A Negrinha do Cinzeiro

07-01-2011 09:43

    Nos finais do século XIX e o início do século XX, o carnaval de Diamantina era bem diferente do atual.

    Não havia os lanças perfumes. A folia era água mesmo. O povo, em geral, empregava toda a espécie de aparelho de irrigação, ainda de uso doméstico ou íntimo. Para as senhoras, entretanto, reservavam a água perfumada dos "limões" de cera, mais tarde preenchidos com tinta, mais conhecido como sangue de capeta que manchavam as roupas dos foliões e os transeuntes, os finos esquichos dos "revolvers" , das bisnagas de metal e de outras criações da indústria, com o fim de borrifar o vestido e a pele das damas, cobrindo-as de leve camada de água de cheiro.

    Nas ruas, o brinquedo era mais bruto: os chafarizes permaneciam cheios e os incautos que passavam, ao ouvirem o grito "Cocho! Cocho!" podiam estar certos de tomar um banho compulsório, com indumentária e tudo, em plena via pública. É certo que não usavam lançar as moças no cocho, mas amendrontavam-nas, ameaçando jogar nelas seus irmãos, noivos ou namorados.

    As crianças deliravam, faziam uma espécie de bisnaga ou seringa de grandes dimensões, para o que cortavam um pedaço de bambu, terminado por um nó, furado no centro, tendo coberta a outra extremidade, por onde passava a haste de bucha que era um piston formado de trapos. Com este aparelho rudimentar, absorviam água dos charcos e poços, para borrifarem outros garotos ou mesmo as pessoas que estivessem por ali. Para tanto, reuniam-se em pelotões ou cambadas de fazer terror por onde passavam.

   Os "gran-finos" da época compravam os "limões" dos vendedores ambulantes. Estes os levavam em tabuleiros até as casas das namoradas dos rapazes, afim de demonstrassem o seu amor e admiração, molhando-as da cabeça aos pés.

    Era temeridade sair a rua naqueles dias de "entrudo".

    A tarde, a brincadeira aquática diminuía, enquanto faziam a "passeata". Consistia esta na reunião de todos os mascarados, para percorrerem as ruas, exibindo as suas fantasias, ao som da música do Corinho. Vinham da Cavalhada Velha e se dirigiam para a ponte do Macau, situada próxima ao local do atual Grupo Escolar.

    E que fantasia usavam! Mascarados de toda a espécie , cara de boi, cabeçorras enormes, capetas, grandes garrafas ambulantes, etc. Vinham alguns á cavalo, com a limaria feita de balaio, pulando, dançando, saltitando. Todos tinham voz de falsete e se aproximavam dos conhecidos, perguntando: "Você me conhece?"

    A nota chique da tarde de Momo era a um andor carregado por quatro homens, tendo por cima o Júlio Procópio, vestido a romana, como um César em triunfo, passeiando pelas ruas da cidade. Era um gosto vê-lo, todo garboso e solene!

    Nesses momentos, a rua ficava apinhada de gente;a criançada perdia a cabeça; as janelas tornavam-se repletas; o povo acorria de todos os cantos.

    Havia então uma trégua; era o jantar e os preparativos para a folia da noitinha.

    Até ás 10 horas da noite, as ruas do Bonfim, Quitanda, Direita e Macau ficavam repletas de mascarados, cantando, aracoteando, brincando a valer.

    Então, os que iam dançar corriam as casas para se preparem.

    Havia o baile da alta sociedade, no velho Teatro Santa Isabel. Todo o edifício era profusamente iluminado por grande número de lampeões belgas. Enfeitavam-lhe ampla platéia de bandeirinhas, cordões de papel, festões de cera e de sebo para permitir o deslizamento dos calçados nas valsas langorosas, nas polkas, mazurcas e finalmente na elegante quadrilha em que todos os dançarinos tomavam parte.

    Entretanto, como em toda sociedade, Diamantina, tinham também o seu "bas-fond". Chamavam-no "Cinzeiro" e se localizava na sala em que ficava por de trás do velho Teatro, com entrada independente.

    Aí divertia-se uma sociedade suspeita, de modo nada edificante. A loucura e o pecado não são privilégios de nossa época.

    A rainha do "Cinzeiro" era a famigerada "Arara", dama suspeitíssima que viera não se sabe de onde, pra desinquietar o coração dos homens, desfazer lares e separar casais.

    O "Cinzeiro" era o terror das boas famílias da terra. Lá, muitas vezes, as mães iam buscar os filhos adolescentes ou as esposas procuravam os maridos levianos.

    Foi nesse ambiente louco que se deu o fato que passo a narrar:

    O Epaminondas, conhecido comprador de diamantes, era daqueles que perdiam a cabeça no carnaval. Embora casado com uma linda senhora ainda jovem, não resistia a sedução de Momo e, nos três dias de folia, esquecia em casa o juízo e a austeridade.

    Na véspera, á noite, falou á mulher:

    - Carmen, vou comprar ingresso prá o baile do teatro. Você quer ir?

    - Não Epaminondas. No ano passado, você me deixou; e se foi para o "Cinzeiro". Não quero me expor mais a afrontas.

    - Bem, então vou eu só. Já fiz a minha obrigação de convidá-la.

    O resto do dia ocupou o marido em preparar uma explêndida fantasia de dominó, para envergar na folia.

    Durante todo o domingo, D. Carmen não pôs os olhos nele, embora estivesse sempre na janela, vendo o entrudo ou o desfile dos foliões.

    A noite, apareceu azafamado, para os últimos arranhos e lá se foi, depois de uma convencional despedida da esposa.

    Embora tivesse prometido ir apenas ao teatro, a verdade é que lá não demorou, tendo ficado um pouco para fazer um ato de presença. Logo após, deu a volta no chafariz e se insinuou pela porta clandestina da parte de trás do vestudo edifício.

    Meia hora depois, nem mais se lembrava que tinha filhos e esposa jovem e bela, filhos pequenos e um lar. Bailava divertido com uma ou outra doiviana naquela sociedade incerta.

    Em dado momento, a sua atenção foi despertada por uma triáde encantadora: três jovens, graciosamente fantasiadas, com máscaras, avançavam, abraçadas, pela sala, como se oferecessem aos admiradores cavaleiros, para compor pares.

    O seu porte é tão encantador e havia a graça que seus modos que ele mais dois rapazes não hesitaram - correram a separá-las. Tocou-lhe a da direita, mais elegante e graciosa. Era uma extraordinária negrinha, cheia de encantos e sedução. A fantasia que envergava constava de um amplo vestido de chita, todo cheio de barbantes e gotas plinssadas, com um avental branco, terminado tudo isto por um lenço vermelho na cabeça. Nas orelhas ostentava grandes brincos e o pescoço, tinto de azeviche, tinha colares em profusão. Com a máscara e luvas, ambas pretas, ela fingia a cor da pele, mas a um gesto seu, pode Epaminondas entrever, sob a máscara, uma cútis fina e alvíssima.

    Dotado de espírito aventuresco e leviano, o negociante interessou-se logo pela dama incógnita que respondia sempre aos seus galanteiso com uma voz de falsete, algo rouca e perturbadora.

    - Quem é, senhorita? Queira me dizer!

    - Não, não posso! e ria enlevada.

    Dançaram sem cessar até próximo de meia noite. O Epaminondas estava literalmente enamorado, mas não havia conseguido que ela se desmascarasse. Teve então uma idéia astuta: Convidou-a para beber cerveja, pois para isto, tera ela que suspender a máscara. Foram ambos para a mesinha octogonal. Ela contudo, foi mais esperta: depois que teve em frente o copo cheio do líquido espumante, falou-lhe assim:

    - Cavalheiro, vou lhe pedir dois favores. O primeiro é que empreste o seu relógio para prendê-lo na minha pulseira até o fim do baile; em seguida, que chame as minhas duas companheiras que estão assentadas do outro lado da sala.

    O Epaminondas, inocentemente, entregou o relógio e levantou-se logo para chamara as outras. Foi o bastante para que ela erguesse a máscara e tomasse toda a bebida de um só trago.

    Quando ele voltou, percebeu o embustee riu desconsolado.

    Dançaram ainda algumas vezes, ela cada vez mais enlevado.

    Repentinamente, na confusão que se fez num intervalo de danças, ela pediu licença e desapareceu no meio do povo.

    E Epaminondas esperou bastante tempo. Quando desenganou, que não voltaria, saiu a procurá-la por todos os recantos e cômodos anexos, constatando que as três máscaras haviam partido.

    Interrogado, o porteiro confirmou o que ele já supunha, mas não deu detalhes.

    Saindo imediatamente, encontrou toda a Cavalhada deserta, exceto alguns conhecidos que deixavam o teatro.

    Desinteressado de continuar, voltou pra casa.

    Quando entrou no quarto, a esposa acordou com o ruído que fizera. Dotado como era de natureza expansiva, o rapaz não se conteve que não relatasse a esposa assentado na cama, toda a sua aventura, ocultando, entretanto, o episódio do relógio. Esta ouviu-se até o fim. Em seguida, deu a mais sonoroa e cristalina gargalhada de toda a sua vida e empurrou-lhe o relógio, exclamando, cheia de ironia:

    - Don Juan sem sorte!

    A Negrinha do Cinzeiro, de Mourão, Paulo Krüger Correa.