1 parte - A História do Brasil no ano 2000 contada por Joaquim Felício dos Santos
JOAQUIM FELÍCIO DOS SANTOS
PAGINAS DA HISTORIA DO BRASIL ESCRITA NO ANO DE 2000*
p( Excertos )
(" ) Publicando no seu caderno de Inéditos uma obra que, embora estampada, na
verdade se conservou desconhecida da quase totalidade da crítica e do público, a "Revista
do Livro" presta ao mesmo tempo serviço e homenagem à memória de Joaquim Felício
dos Santos. Antes de enfeixar em livro, corno pretende, trabalho de tão grandes dimensões,
oferecemos aqui êstes excertos cujo interêsse nos levou a deslocá-Ias, a fim de lhes dar
destaque, do nosso caderno de Arquivo para o de textos inéditos.
A HISTóRIA DO BRASIL ESCRITA PELO DR. JEREMIAS NO ANO DE 2862
São Francisco, 2D de novembro de 2862
Aqui cheguei ontem pelo caminho de ferro. São Francisco é uma cidade
secundária dos Estados Unidos Brasileiros. Só tem quatro l&.ma.s de comprimento
e três de largura. Sua população, conforme o recenseamento feito
ontem ao meio-dia, é de 3.964.632 habitantes; o de hoje, porém, talvez de
menos por causa de uma epidemia que começou a desenvolver-se esta noite.
São Francisco está edificada sôbre as rochas ~cas por cima das
quai~guebrava-~oll.trora a célebre cachoeira denominada Paulo Afonso.
Para facilitar a navegação a eletricidade - a navegação a vapor há muitos
séculos que foi abandonada por sua morosidade _ deu-se ao rio mn outro
leito, e, ficando a cachoeira a sêco, entulharam-se os ~ pe'Zos e profundos
abismos para formar-se o assento da cidade .
. Neste momento, quatro horas da tarde, cheso da C2.5a dos livreiros
Dracon, Braga & Cia., que acabam de ex-por a venda obra de suma
importância: - a História do Brasil pelo Dr. [eremías, O autózrafo foi à
tipografia esta manhã e já se acha composto, impresso, encadernado e publicado.
É portanto a história mais moderna que existe publica da até o presente.
Comprei um exemplar por 648 réís. Compõe-se de ~ - arossos volumes
in-folio, impressos em tipos finos, sem margens sem w ou espaços em
branco, a fim de economizar o material e não suceder como :Eaziam os editôres
da antiguidade que vendiam mais papel limpo do que roas. Os editôres
da obra de que falo são homens de consciência.
É um trabafuo monumental. Dr. Jeremias ~ou dois meses e quatro
dias na sua composição! Ocupado constantemente com a emprêsa não
poupou sacrifícios. Viajou o mundo inteiro colhendo documentos históricos;
revolveu as ruínas de Londres, de Paris de Hamburzo de Bruxelas, de
Lisboa e de outras cidades tão florescentes nos tempos antigos, em uma
palavra: todo o lugarejo onde supunha encontrar aizum esclarecimento foi
visitado. Graças aos progressos da civilização hoje ão tão fáceis essas investigações!
A eletricidade: - tal é a grande alavanca do éculo.
O Dr. Jeremias é um escritor de vasta erudícão. Fala perfeitamente
um milhão de línguas, sabe, cabalmente, dois milhões de artes e ofícios.
Sua História do Brasil é completa, imparcial e minuciosa, compreende o
espaço de 1362 anos, 4 mêses, 8 dias e 26 minutos, isto é, começa no descobrímento
do Brasil e termina-se no momento em que êle deixara a pena de
historiador. Todos os fatos importantes ocorridos nesse espaço de tempo aí
são relatados com tôda a imparcialidade. Digo "importantes" porque o Dr.
Jeremias, para não fatigar o leitor, não desce a minudências que nenhum
influxo tiveram nos progressos da civilização brasileira.
22 de novembro de 1852 - REVISTA DO LIVRO
Para dar uma ideia desta obra, vou abrir ao acaso um de seus volumes,
e transcrever algum trecho. Deparei com o volume 94.°, abri à pág. 2680.
Eis um capítulo; é o MMMMDXCVI; tem por título - "O Segundo Reinado
de Bragança - Pedro II". Transcrevemos esse capítulo. É pouco extenso: o menor da obra.
"Depois da abdicação de Pedro I em 1831, sucedeu-lhe Pedro II, que
só tomou as rédeas do govêrno em 1840, quando foi julgado maior por um
ato inconstitucional da Assembléia Legislativa, não tendo êle ainda a idade
legal. Pedro II subira ao trono pisando a Constituição: os homens políticos
enxergaram neste fato um mau agouro para o futuro; previram que ela não
havia de ser respeitada, e, desgraçadamente, seus pressentimentos não falharam.
"Este reinado nada oferece de importante. _- civilização se não retrogradou,
também não deu um passo para adiante por impulso do Covêrno. E
na vida dos povos, quando uma nação fica estacionária parece retrogradar.
"Misérias e corrupção": deverá ser a epígrafe dêste capítulo.
"Segundo Reinado significa um ensaio i!:6utí[ero que fizeram os brasileiros
do sistema representativo, A Constituição jurada pelo povo em 1825,
com suas reformas e interpretações posteriores, nunca foi respeitada. A
separação e dependências dos poderes fui sempre burlada. O Executivo
absorvera todos os outros. Era o Covêrno despótico e tanto mais intolerável
quanto êle sabia encobrir-se com o :Jl2.I:W da constítncíonalídade. Os brasileiros
aplaudiam, embasbacados com as palavras sonoras, pomposas, sesquipedais
do regímen representativo.
"A Câmara dos Deputados, que devia elevar-se à altura da honrosa
missão de que se achava encarregada pelo pO\-o, curvava-se submissa ao
menor aceno do Covêrno. O Senado, composto em geral de homens ineptos
que aí tornavam assento não por serviços prestados ao País, mas por intrigas
e influxo de reposteiros e criados áulicos, era inimigo de todo o progresso,
descuidado, negligente, sem patriotismo; era êsse o caráter dominante dos
corpos vitalícios que existiram na antiguidade. Felizmente hoje só há um
senado vitalício em Tomboctu, e aí mesmo já apareceu um projeto, que se
discute, para torná-lo temporário .
. . . , , inépcia .
. . . .. sensualidade dividir para reinar, ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::.( ~.) .
"Em conseqüência o Império estava sempre dividido em dois partidos
rivais, constantemente em luta renhida e porfiada; divergente em idéias e
princípios? não; divergentes no sistema de govêrno? não; disputavam sôbre o
poder? não. Disputavam o poder.
~ => "Nos altos empregos da Justiça dominava a mais escandalosa venalidade. ~ \ D Muitos magistrados recebiam dinheiro das partes litigantes para darem seu \J. ):' Yj)fj);; J;;y[)J' D;; plJe .melhor "p~ava.
Jy (") Não pude ler êste trecho da obra do DI. Jeremias por ter falhado a tinta. Só
a muito custo' pude decifrar as palavras que ficam transcritas. É pena, há de ser
interessante.
INÉDITOS
"O povo gemia sobrecarregado de imensos impostos, que tomavam díferentes
denominações para encobrir-se sua odíosidade, como tarifas, taxas,
selos, direitos, lotação e outras. As povoações, disseminadas em um vasto
território, separadas umas das outras isoladas por falta de vias de comunicação,
empobrecidas pelo vampiro do fisco que sugava-lhes tôda a vitalidade,
oprimidas pelos mandões que lhes enviava o govêmo central para governá-Ias,
definhavam à míngua, dormindo indolentes o sono da escravidão, sôbre as
imensas riquezas alastradas no abençoado solo brasileiro, e que não podiam
explorar por não terem meios para a exportação de seus produtos.
"E por que não havia de ser assim. A maior parte das rendas públicas
eram despendidas com a sustentação da Côrte, com sinecuras ruinosas, em
obras puramente de luxo, que só serviam para embelezar a capital. E na
verdade o Rio de Janeiro tornara-se para aquela época uma cidade importantíssima,
como ainda demonstram as suas ruínas. êem-se ainda restos da
Casa de Correção e Moeda, da Casa da Misericórdia, do Hospício de Pedro
II e das estátuas eqüestres, cujo bronze em 2462 foi vendido à Companhia
Progresso-Elétrico, organizada para a abertura do Istmo do Paraná,
"Assim ia o Brasil, quando em 1863 um partido político, desgostoso de
ter sido arredado do poder de que estava de posse a 14 anos, excitou uma
revolução em todo Império, e então "
Não posso continuar a transcrição por falta de espaço; mas por êste
trecho já se pode avaliar o mérito da história do Dr. Jeremias.
PÁGINAS DA HISTóRIA DO BRASIL ESCRITA NO ANO DE 2000
" Assim por maior que fôsse a reserva da
imprensa da época para não despertar susceptibilidades, o público que
apanha as coisas por alto, as entende, as compreende e muitas vêzes cala-se,
o público sabia que as graves e funestas complicações surgidas da guerra
com o Paraguai não teriam por tanto tempo embaraçado a marcha dos
negócios do país, se não fôsse a pressão que exerceram no espírito do Imperador
as ameaças do General Neto. Nas lutas da imprensa e da tribuna
perdiam os partidos um tempo precioso com inúteis recriminações, imputando
um 'ao outro as conseqüências dessa guerra fatal, e ninguém ignorava que
a iniciativa fôra exclusivamente do Imperador. Mas uma ficção constitucional
não permitia a discussão dos atos do Poder Moderador, que se devia reputar
impecável e incapaz do mal, como corolárío da irresponsabilidade. Assim,
jornalistas e homens de Estado, como autores de comédia, agrediam-se com
encarniçamento, assomados de fingida cólera, enquanto o público da platéia
aplaudia, julgando assistir a uma cena da vida real, e o Imperdor ria-se à
socapa debaixo das cortinas de seu camarote.
"E na verdade, nesse ano (1864) chegara inesperadamente à Côrte o
General Neto. O General Neto soube pintar com côres sombrias um estado
anormal, que ideou, da Província do Rio Grande do Sul, onde fürurava one
o exaltamento dos espíritos de seus comprovincianos, em conseqüência dos
insultos sofridos por brasileiros no Estado do Uruguai era tal que ameaçava
seu desmembramento do Império, se ° Govêrno não acedesse a seus caprichos
Saltemos várias páginas que tratam da Missão Saraiva, das represálias,
do protesto das nações neutras etc., etc. Depois o historiador continua:
" Desta forma, para derribar um govêrno legalmente constituído,
um govêrno que na forma da constituição da República representava
REVISTA DO LIVRO
guerreiros declarando a guerra àquela república, que até então se mostrara
amiga do Brasil.
"As guerras naquela província foram sempre acolhidas com simpatia
pelo mercantilismo de certas classes que, de contínuo à espreita, nunca
perdiam ocasião de locupletarem-se nas perturbações das coisas públicas, tais
os pescadores que melhor pescam com o turvamento das águas.
"A guerra do Paraguai, como depois narraremos, foi para essa gente uma
mina fecunda, que exploraram até à piçarra.
"O Partido Conservador que naquela época, em oposição, guerreava o
Govêrno, como especulação política, como meio estratégico de humilhação
para seus contrários fêz eco às exigências do General Neto, esquecido talvez
de que, se queixas havia contra o goyêmo da República Cisplatina já vinham
elas de longa data, e já pediam reparações quando êsse partido no poder
não cuidava senão de perpetuar o seu domínio por meio de uma política
interna que cavava um abismo ao país.
"O Govêrno bem conheceu as ínsídías de seus adversários políticos, que
sob a capa do patriotismo procuravam excitar descontentes no meio dos
sustentadores da situação; o Govêrno resistiria às perfídias de seus contrários,
esclarecia a opinião do país sôbre as conseqüências de uma guerra que necessàriamente
seria desaprovada pelas mais repúblicas americanas, desmascararia
as vistas ocultas dos especuladores; - mas eis que surge à tona uma
vontade superior, vontade que sempre foi fatal nas ocasiões solenes em que
urgia tomar-se uma deliberação de importância: falamos do Imperador.
"Foi êle quem dissipou as hesitações, foi êle quem caricaturando-se à
Breno atirou a sua espada na balança das perplexidades. Opinou-se pela
guerra.
"Seria porque êle conseguira mudar as convicções dos homens do Govêrno?
Não, não foi por isso. O Partido Liberal, possuído de patrióticas
aspirações, acabava, há pouco, de ser chamado ao poder; vinha esperançado
de que o Imperador acolheria favoràvelmente suas idéias, anuiria à realização
de seu programa político. Enganava-se, como depois mostraremos.
Sempre adversário dêste partido, o Imperador conservava saudades de seus
velhos amigos, os algemadores das liberdades públicas. O Partido Libera!
fôra elevado ao poder pela fôrça moral da opinião do país e não pela vontade
do Imperador. Assim iludidos, mas de boa fé, os homens de governança, qU.3
sabiam nada poderem fazer sem o concurso do Imperador, cediam às suas
vontades, - desculpemo-lhes essa fraqueza, que depois expiaram com amargura
...
"Aí está a história das nações para mostrar que os reis olham com
indiferença as calamidades geradas por seus caprichos; mas se entrevêem
no futuro, por qualquer causa, perigarem os interêsses dinásticos, se enxergam
ameaçada uma prerrogativa da realeza desvariam.
"D. Pedra Il, intimidado, sonhou que ia perder uma das mais lindas
pérolas de sua coroa, a Província do Rio Grande do Sul e, a pretexto de
reparações de injúrias, a guerra foi declarada à República do Uruguai. Logo
uma forte esquadra segue para as águas do Prata ;,
INÉDITOS
a verdadeira soberania popular, uniram-se as fôrças brasileiras com as de
um caudilho, o General Flores, rebelde, revolucionário, criminoso segundo as
leis do país; as baionetas do Brasil deram-lhe uma cadeira de Presidente em
que assentou-se manchado com o sangue de seus patrícios derramado pelo
estrangeiro.
"Já não bastavam às repúblicas vizinhas as dissensões intestinais em
que se dilaceravam, próprias do caráter espanhol. O Imperador entendeu
que também ali devia semear as discórdias, fomentar as paixões populares,
excitar os ódios dos partidos, perturbar a marcha do Covêrno desmoralizar
as autoridades com fúteis reclamações, enfim, intervir na sua política interna
como fazia no Império com o seu regímen da imoralidade e da corrupção.
Até a imprensa ali se assalariava para a defesa dos interesses do Império. Há
indolentes para o bem, que são ativos para o mal.
"Planos tenebrosos ocultava esta intervencão índevida os negócios internos das repúblicas americanas: visava o descrédito que se promovia das formas republicanas para que os povos cansados de dissensões intestinas não conhecendo a verdadeira causa, que lhes vinha de fora, o mudanças
no sentido de um sistema de estabilidade, e como tal se inculcava a monarquia.
"Eram poéticas as aspirações de D. Pedro, porém as poéticas, fofas
e fátuas, do que sensatas e realizáveis. Imaginava que em sua rida
seriam realizados seus sonhos: as repúblicas espanholas do antízo
regímen firmado com o sangue de patriotas, olhando Casa de Bragança,
donde lhes seria dado um salvador, um Messias, a sua rezeneração.
Imaginava ver sua ditosa descendência enxertando anarquia nas
frondosas árvores republicanas, absorvendo-lhes a seív as parasitas
de nossas florestas virgens. Que belo panorama. a Casa Bragantina. como
uma sementeira, espalhando príncipes que iam felicitar as nações americanas.
Que belo espetáculo para o tronco augusto, vendo sua re aerminar por
tôda a parte no solo rico das Américas!
"Soilhos e ilusões! Não se lembrava D, Pedro que tem . °a semelhante
havia já sido empreendida por um espírito superior República Mexicana;
não se lembrava que ainda trazia no peito a comenda de um imperador
fóssil, comenda com que o galardoara Maxímiliano em recompensa de haver
sido o primeiro a correr pressuroso ao reconhecimento do nascente Império
do México; não se lembrava que êsse Império desaparecera como um sonho
fugitivo que não deixava recordações; definhara e m:rera como a árvore
exótica da Europa que estranha o solo americano.
"Declarada a guerra ao Uruguai, viu-se D. Pedro também forçado a
aceitar a do Paraguai, que se apresentara em liça CO:aJ.O defensor de uma
república aliada e das formas republicanas ameaçadas pelo Império ;,
Seguem várias páginas que saltamos, para passarmos ao episódio da
Uruguaiana.
Continua o narrado revocando os fatos que antecederam à crise
política de 68: a tomada de Uruguaiana, o panfleto de Erasmo, o
restabelecimento de relações com a Inglaterra, a verdadeira situação
da guerra. Mostra a impaciência dos conservadores para voltarem ao
poder, secretamente amparados pelo Imperador que nomeia um de
seus próceres máximos, o Marquês de Caxias, comandante em chefe em 68
REVISTA DO LIVRO
do contingente brasileiro. D. Pedro vacila ainda quanto à mudança
do Gabinete, quando chega da Europa - provàvehnente a seu cnamado
- o Visconde de Itaboraí. O historiador transcreve a longa
conferência que tem o monarca com o politíco a respeito da situação,
e corno pode ser ela remediada em favor do "partido imperial".
"Considere agora V. M. a fôrça mágica da centralização no Brasil. Os
membros dos Tribunais superiores são nomeados pelo Govêrno, que os conserva
em sua dependência por meio de gorjetas, honras e espectativa de
acessos ou empregos mais rendosos. Os Juízes de Direito, também da
nomeação do Govêrno, se não pensarem como êle, têm o corretivo das remoções.
Os Juízes Municipais, que embora contra a Constituição foi-nos preciso
enxertar na magistratura, com o fim de torná-Ia mais dependente, são
magistrados temporários debaixo da ação imediata do Govêmo. Assim, no
Brasil, quem diz poder judiciário diz Govêrno.
"E a polícia, Senhor, êsse braço forte do Govêrno, que sabedoria na sua
organização! Como funciona essa máquina admirável! O Govêrno nomeia os
presidentes das províncias, seus baxás, que recebem diretamente seu pensamento.
Nomeia os chefes de polícia, que vão organizar a máquina policial
em todo o Império. Os presidentes de províncias nomeiam os delegados de
cada têrmo, e os subdelegados em seus respectivos distritos. Cada distrito
ainda é subdividido em quarteirões, cada um com seu inspetor nomeado pelo
delegado. Ainda fazem parte do engenhoso trama policial os oficiais de
justiça, escrivães, juizes de paz, juizes municipais, promotores públicos,
juízes de direito, etc., ete. E todos êsses empregados com atribuições de
prender ou ordenar prisões, processar, julgar, pronunciar, acusar, etc., etc.l
"Há, Senhor, nada mais artístico, mais bem organizado, mais harmônico?
Que pensamento admirável o do legislador de 1841!
"O Govêrno, Senhor, com o maravilhoso maquinismo da centralização,
é um Briareu com uma cabeça e milhares de braços, que se estendem e se
ramificam a todos os cantos do Império. -
"Ainda será preciso que eu faça ver a V. M. a fôrça do govêrno, que
tem em sua dependência milhares de funcionários públicos, empregados da
fazenda e de mil outras repartições criadas para acomodar afilhados e protegidos?
E a Guarda Nacional, e os agentes do recrutamento, e a fôrça policial,
e as fôrças de mar e terra. . . .. . .. Senhor, eu me confundo neste inextricável
labirinto que se chama administração brasileira! Ser-me-iam precisos
meses para apresentar aos olhos de V. M. o engenhoso entretecimento
de sua tela admirável.
"Dizia Arquimedes:
Dic ubi consistam coelum, terramque movebo.
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"A centralização, Senhor, é essa alavanca portentosa com que, na ordem
política, o Govêrno é capaz de abalar todo o edifício social.
"Eu posso asseverar a V. M. que nem na França, nem em algum outro
país da Europa regido pelo sistema do absolutismo, nem na China, nem
na Turquia, nem nas tribos africanas se encontrará um sistema de centralização
tão sàbíamente organiz.ado no sentido de convergir tôdas as Iôrças
administrativas em um centro comum como no Brasil. Ao Brasil cabe a
INÉDITOS
glória da solução prática dêsse problema dificílimo que em tôdas as épocas
e em tôdas as partes do mundo tem ocupado o espírito dos governantes. O
nome de V. M., que tão sàbiamente dirige os negócios do Segundo Reinado,
por mais êste título passará imorredouro à posteridade! ...
"Dispondo de tais elementos, Senhor, com um sistema de administração
tão perfeito, em que tôdas as peças funcionam harmônicas, que receios pode
ter V. M. de chamar ao poder o Partido Imperial? Demita-se hoje o Ministro liberal,
dissolva-se a Câmara, que amanhã teremos uma outra representação genuína,
imperial: bastará fazermos desandar a máquina administrativa. Aí está a
sua grande vantagem; inverter tôdas as posições sociais, voltar para cima o
reverso da sociedade, sem ofensa dos direitos da monarquia. Algum sangue
que a polícia vê-se na necessidade de derramar para determinar as eleições
no sentido do pensamento do Govêrno, algumas violências contra os recalcitrantes
alzuns esquecimentos da lei, da honra, do pudor e do decôro são
bacatelas são perturbações locais, que não afetam ao todo social.
"- E a opinião pública, Visconde, que nos é adversa? disse o Imperador.
O Ministério, apesar da grande cisão do Partido Liberal, conta numerosa
maioria na Càmara dos Deputados.
<: _\ opinião pública! respondeu o Visconde com um sorriso sardônico.
Há no Brasil opinião? No Brasil o povo não tem opinião própria, pensa
conforme o pensamento do Govêrno: hoje por uma maneira, amanhã 1'01'
outra, 5e2UDdo as conveniências do momento. No Brasil, Senhor, com a hábil
política que t • M. tem adotado, tôdas as camadas sociais estão podres de
corrnpção e imoralidade; não há sentimentos de um verdadeiro patriotismo;
o vício é virtude, a honra é desonra, a verdade é mentira, o pudor é impudêneía
e rice-versa. E assim deve ser, para o Govêrno poder fazer sentir
a a ação e conter a anarquia. É preciso a obediência cega, a obediência
passiva dos cicos cadáveres, na bela expressão do Sr. Ferreíra Viana. De
outra forma não se compreende um govêrno regular.
a O justas as suas considerações, Visconde, disse o Imperador; mas
ainda receio a grande maioria de que dispõe o Partido Liberal no país.
«- Quem teme a maioria, Senhor, com a centralização que temos? Em
tôda a parte o Covêrno terá seus agentes, e êstes terão ampla autorização para
lançarem mão de todos os meios justos ou ilegais, pacíficos ou violentos;
corrupção intimidações, prisões, roubos, e mesmo assassinato, de tudo poderão
lançar mão. O fim justifica os meios; sabe V. M. esta máxima fundamental
de tôda a boa admi:nistração. Tão poderia dar-se melhor ocasião, Senhor,
agora que a pretexto das necessidades da guerra, poderemos usar de violência
por meio de recrutamento e designações na Guarda _-acional."
"O Visconde cai e como esperando a resposta do Imperador. Passados
alguns momentos êste rompeu o silencio:
"- Que pretexto, "íseonde teremos para demitir o _Iinistério liberal?
"- Temos excelente, Senhor. que tomarei a liberdade de expor a V. M.
Na lista tríplice, para o reenchimento da TIlO'ade um enador acaba a Província
do Rio Grande do _-arte de apresentar três nomes' Ratisbona, Tôrres
Homem e Bezerra Cavalcante. Tem Y. _L de escolher um.
::- Q~al escolherei?
- Torres Homem.
"- Tôrres Homem! Êste nome sempre êste nome maldito!
entrará em um Senado onde tem direito de assentar-se o herdeiro
da Coroa! ...
Não, não
presuntivo
REVISTA DO LIVRO
- E por que não, Senhor? Não sabe V. M. que já um imperador
romano conferiu as honras de senador a um seu cavalo!
"- Veja, Visconde, veja o que Tôrres Homem escreveu a respeito de
minha divina dinastia sob o pseudônimo de Tímandi o: "Assim estreou D.
Pedra a sua ominosa carreira; e que outra causa não tinham os brasileiros que
esperar de um príncipe da Casa de Bmgança? Não era êle a vergôntea dessa
estirpe sinistra, a que Portugal deveu durante dois séculos o fatal declínio
de seu poder e importância como nação, o aniquilamento de sua indústria
e a supressão de suas franquezas? Examinai a história de qualquer outra
raça real, e entre a longa sucessão de reis ígnomntes, cruéis e depravados,
·um ou outro enoontrareis sôbre quem a posteridade possa repousar os olhos
com satisfação. Na dinastia bmgantina, porém, nenhum há que esteja nesse
caso". .
"Tenho nojo de continuar a leitura de semelhantes blasfêmias, prosseguiu
o Imperador. E dizeis que devo nomear êste homem para Senador do
Império! E por que me aconselhais a que o escolha de preferência aos
outros?
<: Porque o Ministério não aprovará a escôlha de V. M.
"- Não aprovar a minha escolha! ...
«: Senhor, apesar da corrupção geral, ainda há moralidades no Partido
Liberal. Ou va s'asiler l'honneur!. .. Êste partido desmoraliza-se se Tôrres
Homem fôr escolhido senador. Todos os governistas da Câmara dos Deputados
abandonarão o Ministério e passarão para a oposição. Os ministros o
compreendem: é de fácil intuição. V. M. fará uma crise. 1tles pedirão sua
demissão.
"- Eu os demitirei, e depois?
<: E depois V. M. chamará um homem de confiança do partido imperial
para organizar o novo ministério.
"- Chamarei, por exemplo, ao Visconde de Itaboraí.
"c: Senhor, será grande honra; mas a bem da pátria, a bem do Partido
Imperial, a bem de V. ~f., nosso idolatrado monarca que eu adoro como a um
Deus sôbre a terra, eu tomarei sôbre meus débeis ombros, tão espinhoso quão
pesado encargo! ...
- Tendes razão, Visconde, disse o Imperador com malícia: escolherei
para senador a Tôrres Homem. Já também em 1827, se me não falha a
memória, fôstes presidente de uma associação republicana, em que se apregoava
como lícito o regícídío, e hoje sois senador ...
"O Visconde ficou vermelho até a ponta das orelhas."
Interrompe o diálogo (que se prolongou variando sôbre os mais
diversos assuntos) a chegada de Zacarias. Trechos da conversa entre
Zacarias e o Imperador em que êste despede aquêle. D. Pedro,
auxiliado por Itaboraí, forma o novo gabinete. Reunião do Ministério
recém-criado
.
INÉDITOS
o que segue é extraído do Caricatury, jornal satírico que se publicava 9 (le maio
em New York no ano de 1869. de 1869
PALÁCIO DE SÁO CRISTÓVÁO. REUNIÁO DO CONSELHO
DE MINISTROS DO DIA 13 DE SETEMBRO DE
1868; PRESENTES O IMPERADOR DO BRASIL E OS
MINISTROS VISCONDE DE ITABORAí, BARÃO DE
MURITIBA, BARÃO DE COTEGIPE, ANTÁO, ALENCAR
E PARANHOS. O IMPERADOR OCUPA A CADEIRA DA
PRESID1tNCIA.
L
IMPERADOR- Senhores, preciso de mais dinheiro, de muito dinheiro para
continuar a guerra contra o sanguinário déspota do Paraguai. Reuni-vos para
deliberarmos sôbre o melhor meio de arranjarmos dinheiro. O último expediente
adotado foi ineficaz. Emitimos quarenta mil contos em papel-moeda ...
UMA voz - Inconstitucionalmente.
IMPERADOR- Quem fala-me aí em constituição? (Profundo silêncio).
Ninguém responde-me? Senhores, lembrai- os de que sou descendente de
D. João V: meu ilustre a 'oengo costumava fazer calar ministros por meio de
bastonadas ...
"Continuemos. Emitimos, como dizia, quarenta mil contos em papelmoeda;
mas êsse miserável papel aí vôa no comércio como fôlhas sêcas sem
valor. O câmbio baixa e continuará a baixar. De que serve-me um dinheiro
só com circulação forçada no Brasil e não aceito nos mercados estrangeiros?
com que não poderei prover o exército, comprar armamento, pólvora e balas
para metralhar os paraguaios? O que quero, senhores, é ouro; porque só com
ouro podemos continuar a guerra.
PAULINO DE SOUSA - Eu bem dizia a titio visconde que a emissão só
serviria para encher o comércio de papelásio. Titio mostrou um emperramento
...
VISCONDE DE lTABoRAÍ - Mais respeito, sobrinho, às minhas cãs e
ilustração.
PAULINO - Perdão, titio; não tive intenção de ofendê-Io. É que titio
não leria um discurso monumental que recitei na Câmara dos Deputados na
sessão de 5 de julho do ano passado.
VISCONDEDE lTABORAÍ- Li-o, sim senhor, e não vi nêle nada de notável.
PAULINO - Não viu nada de notável? Que injustiçal
VISCONDEDE hABORAÍ - Êsse teu discurso, sobrinho, foi mesmo uma vergonha:
um composto de banalidades desde a primeira palavra até a última.
Ninguém o entendeu, nem mesmo o Zacarias. Foi uma casaca feita de
retalhos que se descoseu ao vestir-se. Não estás habilitado para discutir as
transcendentes questões da ciência econômica.
PAULINO - Repilo, titio, repilo com tôda a energia dos meus pulmões.
IMPERADOR- À ordem, senhores, à ordem. Reuni-vos para tratarmos de
meios de arranjar dinheiro, e não para questões pessoais. Quero que cada
um de vós dê seu parecer por sua vez, e adotarei o que julgar mais razoável.
Não permito apartes e nem discussões odiosas, que não condizem com a
seriedade do ato. Tende a palavra em primeiro lugar, Sr. Cotegipe.
BARÃo DE COTEGIPE - Fui, senhor, sempre partidista da escravatura no
Brasil, e não me envergonho disso; porque no meu acrisolado patriotismo
entendo que foram os africanos que colonizaram o Império de Santa Cruz.
REVISTA DO LIVRO
Já no Senado apresentei-me como acérrimo esclavagista, e combati com vantagem
a tresloucada idéia do Ministério passado, que em seu programa se
propunha a abolir a escravatura. Sou í azendeiro e possuidor de muitos
escravos, não convém que êstes desapareçam.
"Para arranjarmos dinheiro, proponho que o Govêrno mande construir e
armar grande número de navios negreiros, com todos os cômodos e seguranças
necessárias, que sigam imediatamente para as cost~s da África, e importem-nos
o maior número de escravos que fôr possível. Estes serão vendidos aos fazendeiros
a quinhentos mil réís cada um. Posso responsabilizar-me pela
venda de quatro mil escravos, e eis já dois mil contos que entrarão de pronto
para os cofres públicos.
ANTÃO- Eu só comprarei quinhentos para um estabelecimento de apicultura
na Itaverava, Já são dois mil duzentos e cinqüenta contos.
BARÃO DE COTEGIPE_ Ao monopólio da importação de escravos exercido
pelo Govêrno, se poderá ajuntar uma especulação em ponto grande para a
compra e venda de carvão de pedra. É uma mercadoria que em tempos de
guelTa deixa grandes lucros. Eu sei por experiência própria. Tenho concluído.
IMPERADOR- O que dizeis a respeito, Sr. ltaboraí?
VISCO,,"DEDE lTABORAÍ- Não tive parte, Senhor, no negócio do carvão
de pedra. O Sr. Cotegipe sabe que isso teve lugar no ministério Ferraz,
IMPERADOR- Não é sôbre isso que vos pergunto; é sôbre o projeto da
importação de africanos.
VISCONDEDElTABORAÍ- Sou suspeito, Senhor, porque também sou esclavagista.
IMPERADOR- Sr. Cotegipe, vossa idéia é boa, mas não pode ser adotada
nas atuais circunstâncias, primeiramente porque os cruzeiros inglêses não
consentirão que importemos mais escravos para o Brasil; em segundo lugar
porque comprometi-me, a pedido de uma sociedade de sábios e literatos
de Paris, a abolir a escravatura no Brasil, e já tendo eu o nome conhecido
nas ciências, na poesia e nas armas, não posso desaver-me com literatos que
têm de escrever a história do meu reinado.
BARÃO DE COTEGIPE- Esta última razão convence-me.
IMPERADOR- Tendes a palavra, Sr. Muritiba.
BARÃO DE MURITIBA- Eu cá, Senhor, sou homem de ação e de poucas
palavras. Não gosto de panos quentes. A prova da Iôrça e energia de
minha vontade é o que já fiz em Pernambuco quando o govêrno encarregou-
me de acabar com os liberais: até pus cabeças a prêmio. Não conheço
meios têrmos, Precisamos de dinheiro: não é assim? Pois bem; mande-se
ordem a todos os delegados e subdelegados para que confisquem indistintamente
bens que cheguem para as atuais necessidades. Não lhe vejo outro
meio. Tenho dito. Multa in paucis.
ALENCAR- Multa bestialítas.
BARÃO DE MURITIBA (com ira) - O que dizeis, Sr. Alencar?
IMPER.ADOR - À ordem, senhores. .
BARÃO DE MURITIBA (avançando pam Alencar) - Eu atiro êste menino
pela janela abaixo. (Reina grande confusão na sala. O Imperador chama
à ordem, toca a campainha. Afinal o Paranhos, com palavras adocicadas;
conseguiu aplacar o [uror de Muritiba.)120
Caricatura alusiva ao gabine e conservador de Itaborai, sob a qual se lê:
LE MJt.:ISTÊRE nu 15 JUILLET
Sur ce [aible radeau, baUotté par l'oraçe,
Soms bussole et sans voile, ils coureni: à la m07·t.
Ils n'ont: pas ccperçu, moyen de sauvetaçe,
Le vaisseau de la paix qui lee menait au porto
Ba-ta-clan, 1 Aoüt 1868,
Revista do Livro, pág. 111a 169, ed. MEC, Ano II, RJ, 1957.