Textile Factory from Biribiri (Diamantina / MG)". Making usage of primary and secondary sources he spoke with memoirs authors, classic and contemporary where it was established that this plant developed a particular culture involving manufacturing company and Catholic religion. Therefore, the approach used was descriptive qualitative. Thus it was considered that the discussions and analysis raised in this article contribute to demonstrate the cultural influence of the Catholic Church in Biribiri's Textile Factory outlining thus the formation and disciplining of its working class.

 

 Keywords: culture, factory, company and Catholic religion.

 

 

 

 

 

Introdução

 

No Brasil, conforme Dulci (2013, p.3), até a chegada da Corte em 1808 não

era permitido à instalação indústrias. O Príncipe Regente Dom João “liberou a existência de indústrias no Brasil, o Governo Real instalado no Rio de Janeiro tomou uma série de providências relativas ao setor industrial da região”. Dulci (2013) ainda lembra que foi o mesmo quem formulou “a primeira política industrial brasileira” (DULCI, 2013, p.13).

Em Minas Gerais, de acordo com o autor em pauta, as primeiras indústrias

datam também do século XIX, concentrando os setores de mineração (ouro e ferro), alimentos e têxtil. Neste último, a presença feminina foi notadamente maior que a masculina. Dulci (2013) ainda informa que entre os períodos de 1868 e o fim do século XIX foram fundadas em Minas Gerais 29 fábricas têxteis. Entre estas, o presente Artigo propõe discutir a Fábrica de Tecidos do Biribiri. Esta empresa foi fundada em 1876 pelo Bispo de Diamantina Dom João Antonio Felício dos Santos e sua família e, também se destacou como importante indústria têxtil  de Diamantina/MG. 

Esta fábrica, no decorrer de sua existência (1876-1975), passou por três

administrações diferentes. A primeira foi no ato de sua fundação quando, o Bispo Dom João Antônio dos Santos informou que esta fábrica consistia numa empresa de finalidade social para apoiar as moças órfãs e necessitadas. A segunda ocorreu no início do século XX, quando a família Felício dos Santos não conseguindo mais manter o empreendimento vendeu-o para a Família Duarte. E por fim, a terceira e última, quando a família Mascarenhas entrou no negócio, por volta década de 1930, a priori como sócios da família Duarte e depois se tornaram donos definitivos da fábrica. 

Este artigo ainda se justifica como parte do projeto de doutoramento que se

encontra em desenvolvimento e tem como objetivo analisar aspectos que correlacionam empresa e fé no interior de um  empreendimento fabril no final do século XIX e meados do século XX em Diamantina/MG.

  

Materiais e métodos

 

 O presente estudo trata-se de um recorte  do  projeto de doutorado intitulado 

Mulheres operárias: gênero, poder, disciplina e trabalho na Fábrica de Tecidos do Biribiri (Diamantina/MG). Para tanto adotou-se  como fontes primárias alguns manuscritos e impressos, são eles: Nota informativa do Jornal Estrela Pollar (27/08/1903); Petição ao Glorioso Santo Antônio (10/01/1929); e, Caderno de atas das reuniões da associação filhas de Maria (1930.1941). Optou-se, em citar parte destes documentos, e, em manter a literatura da época tal qual como foi escrito. Para construção desta análise também  dialogou-se com referências bibliográficas de autores: memorialistas, clássicos e contemporâneos com publicações dos períodos entre 1987 a 2013. Portanto, a abordagem foi qualitativa descritiva. 

 

A Fábrica do Biribiri

 

Em 1867, Dom João Antônio Felício dos Santos, Primeiro Bispo de Diamantina, pressionado pelo Governo Imperial, devido aos cortes de verbas, sentiu dificuldades em manter o Seminário e o Colégio N. S. das Dores, em conseqüência da célebre Questão Religiosa. Então, convidou os manos Antonio e Joaquim a ajudá-lo fundar uma fábrica de Tecidos, perto da cachoeira de Biribiri. Assim, constituíram a firma Santos e Cia (LEMOS. 1999, p.41)

 

 

A fundação da Fábrica de Tecidos do Biribiri[2] ocorreu como um

empreendimento familiar. Isto pareceu uma característica típica da implantação da indústria têxtil mineira. De acordo com Giroletti (1991, p.24) “em 1808 os irmãos Bernardo, Caetano e Antonio Cândido Marcarenhas [...] fundaram uma empresa – Mascarenhas Irmãos Ltda. – com o objetivo de construir uma fábrica de tecidos” (uma das primeiras desse tipo em Minas Gerais).  Esta fábrica se instalou na Fazenda da Ponte, localizada em Taboleiro Grande[3], devido a uma queda d’água que existia no local e poderia servir como força motriz para a fábrica. No excerto acima Lemos (1999) informou que Dom João Antônio Felício dos Santos ao convidar seus irmãos para fundar a fábrica propôs-lhes que esta fosse também situada próxima a Cachoeira do Biribiri, onde a família possuía terras e também poderia aproveitar a força motriz das águas daquele lugar. Diante disso, observa-se que além de se caracterizar na modalidade empresa familiar as primeiras indústrias têxteis de Minas Gerais se situaram em regiões rurais. 

A região do Biribiri se localizava a 12 quilômetros da sede do Município de Diamantina/MG numa região de difícil acesso. Assim, a instalação de uma fábrica naquela região, exigia-se um esforço mútuo dos seus empreendedores. Conforme Lemos (1991) os maquinários para fábrica foram adquiridos em Massachussets e desse modo,

 

os equipamentos, desembarcados no Rio de Janeiro, alcançaram Juiz de Fora por Ferrovia. Chegaram à foz do rio das Velhas em lombos de burros e carroças. A carga desceu em jangadas até o rio Paraúna. Novamente conduzidos à tração animal, desembarcaram em Biribiri, após percorrerem 17 léguas de estradas construídas com esta finalidade específica. O mecânico americano Richard, que acompanhou a caravana, começou a montar as máquinas em condições adversas de trabalho. A lentidão caracterizou o empreendimento (LEMOS, 1991, p.41). 

 

 A chegada da ferrovia em Juiz de Fora ocorreu em 1875[4], o que facilitou, em parte, o transporte do maquinário. Todavia, a inauguração da Fábrica de Biribiri ocorreu em 1876. Se tomarmos como base que tal empreendimento foi pensado em 1867 e foi concretizado nove anos depois, podemos considerar que tratou-se de um empreendimento dispendioso e longo. No entanto, no excerto de abertura deste preâmbulo Lemos (1991) mencionou dois pontos que cabem um breve comentário aqui: o primeiro foi à questão religiosa e o segundo a manutenção do Colégio Nossa Senhora das Dores.  

 A questão religiosa, a qual  Lemos (1991) se refere vagamente, na realidade são duas questões correlacionadas: a Romanização do Catolicismo e a crise do Padroado. A primeira ocorreu a partir da segunda metade do século XIX, tinha como objetivo combater o processo de secularização e laicização consequente do Iluminismo e materialismo filosófico. Outro  objetivo também seria combater algumas práticas culturais, sobretudo, brasileiras, compreendidas pelo Vaticano como superstição, ignorância religiosa e primitivismo cultural. O reflexo dessa Romanização no Brasil pode ser perceptível no aumento da quantidade Dioceses[5] e disseminação do catecismo católico (BORGES, 2013; SOUZA, 2003).  Já o a crise do Padroado se refere às tensões que ocorreram entre Igreja e Estado. Na época a Constituição de 1824 estabelecia que o catolicismo seria o único culto religioso permitido no Brasil. O Padroado concedia poderes ao Imperador Dom Pedro II de nomear padres e cargos religiosos. Assim, os padres e demais religiosos seriam também subordinados ao poder do Estado brasileiro (FAUSTO, 2001).

 Não obstante, com a Romanização a maçonaria passou a ser vista como uma ordem que deveria ser combatida pela Igreja Católica. No entanto, no caso do Brasil isso seria complicado, pois, segundo Fausto (2001) a maçonaria tinha influencia nos círculos dirigentes do Estado. Mesmo assim o Bispo de Olinda acatou as ordens de Roma e proibiu o ingresso de maçons nas irmandades religiosas. Ele foi preso e condenado pelo Estado brasileiro. Tal episódio foi seguido pela prisão de outro bispo também. O conflito foi resolvido com a anistia para os bispos presos (1874-1875) e a suspensão da proibição pelo papa das proibições aplicadas aos maçons. No entanto, este episódio desencadeou diversos problemas nas relações entre Monarquia e Igreja Católica.   Nesse sentido, pressupõe-se que o Bispado de Diamantina[6], de certa forma, sofreu intervenções advindas destes eventos, como por exemplo, o corte dos subsídios que ajudariam na manutenção das obras de Dom João, entre estas se destacou o Colégio Nossa Senhora das Dores. 

 De acordo com Fernandes (2011, p.109) Dom João Antonio dos Santos

empreendeu várias obras assistenciais  –  fundou sociedades beneficentes de ajuda e os educandários “o Ateneu São Vicente de Paulo, o Seminário Episcopal, o Colégio Nossa Senhora das Dores” (FERNANDES, 2005, p.110). Aos dois primeiros coube a educação masculina, enquanto o ultimo a educação feminina. Ainda em Fernandes (2005) também se tem a informação de que o Colégio Nossa Senhora das Dores, em 1876, foi privado da subvenção do governo imperial para manutenção de 60 órfãs recolhidas, as demais obras também sofreram restrições por parte do governo imperial. Isso fez com o que bispo buscasse alternativas de renda. Entre estas se destacou a fundação da Fábrica de Tecidos do Biribiri que, além de gerar renda, poderia gerar empregos para moças órfãs depois de cumprido o período de estudos no Colégio Nossa Senhora das Dores (FERNANDES, 2005).

  Diante do exposto a questão que aqui levantamos é: seria isto mesmo? Chamar os “manos”, conforme salientou Lemos (1991) para fundar uma fábrica no meio do nada que necessitou abrir estradas só para a maquinaria chegar? Ainda em  Fernandes (2005) encontramos  a informação de a Fábrica de Tecidos do Biribiri foi fundada com um caráter assistencialista. Ou seja, o Bispo informou aos detentores do capital desta fábrica (sua família)  que não esperassem lucros, pois a fábrica deveria gerar renda para a manutenção dos empreendimentos educacionais e empregos para as moças órfãs e para os ex-escravos para que não ficassem ociosos. Ou seja, para os (as) desamparados(as).

 Se a afirmação de Fernandes (2011) está correta, ainda não é possível afirmar, pois o presente estudo ainda se encontra em andamento. No entanto, o que se percebe até o momento, é que, o período em questão, tratava-se de um período de transição do trabalho escravo para o trabalho livre[7]. Nota-se, neste ponto, que um dos problemas de verificação desta pesquisa concentra-se na questão da configuração social presente na sociedade diamantinense onde é possível também atentar para existência de práticas e mecanismos de controle social da classe trabalhadora, típicos de uma cultura capitalista (CHALHOUB 2001; MARX, 2012). 

Não obstante, cabe ainda ressaltar que antes da ordem burguesa (com as

empresas), havia o domínio do pátrio poder, que harmonizava com o Antigo Regime. Este momento, em que a fábrica foi fundada é um momento de transição também, no sentido em que o novo já se apresentou em alguns contornos como a própria fábrica, mas que o velho ainda subsiste como a figura do bispo a frente deste empreendimento juntamente com sua família. Ou seja, o papel empreendedor das famílias patriarcais que, não foi mérito apenas da Fábrica de Tecidos do Biribiri, mas também  de outras fábricas de tecidos de Minas Gerais, como a pertencente aos irmãos Mascarenhas. 

 Contudo, seguindo a história da fundação e manutenção da Fábrica de

Tecidos do Biribiri é possível observar que esta dinamizou a história da economia local embora também tivesse traços do capitalismo vigente na Europa e nos Estados Unidos. Segundo Armonimo e Neves (2007, p.99/100), a fábrica em questão começou a funcionar com “63 operários, sendo 36 moças, 18 meninos e 09 homens”. Nota-se neste ponto uma prática semelhante ao modelo de fábrica inglesa – a prática de contratar mulheres e crianças. De acordo com Marx (2012) os capitalistas ingleses defendiam que para aprender a arte do ofício os jovens deveriam começar cedo. E que “em alguns ramos, as meninas e as mulheres trabalhavam à noite junto com pessoal masculino” (MARX, 2012, p.298). 

 No entanto, na Fábrica de Tecidos de Biribiri não encontramos indícios de que não existia jornada noturna e somente fontes que asseguram a preferência por contratar mulheres e crianças. Encontramos ainda fontes que asseguram que junto com a fábrica foi criada também uma vila operária com o pensionato para as moças chamado de Convento; casas para os trabalhadores e suas famílias: casa do gerente e Igreja conforme descreve a figura abaixo. 

 

FIGURA 1- Planta da Vila Operária do Biribiri 1975.  

Fonte: Museu Alexandre Mascarenhas. Estamparia S/A – Contagem/MG.

             

 

 Percebe-se assim uma interação entre sociedade, economia e cultura assim como também entre a tradição e a inovação. Estas características estiveram presentes na referida fábrica contribuindo para formação não só dos trabalhadores e trabalhadoras como também dos empresários que a administraram. Cabe ressaltar que esta fábrica, durante o período que funcionou (1876-1976), passou por três administradores diferentes. O primeiro foi o Bispo Dom João Antônio dos Santos que informou que esta fábrica consistia numa empresa de finalidade social para apoiar as moças órfãs e necessitadas. O segundo ocorreu no início do século XX, quando a família Felício dos Santos não conseguindo mais manter o empreendimento vendeu-o para a família Duarte. E por fim, o terceiro e último, quando a família Mascarenhas entrou no negócio, por volta década de 1930, a priori como sócios da família Duarte e depois se tornaram donos definitivos da fábrica. 

 Desse modo, é possível perceber que as gestões de da Fábrica de Tecidos de Biribiri ora se completavam e ora se distanciavam. O curioso foi o fato de a empresa ter sido instaurada não por burgueses, mas por integrantes da ordem antiga (Igreja Católica). Assim,  ao passar a fábrica para uma gestão mais capitalista, esperava-se que a orientação teria sido alterada tornando as normas mais impessoais e menos moralizantes. No entanto, não foi o que as fontes analisadas para este artigo revelaram. Conforme as fontes a cultura católica esteve presente entre as operárias durante todo o período de funcionamento da fábrica  independente das administrações. Contudo, não foi a toa que Lemos (1991, p.41)  escreveu que “ao som da cachoeira nasceu uma indústria e um vilarejo com aspecto de presépio”. A crença perpetuou-se. 

 

Operárias do Biribiri fé e devoção 

 

Petição ao Glorioso Santo Antônio

Oh: meu glorioso Santo Antônio, nós miseráveis pecadores, necessitando de vosso auxílio e proteção, vimos a vossa presença pedir-vos que nos concedaes a grande graça de vendermos durante este anno toda a produção da Fábrica do Biribiry, com bom resultado inclusive o que está fabricado na Fábrica e aqui, sem ficar fasenda alguma nos depósitos de um anno para o outro; se vós nos concederes esta graça vos daremos no fim do anno a quantia de RS 70$000rs  para o pão dos pobres [...] (VOSSOS HUMILDES SERVOS)[8] .

 

 A epigrafe acima trata-se de um trecho de uma petição a Santo Antonio  composta por cinco parágrafos  tendo em todos eles negociações com o referido santo para outras graças também, como por exemplo: de fazer os teares produzirem 150 metros de pano por ano e se for atendido doaria duzentos conto de réis; ou se caso não tenha nenhum  acidente seria doado sessenta conto de réis; inclusive pede pela previsão de enchentes e catástrofes naturais  que causam prejuízo a produção da fabrica assim doaria 30 contos de réis; e, por aí vai. O texto é encerrado com as seguintes palavras “se vendermos annualmente aqui na loja “RS  60$000$000rs , vos daremos RS  30$000 rs no fim do anno.[9]”. 

 Diante disso é possível observar que a fé católica estava presente nos negócios da Fábrica de Tecidos do Biribiri, inclusive na administração da família Duarte.  Além das orações também existia festas religiosas como informa o texto a seguir:

 

No Beribery[10]

Desde que fundou-se aquele importante estabelecimento, industrial, que demora a 12 kilometros dessa cidade, alli se tem sempre celebrado entre outras, a festa de Nossa senhora das Mercês tendo se effectuado a mesma este anno, a 23 do mez em que vamos. Constou-se de véspera festiva, no Sabbado, e missa cantada no Domingo, sendo celebrante desta Revm, Padre João Benjamim, com assistência do Exm. Sr. Bispo Diocesano. A tardinha desfilou pelo circuito da capella a procissão da Senhora, acompanhada de bom número de fieis e duas extensas alas virgens que lembravam dois cândidos flocos de neve em movimento á flor da terra por onde se estendiam [...]. Ao recolher da procissão houve bençam do S.s. Sacramento dada pelo Exm. Sr. Bispo [...]. Funcionou em todos aquelles actos o côro composto por cantoras operárias do estabelecimento, acompanhando a harmonia com correcção e expressão igualmente admiráveis D. Amélia dos Santos, tocando tão bem o mavioso instrumento e interpretando os textos musicaes, como melhor não fariam as suas intelligentes antecessoras no cargo de organistas, quaes foram D. Guilhermina Chaves (hoje, Irmã de Caridade) e D. Maria José, actualmente residente em Mendes, no E. do Rio de Janeiro. O dia que alli passamos, foi um dia cheios das melhores emoções do espírito, dandonos sentir que confirme a palavra de Deus, o homem não vive só de pão, porem muito mais do lhe fala á alma é ao coração (ESTRELA POLLAR, p.

03, Edição nº25, Anno 1, 27/08/1903).

 

Davis (1990, p.87)  afirma que “a vida festiva pode, por um lado, perpetuar

certos valores da comunidade”. Assim,  no Biribiri, a festa de Nossa Senhora das Mercês, como outras, conforme informa o excerto, fez perpetuar os valores culturais daquela região. Não obstante, no Biribiri as operárias da fábrica faziam parte de uma associação denominada Filhas de Maria. Estas, pelo que informa alguns cadernos de atas[11] a que tivemos acesso, reuniam mensalmente junto com o padre para orar e definir funções para a paróquia local. Conforme exemplo a seguir:

 

Agosto de 1935

Acta da reunião mensal em Biribiry das Filhas de Maria sob a proteção da Virgem Marthyr Santa Inez. Como de costume logo após os atos religiosos da Capela do S. C. de Jesus, as nove e meia e dezoito deste mez foi aberta a sessão, sob a presidência do Revmo. Mons. Antonio Pinheiro, a diretoria, as associadas e algumas Filhas da Imaculada.[...] o Revmo Mos. Pinheiro comessou a sessão relembrando-nos os assunptos da acta anterior falando que a Filha de Maria deve ser um bom espelho de na sociedade, com seus bons exemplos, e ella a auxiliar os Padres, e seguir todos os passos de sua mãe santíssima e virtudes; principalmente a humildade; pedir a Nosso Senhor fortaleza nos trabalhos e sofrimentos dessa vida, ter muita confiança em sua mãe no céu. Aconselhou-nos a não perdermos nosso tempo, empregá-lo em boas obras, que todas nós devemos ter um bom livro, bem como a imitação de Jesus Christo, que esse livro é de muita apreciação para almas piedosas [...]. Aconselhou-nos a que devem quando reunirmos umas duas ou mais para fazer uma leitura em um bom livro, em vez de estarmos encomodada com a vida de outros. Além desses conselhos deu-nos muitos outros salutares e instrutivos. Não havendo mais nada a tratar encerrou-se a sessão com as orações próprias, depois entoamos o hynno a Nossa Senhora. Lavrei esta para constar,  e ser assignada se mereceres aprovação. Biribiry, 20 de outubro de 1935[12].

 

Ser espelho da Virgem Maria soaria bem peculiar numa vila católica. Todavia, Michela de Giorgio informa que esta representação da mulher como espelho da virgem foi propagada em diversos manuais católicos. A autora informa que no final do século XIX, a Igreja propôs reconstruir “uma genealogia vigorosa sustentada pelas virtudes morais da mulher” (GIORGIO, 1991, p.199). Estas virtudes visavam uma unificação comportamental feminina e tomariam como modelos os exemplos de vida de mulheres tidas como santas.  Ora tal unificação é perceptível na fala do Monsenhor Pinheiro. Ao que tudo indica as associadas, em sua maioria funcionárias da fábrica, deveriam se comportar de acordo com as virtudes marianas. 

Contudo, em Ginzburg (1939, 2006, p.12) encontramos a informação que  “o emprego do termo cultura para definir o conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamentos próprios das classes subalternas num certo período histórico é relativamente tardio e foi emprestado à antropologia cultural”.  Desse modo, pode-se constatar que a oração para Santo Antonio, a festa para Nossa Senhora das Mercês e as reuniões mensais das Filhas de Maria foram expressões culturais da prática da fé católica assim como valores da ordem antiga.

A influência cultural do catolicismo estava presente também na habitação

das operárias que era chamada de Convento. Estudos de Perrot (2011) mostraram que, ainda na França do século XIX, as incipientes fábricas de Lyon denominavam os dormitórios destinados as operárias de Convento. Girolletti (1991), ao pesquisar as primeiras fábricas de tecidos em Minas Gerais,  também notou que nome Convento  foi utilizado para os locais onde habitavam as operárias solteiras. Contudo, este autor ainda informa que este nome se deve ao fato de que o local ficava sobre o comando de uma senhora religiosa.   

Não obstante, em Foucault (1987) compreende-se que, na Europa, a prática

de recorrer aos orfanatos para adquirir operários foi uma prática recorrente dos industriais porque queriam corpos dóceis e úteis. Assim, como a maioria destas instituições era regida por ordens religiosas católicas, partes dos industriais acabavam transferindo os valores culturais e disciplinares para manter a ordem e controle do trabalhador. Daí a origem do nome Convento, reforçar a ideia de um local sagrado e disciplinado.  

Diante do exposto, percebe-se que tendo sido a Fábrica de Tecidos do Biribiri, fundada por um Bispo, o nome Convento,  poderia passar a ideia de uma ordem disciplinar conforme mencionou Foucault (1987). Além disso, cabe ressaltar as administrações que vieram após a saída do Dom João Antonio Felício dos Santos do negócio também estimularam a prática da fé católica daí optarem pela continuidade do no Convento. Esta nomenclatura só mudaria  a partir da segunda metade do século XX, momento em que o nome Convento passa para Pensionato[13].

 

Considerações finais

 

A da Fábrica de Tecidos do Biribiri, fundada em 1876, se caracterizou como

um empreendimento familiar. O seu fundador, o Bispo Dom João Antonio Felício dos Santos, convidou os seus irmãos para participar deste empreendimento. Assim, a fábrica foi fundada no terreno da sua família localizado no município de Diamantina/MG.

Ao reportar sobre a administração da fábrica constata-se que esta fábrica

passou por três administrações de famílias diferentes: a família Felício do Santos, a família Duarte e a família Mascarenhas. Pode perceber que estas três administrações, apesar de diferentes, não só admitiram como também estimularam a cultura católica. Esta por sua vez assumiu um caráter peculiar e fomentou a vida local daquela pequena Vila do Biribiri.

Observa-se ainda que as operárias da fábrica participavam de associações

como as Filhas de Maria. As reuniões mensais destas associações eram registradas em atas e os temas abordados orientavam-nas  a praticar uma vida santa conforme a Virgem Maria. Além da Virgem Maria as orações também eram direcionadas a São Antônio verbalizando uma troca comercial. Como por exemplo, as doações de quantia para os pobres, caso a fábrica não tivesse prejuízos durante o ano. 

A  Igreja Católica também estava presente na nomenclatura que se dava ao

dormitório para moças solteiras – Convento. Contudo, conforme abordado no início, trata-se de um estudo que ainda encontra em fase de desenvolvimento. Sendo assim, o objetivo consistiu apenas em analisar alguns aspectos que correlacionavam empresa e fé no interior de um empreendimento fabril.

Contudo, por ora, pode-se considerar que a influência da Igreja Católica na Fábrica de Tecidos do Biribiri delineou a formação e o disciplinamento do seu operariado. Assim como também regulou a vida econômica e social daquela vila

operária. 

 

Referências

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[1] Doutoranda do Programa em História da Universidade Federal de Juiz de Fora/UFJF. Mestre em Desenvolvimento Social e Graduada em História pela Universidade Estadual de Montes Claros/ Unimontes.  

[2] Biribiri pertence ao  município de Diamantina/MG  e se localiza a 12 quilômetros da sede. Atualmente é uma região de Parque Estadual de Preservação Ambiental.  Em Tupi-guarani Biribiri significa “buracoburaco” o que também levou alguns  moradores locais a chamar de “buraco-fundo”.  

[3]  Leituras de Giroletti (2001) informam que  Taboleiro Grande era próximo a região de Sete Lagoas/MG.

[4] Maiores informações ver  <ferrovias.com.br/portal/asferrovias-de-juiz-de-fora>.  Acesso: 23/04/15.

[5] A Diocese de Diamantina foi criada pela Bula Pontifícia Gravissimum Sollicitudinis do Papa Beato Pio IX, no dia 06 de junho de 1854, tendo sido desmembrada da Arquidiocese de São Salvador na Bahia, e da Arquidiocese de Mariana MG. É uma das 12 primeiras Dioceses do Brasil, criadas no tempo do Império, antes da proclamação da República. Ao que tudo  criação da Diocese de Diamante está ligada ao processo de Romanização do Catolicismo e Dom João Antonio dos Santos foi nomeado para ser o primeiro bispo de Diamantina. Maiores informações ver referência Fernandes (2005) ou acessar o site https://www.arquidiamantina.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1&Itemid=3.

Acesso 23/04/2015.  

[6] Dados do histórico da Arquidiocese de Diamantina informam que o Bispado desta cidade  foi criado na época em que havia a união Igreja-Estado, para se criar uma Diocese, era necessário um Decreto do Imperador. A autorização foi dada pela Lei Civil, nº 673, de 10 de agosto de 1853, sendo executada em 1854. Maiores informações ver acessar o site https://www.arquidiamantina.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1&Itemid=3. Acesso 23/04/2015.

 

[7] Ver (LIBBY e FURTADO, 2006).

[8]  Texto sem autor apenas com a descrição no final  Duarte e Irmão, Diamantina 10/01/1929. Transcrito respeitando o texto do documento e  vocabulário do período.  Este texto foi encontrado solto dentro de uma ata de reunião da Associação das Filhas de Maria (1930-1941). Esta associação só poderia ser freqüentada por mulheres.

[9] idem

[10] Encontramos documentos que o nome Biribiri aparece escrito como Beribery e Biribiry. Assim sempre que formos usar documentos faremos uso da forma escrita original.  

[11] MANUSCRITOS GERAIS (ALMANAQUES, LIVROS DE PIEDADE, ATAS DE REUNIÕES ASSOCIAÇÃO FILHAS DE MARIA DA SANTA IGREJA DO BIRIBIRY, (1930 A 1940) – Arquivo morto da Antiga Fabrica do Biribiri (Situado no antigo pensionato para moças na Vila do Biribiri – Diamantina/MG). E arquivos privados de alguns moradores da cidade de Diamantina

[12] Caderno de atas das reuniões da associação filhas de Maria1930.1941. p.07/08. Acervo particular de Edvaldo Nascimento – Chefe de Departamento na Empresa Estamparia S/A- Diamantina/MG.  

[13] Ver figura 1.