2 parte - A história do Brasil no ano 2000 - contada por Joaquim Felício dos Santos
Caricatura de José de Alencar, Ministro da Justiça, com a legenda:
Dire qu'un homme qui se servait si bien de lo. plume
et de la lY?'e, et qui cultivait de si belles [ieurs dans le
jardin des lettres a abandonné tout cela pour prendre une
ache de bucheron.
Ba-ta-c1an, 29 Aoüt 186v.
INÉDITOS
hIPERAooR - Senhores, se não fôsse a preclsao que tenho de dinheiro,
encerraria esta sessão. Sr. Muritiba, em pena do procedimento que tivestes,
n-o adoto o vosso parecer.
BARÃo DE MURITIBA - Vossa Majestade não ralha com O Sr. Alencar,
já sei, é por êle ser poeta, e Vossa Majestade gosta mais dos poetas: é um
enfant gaté.
IMPERADOR- SI'. Murítiba, não lhe dou satisfações. Tendes a palavra,
Sr. Antão.
ANTÃO - Os vastos e amenos campos da Itaverava, sempre vir entes e
floridos em tôdas as estações do ano, como se ali reinasse uma primavera
eternal, oferecem o mais magnífico assunto a uma alma de poeta para
cantar as belezas da natureza naturada e naturante. Ó Itaverava, ó terra
das magias! Quem me dera a pena de um Virgílio para descrever as
belezas, os teus campos! Que encantos, quando em uma manhã tépida de
setembro o sol doura os altos cumes das montanhas! Aqui um iria do colibri
adeja de flor em flor a libar o delicioso néctar de mimosa corola; ali os
passarinhos chilrando em doce harmonia entoam um canto divino ao
Criador. As rociadas folhagens pendem com graça, curvadas ao pêso do
orvalho matutino. O ar embalsamado por suaves e gratos perfumes trescalantes
é brandamente agitado pelas brisas sussurrantes. Mais além serpeiam
regatos cristalinos sôbre pura e alvíssima areia. As mimosas abelhas ...
(peço tôda a atenção de Vossa Majestade porque aqui é que está a beleza
da poesia). As mimosas abelhas, com seus pêsinhos delicados vão colhendo
de flor em flor o fragrante... (o orador interrompeu-se. Uma bolinha de
papel, dextramenie atirada pelo [aceito Alencar, veio-lhe certeira ao nariz.}
IMPERADOR- À ordem, Sr. Alencar, peço-vos que não continueis a molestar
o vosso colega. l
ALENCAR (ao Antão) - Perdão, meu colega, foi involuntàriamente.
Estava tão arrebatado ouvindo a vossa bucólica, que não sei o que fiz.
ANTÃO - Em homenagem à poesia, aceito a satisfação, meu colega.
Como eu dizia: as mimosas abelhas ...
IMPERADOR- Peço-vos, Sr. Antão, que deixeis as belezas da poesia para
quando estiverdes a sós comigo; êstes senhores não sabem apreciá-Ias. A
questão agora é de dinheiro; é um, pouco prosaica, mas tenhamos paciência .
.AN~Ão - Será pena, Senhor, porque tive o trabalho de compor o que
chamarei um ramalhete poético para poder apresentar a Vossa Majestade
a minha opinião em linguagem florida, que suavizasse as escabrosidades da
questão financeira.
IMPERADOR- Não duvido; não perdereis o vosso ramalhete poético, como
o chamais. Depois da sessão mo recitareis .em particular.
ANTÃO - Eu estava apenas no princípio e desejava que os meus colegas
também o ouvissem.
ALENCAR- Eu, por minha parte, dispenso.
OUTRASVOZES - Também nós.
IMPERADOR- Eu, porém, não o dispenso; 100'0 o ouvirei, O princípio,
com efeito, está magnífico e promete. Emiti em p;:osa o vosso parecer,
Sr. Antão.
A,.'I"TÃO(contrariado) - Cumprirei as ordens de Vossa Majestade e serei
breve.
121
REVISTA DO LIVRO
19 de
maio de
1869
ALENCAR- Et placebis.
ANTÃO- Não há, meus senhores, campos mais próprios para a criação
das abelhas que os amenos e deliciosos campos da ltaverava. As mimosas
abelhas com seus pêsinhos delicados vão colhendo de flor em ...
ALENCAR- Aí vem êle com ramalhete poético.
IMPERADOR-- Sr. Antão, esquecestes que êstes senhores vos dispensaram
a récita do ramalhete.
ANTÃO- :É verdade, Senhor: fui para aí escorregando involuntàriamente.
PARANHOS- Meu colega, fazei um esfôrço supremo para conter o
vosso pendor tão natural e louvável pela poesia e vos ouviremos com
prazer.
ANTÃO- O sacrifício está acima de minhas fôrças, mas terei coragem.
Mais uma palavra e tenho dito. Proponho, Senhor, um estabelecimento em
ponto grande, na Itaverava, que tenha por fim a criação de abelhas. Aproveitaremos
a cera para velas e o mel para marmelada e aguardente. Conheço
os campos da Itaverava e posso afiançar que em pouco tempo centuplicaremos
os capitais que ali empregarmos.
PAULmo - Que capitais pede o meu colega?
ANTÃO- Uma bagatela: dez: mil contos.
PAULINO- Nesse caso, meu colega, passemos adiante. Exatamente o
que nos falta são êsses dez mil contos.
ANTÃO- Emitamos mais dez mil contos em papel-moeda.
PAULmO - Isso agora é com titio visconde.
VISCON'DEDE lTABOILÚ- Sobrinho, já vens com as tuas?
L~ERADOR - Ã ordem, senhores. Sr. Antão, só poderei apreciar devidamente
a YüSSa proposta quando me recitardes o ramalhete poético, em que
a expondes em linguagem florida Por enquanto suspendo o meu juízo.
Tendes a palavra, Sr. Paranhos,
PARA..",""H-OS~eu angnsto amo e meus senhores. :É com a mais profunda
dor de minha alma que arraigada convicção leva-me, forçado, a separar-me
pesaroso dos dontos e luminosos pareceres dos meus honrados colegas que
procederam-me sôbre o meio mais adequado e conducente de arranjarmos
dinheiro que pede o nosso divino e soberano amo para a terminação da
guerra do Paraguaí. ,
"Sou diplomata, meus colegas e respeitáveis amigos. Dotou-me a natureza
de maneiras e modos afáveis, urbanos, corteses, de voz suave, branda,
agradável, melíflua, insinuante, persuasiva, de espírito fino, atilado, sagaz,
penetrante, manhoso, enfim, de tôdas as qualidades necessárias, indispensáveis
para um verdadeiro diplomata.
"A diplomacia, meus ilustres e honrados colegas, é a primeira das
ciências que deve ser esmeradamente cultivada no estado atual das relações
políticas das nações; deve-se mandar ensiná-Ia aos meninos nas escolas.
como se lhes ensina a doutrina cristã. O agricultor para saber amainar e
ratear as terras que produzam-lhe sazonados frutos, o artista, para produzir
artefatos de sublime perfeição, o comerciante, para prosperarem-lhe os
negócios e não ser' enganado em suas transações, até o religioso para bem
poder elevar o espírito em místicas contemplações à idéia de um criador,
em uma palavra, tôdas as classes da sociedade devem conhecer a maravilhosa
)
122
"
INÉDITOS
ciência da diplomacia. :É ela .
. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. (~)
PARANHOS(continuando) - A diplomacia é a ciência ...
IMPERADOR- Sou eu o que dará a definição. Flassan a define: ciência
das relações exteriores que tem por base os diplomas escritos e emanados
dos soberanos. O que dízeis, senhores, não sou um erudito? (Todos os
ministros se curvam)
ALENCAR(em voz baixa ao Paulino) - Lembras-te, colega, das Femmes
Savantes de Molíêre? O nosso Imperador não se parece com M. Trissotin?
PAULINO- Un sot savant est plus sot quur: sot igno-rant
Le saooir dans un fat devient impertineni.
IMPERADOR- o que estais aí a cochichar?
ALENCAR- Dizíamos que Vossa Majestade é o monarca mais ilustrado do
mundo.
IMPERADOR- Isso sim.
PARANHOS- Profundo, hábil, astuto, chicaneiro, sou um perfeito diplomata;
Talleyrand invejaria minhas habilitações.
ALENCAR- Laus in ore proprio oituperium.
PARANHOS- Sais impertinente, meu colega.
IMPERADOR- Direi como Troplong: Sr. Alencar, as interrupções são
proibidas.
PARAl'lHOS- De que sou hábil diplomata já tenho dado provas - por
exemplo: a minha última missão do Uruguai: com os morrões acesos forçaram
Montevidéu a uma capitulação.
ALENCAR- Bravo] é nova a diplomacia, a dos morrões acesos ...
PARANHOS- Pois não vencemos, meu colega? Não depusemos o partido
blanco e concedemos ao Flores a presidência da república?
ALENCAR- Falaís-rne em Flores! Um caudilho, um rebelde que devia
ser enforcado segundo as leis do país.
IMPERADOR- Alto lá, Sr. Alencar, tom ais muita liberdade. Flores foi
meu aliado, meu amigo. Dei-lhe a honra de apertar-me a mão e condecorei-o
quando fui desbaratar os paraguaios na Uruguaiana. (O Alencar ri-se) Sei
por que vós rides, Sr. Alencar. perpassam-vos pelo espírito as abomináveis
blasfêmias que vomitastes nas vossas sacrílegas Canas de Erasmo. Hei de
um dia tomar-vos conta pelo que escrevestes contra a espada de honra que
meu bom povo quis ofertar-me,
ALR.1'\CAR _ Poenitet me peccati.
IMPERADOR- Continuai, Sr. Paranhos,
PAR.-\..'iHOS - Tinha eu a honra de dizer aos meus ilustres e amáveis
colegas que o feliz êxito da minha missão diplomática no ruzuai. ..
ALENCAR- Que foi desaprovada pelo Governo ...
PARAl'lHOS- Vossa ~lajestade desaprovou o meu procedimento?
IMPERADOR- Desaprovei só aparentemente, r. Paranhos, como uma
satisfação à opinião pública. A pro\"a é que quando se oferecer oportunidade
hei de nomear-vos ministro no Rio da Prata. Sereis o orzanízador do Govêrno
Provisório que pretendo mandar estabelecer no Paraguai.
PARANHOS- A diplomacia, meu augusto amo e senhor ...
.i
( e ) Para não fatigar o leitor suprimimos uma longa e fastidiosa dissertação sôbre a
diplomacia. (Nota do Tradutor).
123
REVISTA DO LIVRO
l\.LENCAR- Meu colega, basta de diplomacias: vamos à questão.
IM:PERADOR- Sr. Paranhos, o vosso cOlega tem razão, vamos à questão do
dinheiro. Qual.a vossa opinião sôbre o melhor meio de arranjá-lo?
PARANHOS- Eu ia chegar a êsse ponto. Depois de profundas meditações
concluí que ainda podíamos contrair um vantajoso empréstimo estrangeiro.
(O Visconde de Itaboraí dá um pulo na cadeira i O que tendes, meu venerável
colega, que vos assustais?
VISCONDEDE lTABoRAÍ - Falais em empréstimo estrangeiro! Acabo de
chegar da Europa: a nossa reputação ali é a dum Império falido. Não
obteremos um shilling.
PARANHOS (sorrindo-se) Meu respeitá
um consumado diplomata, comprometoos
banqueiros, e com a lábia da diplomacia,
[oso, Tenho dito.
IMPERADOR- Sr. Paranhos, tomarei
depois que ouvir os vossos outros colezas,
BARÃODE MURITIBA- Oh! Oh!
ALENCAR- O que significam
BARÃo DE MURITIBA- Gostais
bém agora ouví-Io, Hei de dar os
ALENCAR- Estais no YOSSOdír -
ponder-vos.
IMPERADOR- À ordem, senhores,
ALENCAR- O meu sistema, 5.","",X::-,
Majestade, terá o nome de dr
, BARÃo DEMURITIB..!.- DrG~?~ Bravo] Esta é legítima alencarina.
A ciência ainda não conhece essa :::::::::--2. moeda. Isso é metal ou papel?
_~c.ill - Xão discuto ~ ~tes. Ê uma novidade que vou
introduzir na ciência, 5:-. :Mn;:::::"-:t? X20 guereis que o espírito humano progrida?
Sou um gêmo_ Xw ~ o que seja um gênio? Vem do grego,
gêneo, e do latim gi.~ p:(Il~,•.- o ri:;--. Os gênios criam como a divindade.
B.ill1o DE ~!L"~ - :Be:n" cn,jôljllai; o princípio promete.
ALID;~ - O !::!fll c:±~ c.o.:!!pOl'-se-á de duas partes: na primeira
apresentarei a história da 2--::C c..:r::>2!5ca na Antiguidade, na Média Idade e
nos Tempos Modernos: ::!:! ~ furei aplícacão e demonstrarei como por
meio dos dramas podere:nos cbte:- ÇU2llw dinheiro quisermos.
BARÃo DE :\fOlI1JlU - ~to nc:::!ede Deus! Estamos ameaçados de não
sair daqui hoje, e nem a""-,;p=>"';o; Se o nosso colega vai revolver as cinzas
da Antiguidade ...
ALENCAR- Não enten
BARÃO DE MURITIBA - Podíeís bem dispensar-nos a primeira parte do
vosso discurso.
IMPERADOR (baixo a Alenear) - Êles não entendem da matéria: seria
atirar pérolas a porcos. Recitai só a segunda parte do vosso discurso.
ALENCAR - Bem, meus senhores, suprimirei a primeira parte do meu
discurso.
VOZES - Bravo! Apoíadíssímol
ALENCAR- Sou, meus colegas, o maior dramaturgo do século XIX.
BARÃo DE MURITIBA - Dizei antes dramaníaco.
colega, sendo eu, como sou,
França ou à Inglaterra, iludir
contrair um empréstimo vantaparecer
na devida consideração
Tendes a palavra, Sr. Alencar.
PTC'zmaÇÕe5, SI'. Muritiba?
dos outros. Queremos tamcomo
eu de resr.
Alencar.
;>. YOu ter a honra de expor a Vossa
téría,
124
ti
12 de
dezembro
de 1869
ALENCAR- Não respondo. Sendo minhas composlçoes geralmente reconhecidas
pelos entendedores como chefes d' obra ...
BARÃoDE MURlTIBA- Galicismo.
ALENCAR- ... da ciência dramática, proponho que o Govêrno mande
coligi-Ias em um volume e tirar na Tipografia Nacional uma edição monstro
de guantos exemplares forem precisos, por exemplo, quatro milhões.
BARÃoDE MURITIBA- Para quê? Propondes mais despesas quando a
nossa questão é dinheiro?
ALENCAR- Não respondo. Todos êsses exemplares, vendidos a dez
mil-réis produzirão quarenta mil contos de réis.
PAULINO- Mas, meu colega, permita-me uma pequena reflexão: isso é
na hipótese de serem vendidos os exemplares.
ALENCAR- Todos os brasileiros serão obrigados a comprá-Ios.
BARÃODE MU!lITIBA- Como é isso? Até eu serei obrigado a comprar
vossos dramas? Quem há de forçar-me a lê-Ios?
ALENCAR- O govêrno estabelecerá a circulação forçada. Quem, por
exemplo, tiver de pagar uma dívida de cem mil-réis, pagará com dez exemplares
de meus dramas, e o credor será obrigado a recebê-Ios como moeda
corrente. Quando o Sr. Muritiba quiser comprar escravos que mandar vir da
África poderá pagá-Ias com essa mesma moeda, e o vendedor será obrigado
a aceitá-Ia.
BARÃODEM1JRITIBA- Agora sou eu que não respondo.
ALENCAR- Êsses exemplares, que constituem o que chamarei dramamoeda,
têm valor legal, que é o taxado pelo govêrno, e o valor intrínseco, o
mérito da obra, porque todos quererão ler as minhas produções.
VOZES- Menos eu.
ALENCAR- Ainda há uma outra vantagem, e é de infiltrar-se no espírito
do povo o amor da literatura e a moralidade que transuda de meus dramas.
BARÃoDE MURITIBA- Moralidade? Dramas que o Alcazo» rejeitaria I
ALENcAR- Meus senhores, creio ser êste o único meio de salvarmos as
finanças do país, e de se arranjar o dinheiro de que precisa o nosso excelso
monarca para a terminação da guerra do Paraguai. Tenho dito.
Segue-se à reurnao do novo gabinete conservador a transcrição
da "comédia inédita" de Alencar: A Reconciliação do Imperador com
o Marquês de Caxias. Fim da primeira fase da História do Brasil.
Devemos ao leitor uma explicação do nosso título - Páginas da Histária
do Brasil escrita no Ano de 2000.
Como, no ano da graça de 1869, publícais fragmentos de uma história
que ainda há de ser escrita um século e trinta e um anos depois?
Responderemos com o velho Horácio: lIihil tnirari. Com o progresso
das ciências modernas, ninguém mais dirá: isto é absurdo, Passaria por
louco, quem no tempo de Pitá goras, procurasse persuadir que dois homens
podiam conversar na distância de mil léguas; entretanto a América hoje
se comunica instantâneamente com a Europa; seria apedrejado quem
negasse a pátria, e o mundo hoje marcha para o cosmopolitismo.
125
( " ) No original está atrizes; cremos que é êrro tipográfico, por isto corrigimos.
REVISTA DO LIVRO
Não sabemos se o leitor crê na magia, no mesmerismo, no magnetismo,
no espiritismo, no hipnotismo, no electro-biologismo, nos médiuns, nas mesas
rodantes e falantes, nos spirits-rappings dos americanos; em Mirville, Gougenot,
E. Levi, V. Annequin, R. Houdin, H. Carion, Guldenstubbé, A. Kardec
Home e mil outros que escreveram a respeito do supematuralismo. Nós
cremos firmemente: somos espiritista. ,
Laboulaye fôra voltairiano, darwinista, evolucionista, transfôrmísta e não
sabemos o que mais; passou-se a espiritista depois que Jonathan Dream
inspirou-lhe o seu Paris na América.
Também éramos tudo isso, e mudamos de opinião depois que o célebre
médium russo DI. Tsherepanoff mostrou-nos um volume da Historia do Brasil
trazida do século XXI. A diferença é que Laboulaye é um escritor inspirado,
e nós, simples editor.
Vamos contar como o célebre médium conseguira trazer ao nosso século
essa história preciosa, e como facultou-nos publicar algumas páginas. O que
se vai ler é extraído do Neurypnologg, ar Bationai of the Neroous Sleep, do
Dr. Reichembach, tom. 14, capo 6-1, § 8, TI.o 46, pág. 1012.
Eram II horas, 14 minutos e 2S segundos da noite. Reinava profundo'
silêncio no Palácio de São Crístóvão, tudo dormia; só velava S. M. o Imperador.
Recostado junto a uma mesa, S. ~I. devorava, atento, as portentosas
aventuras de D. Quixote de Ia ~12TICba, edição de luxo em dois volumes
in-folio, com nítidas estampas, obra sublime, profunda, de uma filosofia
kaniiana, cuja leitura só é dada aos grandes monarcas.
Depois S. M. fechou o Iivro, levou a mão à fronte augusta e. entregou-se
à meditação, aos caprichos de STI2 imaginação ardente, poética. Só os grandes
gênios gozam da faculdade de desprenderem-se das coisas terrestres e pairarem
nas regiões etéreas do id.e:h...
Que turbilhão de pensamerrtns afluía ao espírito do magnânimo monarca!
Aquela vasta cabeça em. como um vulcão onde revolviam-se idéias, concepções,
projetos grandiosos. Perpassaram-lhe na mente as glórias do seu reinado,
as COr0a5 de poeí2 eam que as musas cingiram-lhe a fronte altiva, o
renome de literato, de p~ das artes " e das ciências, os louros do invicto
guerreiro colhidos nos campos da vitôría, os aplausos das gerações vindouras,
admirando extáticas o gênio do ilustrado príncipe que elevara o Brasil a
primeira potência da Amêríea, ::000 de civilização que irradiava suas luzes
para iluminar o universo,
"- Sim, serei D. Pedro o Grande, dizia mentalmente S. M., serei D.
Pedra o Grande!. .. ~feu nome passará à posteridade cingido de uma auréola
resplendente de glórias - glórias literárias, glórias poéticas, glórias científicas,
glórias marciais! Oh, fôsse dado a um príncipe ler no futuro a história de
seu reinado! ...
S. M. interrompeu-se. Através das sombras de seus pensamentos enxergou
a figura pálida de um homem. Xão era uma ilusão. Êste avançou, curvou-
se e beijou a mão imperial.
Quem és? Donde vieste? O que queres? perguntou o Imperador.
- O Dr. Tsherepanoff, humilíssimo servo de V. M., natural da Rússia:
venho da França, percorri hoje nove mil seiscentas e quarenta e cinco
léguas ...
126
INÉDITOS
Um louco!...
Jão, Senhor, não sou louco. Sou um médium; comunico-me diretamente
com os espíritos. Estive hoje em Pequim, onde curei o celestial
soberano de uma congestão proveniente de excesso de ópio; salvei em Constantinopla
o Sultão, ameaçado por uma conspiração dos eunucos; em São
Petersburgo, a pedido do Czar, evoquei dos infernos os manes polutos de
Catarina II com todo o cortejo de seus amantes assassinados; em Roma, em
uma sessão de espiritismo, fiz aparecer a figura macilenta da envenenadora
Lucrécia Bórgia; em Londres, consolei a Rainha Vitória mostrando-lhe o seu
querido Alberto, em Paris deixei Napoleão III conversando com César, que
exigia certas correções na história que aquêle monarca escrevera de sua
vida. Enquanto Napoleão toma apontamentos, aproveitei o ensejo para
acudir o chamado de V. M.
- Eu te chamei!
- Sou um médium, Senhor, mando aos espíritos, que obedecem-me.
- Não creio nos espíritos.
Ouvem-se ao longe vozes harmoniosas que cantam:
Du but lointain, de long voyage à faire
Il n' en est pas;
Nous franchissons l'un et 1'autre hémísphêre
En quatre pas;
Ciel sans limite, Océan sans falaise,
Desert uni,
Le seul espace ou nous soyons à raise
C' est I'ínfíni.
- O que significa isto? diz o Imperador aterrado.
- É o côro dos espíritos da França, respondeu o médium, que acabam
de transpor-me através do Atlântico e que se retiram cantando.
- És um médium?
- Tenho êsse privilégio, imperial Senhor. Em Paris ouvi os pensamentos
de V. M. e pressuroso ...
-- Ouviste os meus pensamentos!
- V. M. desejava assistir o futuro do Brasil, ler na posteridade a história
do seu reinado.
- Pensava nisso. E crês possível...
_ Aos espíritos nada é impossível. Lemos no futuro, como no presente
e no passado. Para nós não há arcanos inexplicáveis. Da campa evocamos
os mortos para decifrarem-nos os mistérios de além-túmulo.
- Serás capaz de ler-me as páginas douradas do meu reinado, as bênçãos
das gerações vindouras, agradecidas, erguendo-me altares ...
- Ainda não sei dizer a V. M. que juizo a posteridade fará do seu reinado;
só o conheceremos quando transpusermos os umbrais do futuro.
- É possível? ..
- Se fôr da vontade de V. M.
O Imperador permaneceu silencioso por alguns momentos, como hesitando.
Depois respondeu resoluto usando de suas proverbiais expressões:
- Quero e já.
O médium estendeu as mãos sôbre a fronte de S. M.: Quero, ordeno e
mando que durmas, disse.
O Imperador cerrou as pálpebras e dormiu.
127
REVISTA DO LIVRO
Já ia o sol alto no horizonte quando D. Pedro acordou. Ergueu-se na
cama. O leito, o quarto, os móveis apresentavam o mesmo luxo e riquezas,
mas não era o aposento imperial do Palácio de São Cristóvão. Levantou-se
e abriu uma janela: dava para um jardim, os pássaros chilravam nos arvoredos,
as flores embalsamavam os ares com seus perfumes. Abriu outra
janela: dava para a praça de uma cidade. Dois rios caudais, confluindo no
centro, dividiam a cidade em três partes; suas águas rolavam plácidas. sulcadas
em todos os sentidos por milhares de barcos a vapor. Soberbos edifícios,
templos majestosos, cais, docas, vastas alfândegas, espaçosas oficinas,
possantes máquinas, largas praças sombreadas de arvoredos, e sobretudo
o extraordinário movimento comercial indicavam uma cidade rica, florescente.
Mas não era o Rio de Janeiro. Atroavam os ares o sibilo das locomotivas,
o ruído das fábricas, as vozes dos mercadores, os gritos dos animais,
o barulho dos carros: era como a harmonia do trabalho, o fervet opus das
grandes cidades laboriosas. As ruas, as praças se apinhavam de transeuntes,
de trabalhadores, de mercadores que se empuxavam, se esbarravam, se acotovelavam.
Ao longe, nos trilhos de ferro, apareciam e desapareciam as
locomotivas, como os dragões da fábula vomitando espêsso fumo.
Não era o Rio de Janeiro. O Imperador, admirado, flutuava em um
mar de conjunturas: será Londres, Xew York, Paris, Lião, Manchester? ..
Tomou uma campainha e fêz sinal. Entrou um criado.
- Quem és? Onde estou? perguntou S. M.
- Já estás de pé, Cidadão, disse o criado.
homem que te trouxe aqui recomendou-me que o
acordasses.
E saiu.
Poucos instantes depois entrou o Dr. Tsherepanoff.
- V. M. dá licença? disse, curvando-se até o chão com uma profunda
~~. ~
- Ainda és tu, doutor, o médium, o espiritista de ontem?
- De ontem não, imperial Senhor. Sou o humilíssimo servo que, haverá
cento e trinta anos, teve a distinta honra de conversar com V. M. no Palácio
de São Cristóvão.
- O que me estás contando aí? Não estivestes ontem comigo?
- Assim parece, magnânimo Senhor. Mas não dignou-se V. M. comunicar-
me a sua vontade de assistir ao futuro do Brasil? É hoje exatamente
o Primeiro de Janeiro do ano de 2000, primeiro dia do século XXI.
- Explica-me: isto é um sonho, uma ilusão? Porventura alucinaste-me
com teus filtros? Onde estamos, que cidade é esta?
- É a pura realidade, exce1so monarca. Não sou prestidigitador, sou
um médium. Estamos na cidade de Guaicuí.
-- Na cidade de Guaicuí? Ainda não a vi nos mapas.
- Está situada na confluência de dois grandes rios, o Rio das Velhas
e o São Francisco. São aquêles que V. M. vê ali correrem. Em outros
tempos foi uma vila pobre e insignificante; hoje é a capital da Confederação.
- De que confederação?
- Da Confederação dos Estados Unidos do Brasil.
Da Confederação dos Estados Unidos do Brasil? Não sei se ouvi
Dormiste bastante. O
chamasse quando tu te
!
128
bem.
- Ouviu bem, imperial Senhor. Hoje o Brasil forma uma Confederação
...
- Hoje quando?
- Hoje. no ano de 2000, o Brasil forma uma Confederação de cento
e vinte e dois estados, regidos todos por constituições republicanas. Guaicuí,
que tem a distinta honra da presença de V. M., foi escolhida para capital
federal por se achar situada no centro. Os ingratos brasileiros tiveram a
ousadia de um dia sublevarem-se e dispensarem a dinastia de V. M., adotando
a forma de govêrno republicano ...
- Dispensaram a minha dinastia!
- Foram uns ingratos, ,Senhor. Rejeitaram o paternal govêrno do seu
adorado monarca!... A ingratidão é a partilha dos homens!
- E o que é feito da minha descendência?
- Os imperiais descendentes de V. M. retiraram-se para a Itália, e hoje
formam uma família honrada de honestos e laboriosos agricultores. o ano
de 1987 compraram um terreno nas fraldas do Vesúvio, onde cultivam com
. proveito a excelente vinha, de que fabricam o afamado Lacrimae Christi.
Vivem na abundância, e são geralmente estimados no país.
- Estás zombando, doutor? disse D. Pedro encolerizado.
- Peço humildemente perdão por ver-me forçado a dizer a verdade.
V. M. esqueceu-se de que estamos no século XXI assistindo o futuro do
Brasil.
- De forma que até eu já não existo!
- Os homens não são imortais ... V. M. já não existe ... Depois da
queda da monarquia no Brasil, V. M. retirou-se com a Família Imperial para
a Sicília, onde comprou uma linda e amena quinta nos arrabaldes de Siracusa.
Ali, em voluntário isolamento, entregou-se com tôda a liberdade ao cultivo
das musas: fundou um célebre estabelecimento, destinado à criação de perus,
que prosperou por largo tempo; finalmente terminou seus dias, já cheio de
anos, em 1915, rodeado de numerosa descendência. Encerra os restos mortais
de V. M. um modesto túmulo ...
- Um modesto túmulo!
- E sôbre a lápide lê-se gravada uma simples inscrição: - AQUI JAZ
D. PEDRO II, EX-IMPERADOR DO BRASIL. VIAJOR, PASSA ALÉM,
E RESPEITA O INFORTÚNIO. - Foi depois da morte de V. M. que os
seus descendentes se retiraram para a Itália como já tive a honra de contar.
- De forma que eu, que estou te falando, já morri; sou um fantasma.
Sabes que isso é um QTacejo de mau gôsto.
- -ão é gracejo imperial Senhor. Para prova poderemos dar um passeio
a Siracusa; iremos em um momento. . _1. verá seu túrnulo e apalpará
seus ossos com snas próprias mãos.
O Imperador tomou-se pensativo, Depois de alguns momentos disse
imnacientado:
.L _ Quem é, doutor, um criado insolente desta casa, que antes de chegares
tratou-me de tu? Sem dúvida ignorava que sou o Imperador do Brasil.
- Digne-se V. M. desculpar as descortesias e incivilidades deste século;
hoje no Brasil não se conhecem as genuflexões, os beija-mãos, os tratamentos,
as velhas usanças dos tempos da passada monarquia; não há mais senhorias.
excelências, altezas ou majestades: todos tratam-se por tu. A república nivelou
as classes; aboliu a aristocracia, os privilégios, as isenções, a nobreza,
INÉDITOS
129
19 de
dezembro
de 1869
REVISTA DO LIVRO
a fidalguia; barões, condes, viscondes, marqueses, duques, todos os títulos
e honras de outros tempos são antigualhas, palavras que não mais se conhecem.
Liberdade, igualdade e fraternidade, é a base da constituição moderna.
- Barbarizaram-se os brasileiros! interrompeu D. Pedro,
- O que distingue um cidadão, continuou o médium, o que o eleva
acima de seus iguais, são as qualidades pessoais, a virtude, a ilustração, o
patriotismo, a dedicação, a filantropia, os serviços prestados ao país ou à
humanidade. A opinião pública o vai procurar na sua obscuridade, o exalta
e faz conhecido, respeitado de seus concidadãos, mas não se lhe muda o
nome para barão, conde, ou marquês. O Govêrno não pode conferir honras
ou condecorações.
- Que selvagens! ...
- Entendem, Senhor, que a opinião pública não se engana, não se deixa
levar por interêsses reprovados, não abdicam o direito de apreciar o mérito;
não o delegam ao Govêrno, essencialmente dominado por paixões políticas.
Dizem que nos tempos da monarquia vendiam-se os títulos ...
- Excelente especulação; é o tributo da vaidade. Um bom govêrno deve
explorar todos os meios de fazer dinheiro.
- Não compreendem como se possa pagar com títulos os jantares, os
obséquios, as hospedagens, as poesias encomiásticas e outros serviços feitos
unicamente à pessoa do soberano.
- As honras são minhas: hei de dá-Ias somente aos meus servidores.
- Vê V. M. aquele ancião, que ali passa pela rua? Vê como a multidão
se afasta respeitosa para dar-lhe passagem? Como todos se descobrem, como
disputam a honra de cumprimentá-Ia, de apertar-lhe a mão?
- Algum nobre, algum titular.
- Já tive a honra de dizer a Y. M. que neste século não há mais nobres
e nem fidalgos.
- Já me não lembrava.
- Aquêle venerável ancião é o Dr. Silva. No Brasil todos o conhecem
e respeitam. O seu busto e o seu retrato ornam as salas de tôdas as casas.
Entretanto é conhecido geralmente pelo simples nome de Dr. Silva.
- É algum ricaço.
- Pelo contrário, é um homem pobre e despreza as riquezas. Em
outros tempos o cholera morbus ceifava anualmente milhares de vidas; o
Dr. Silva descobriu o meio de preservar do mal pela inoculação, e hoje
ninguém teme êsse terrível flagelo} que não faz mais uma vítima. Não é
digno de estima quem dotou a humanidade com tão útil descoberta?
- Eu dava-lhe ° título de barão, se mo requeresse.
- O Dr. Silva não aceitaria. Há baronatos comprados, outros conferidos
por atos de baixeza, que aviltam um caráter honesto. Não trocaria o
seu simples nome justamente respeitado, para confundir-se com os titulares
das monarquias.
- Seria um orgulho mal entendido.
Para resumirmos esta transcrição saltamos aqui algumas páginas do
original.
130
'-
INÉDITOS
Xeste momento ouviu-se na rua uma voz que gritava: Montgolfier,
ontgolfier!
Imediatamente fez-se movimento na cidade. Os transeuntes paravam;
as janelas, ruas e praças enchiam-se de espectadores, que dirigiam bin6culos
para um ponto do céu.
- O que é aquilo, doutor? perguntou D. Pedro.
- É o Montgolfier que entra, respondeu o espiritista. Se V. M. quer
também observar, aqui temos um bin6culo. Cheguemos a esta janela.
Dirija o bin6culo nesta posição. .. um pouco para aquêle ponto do céu ...
ali. .. mais a nordeste. .. um pouco mais.
- Não vejo nada, doutor; disse o Imperador, que embalde apontava o
"binóculo para o ponto indicado.
- Ali vem naquela nuvem brilhante. Os raios do sol ofuscam um pouco
a vista, e não deixam distinguir. Agora ... agora vê-se melhor. - Atravessa
.a nuvem pardacenta.
- S6 o que vejo é um ponto negro, que parece mover-se no espaço.
- É isso mesmo; é êle.
- É êle o que?
- É o Montgolfi:er. Agora ainda vê-se melhor... atravessou outra nuvem.
V. M. continue a observar.
- Parece-me uma andorinha. . . Não; é um corvo. .. É uma águia, um
condor dos Andes. .. um dinormís antediluviano. .. Vai-se aumentando progressivamente.
.. Dirige-se para o lado da cidade... Lá vem... Como
cresce! . .. e sempre a crescer!... Não, não é pássaro. O que é aquilo,
-doutor?
- Digne-se V. M. continuar a observar.
- Agora vejo melhor... É uma máquina... Distingo velas... uma
bandeirola. .. homens... É um monstro!... O que é aquilo, doutor? O
Imperador aterrado atirou o bin6culo no chão.
- V. M. não vê o telégrafo dando sinal do alto daquela tôrre? disse o
espírítísta apontando para um castelo que ficava fronteiro. Anuncia o paquete
aerostático Montgolfier, que chega de Liverpool com 12 horas de
viagem. Já em altura, invisível para n6s, o paquete fizera sinal para o
telégrafo.
- Paquete aerostático, que chega de Liverpool com 12 horas de viagem!
repetiu o Imperador com incredulidade. Não é isto um sonho?
- É a realidade, Senhor. Em meados do século XX a ciência resolveu
o grande problema da direção dos aer6statos, problema que tanto torturava
o espírito dos sábios da antiguidade; de forma que hoje possuem os homens
mais um prodigioso sistema de viação, e com a maior rapidez e comodidade
viaja-se por terra, por água, e pela atmosfera.
- Falta-lhes viajar pelo fogo.
- V. M. não fale por ironia, responde o médium com seriedade. Já
'há uma comissão científica encarregada de estudar a fôrça motriz elétrica
para aplicá-Ia à aviação. E em que se distinguem os fenômenos da eletricidade
e do fogo?
- Estás muito científico, doutor. Mas por hoje quero que me expliques
o que quer dizer o tal paquete Montgolfier.
- Haverá quatro dias, imperial Senhor, um enorme cetáceo, a dez
'milhas ao norte da Ilha da Madeira, rompeu o cabo elétrico que ligava
131
'9
REVISTA DO LIVRO
a Europa ao Brasil, e assim ficou interrompida a comunicação telegráfica
entre os dois continentes. Foi uma grande calamidade não se poder ter
notícias da Europa ao mesmo tempo em que os acontecimentos ali se passavam.
Em quanto se repara o cabo, que só por êstes três dias poderá
ficar em estado de funcionar livremente, o Govêrno Federal, atendendo às
justas reclamações do povo e do comércio, estabeleceu dois paquêtes diários
para Liverpool, que gastam 12 horas em seu trajeto aéreo do Cuaícuí àquela
cidade. Um dêles é o Montgolfier, e o outro chama-se Coroboboab.
Enquanto o espiritista dava a S. :\1. estas explicações, o enorme monstro
alado parava o maquinismo, descia pausadamente, ferrava as velas e pousava
em um vasto estaleiro construído para êsse fim na Praça do Comércio.
Passa depois o espíritista a explicar a S. M. de que modo o célebre
engenheiro africano Coroboboabab descobrira em Tomboctu no século XX
o meio de dar direção aos aeróstatos. (")
Entrou um criado, trazendo uma Iôlha: Eis "O Republicano", cidadãos,
que acaba de sair, disse êle; traz notícias do último paquete, notícias importantes.
"O Republicano" é a principal fôlha de Guaicuí. Publica-se tôdas as
horas do dia; o seu formato é pouco maior que o do "Times" da Inglaterra.
No estado da sociedade no século XXI, com mterêsses tão diversos e complicados,
uma fôlha diária já não podia satisfazer tôdas as necessidades do
comércio, da indústria e da cívilização.
Como "O Republicano», ainda há em Guaicuí 12 fôlhas que são horárias,
64 que saem de três em três horas, 72 de cinco em cinco horas, 142 que são
diárias, além de muitos outros de diversos períodos. Destas fôlhas 271 são
comerciais, 293 industriais, 297 literárias, 305 religiosas, 412 puramente cíentil
icas, 2 políticas e 201 sôbre diversos outros objetos. Com o regímen da
tolerância política e religiosa da República há muitas fôlhas publícadas em
línguas estrangeiras: as principais são: 31 no inglês, 27 no francês, 15 no
alemão, 7 no russo, 6 no chinês, 4 no japonês, 3 no persa, 3 no árabe, 184 no
bunda, congo, salonga, mandinga e várias outras línguas africanas, 23 nas
línguas mortas, latina, grega, hebraica e sânscrito.
O que mais admirava o Imperador era que sendo o "Diário do Guaicuí"
uma fôlha do govêrno, saísse em pequeno formato e uma só vez por dia,
quando 149 fôlhas se publicavam em menos tempo. Tsherepanoff explicou-lhe
êste absurdo político.
- Êstes republicanos são sofistas, disse êle. Sustentam que uma monarquia,
como a antiga do Brasil, para poder subsistir, precisa de um govêrno
forte, enérgico, centralizado: deve lançar mão de tudo, acudir a tudo, providenciar
sôbre tudo. O sistema monárquico é uma máquina complicadíssima,
que, para bem funcionar, cumpre que o Govêrno não descuide um
só momento; é preciso todos os dias, tôdas as horas, todos os instantes expedir
avisos, portarias, ordens, regulamentos; dar despachos, explicações; revogar,
alterar as leis; intervir em tudo, descer aos mais insignificantes detalhes;
( " ) Não podemos transcrever a parte teórica desta explicação porque o Dr.
Tsherepanoff negou-nos expressamente autorização para isso. Os médiuns são fatalistas
e não permitem que se antecipe a marcha das ciências, que devem progredir segundo
certas leis fatais, invariáveis, marca das pela Providência. Por isso pedimos desculpa ao
leitor por suprimirmos aqui algumas páginas do original. (Nota do editor).
132
133
INÉDITOS
interrogar a consciência pública; penetrar no íntimo das famílias; escrutar os
pensamentos individuais; fazer desandar oportunamente o pesado carro da
administração, quando algum tropêço possa impedir-lhe a marcha; usar
de todos os recursos; ter o país debaixo de uma rizorosa tutela, para que
nada se faça, nada respire, nada se mova sem o impulso e inspiração superior;
ter uma imprensa própria para fazer calar no espírito público que tudo
vai regularmente, que um bem-estar geral domina o país, que os governados
devem esquecer suas misérias, seus sofrimentos, e procurar dormir tranqüilos
debaixo da tutela do melhor dos governos; cumpre descer à linguagem
do insulto para injuriar, caluniar seus adversários, os que procuram abrir
os olhos do povo e mostrar-lhe o abismo a que leva-o urna administração
desregrada. Em uma palavra, se o Govêrno afrouxar, ou de cuidar um
momento, desmantela-se a complicadíssima máquina da monarquia. No sistema
republicano, pelo contrário, dizem êsses sofistas, tudo é símplícíssímo,
a existência do govêrno não depende da centralização; a máquina, uma vez
montada, como que vai por si só funcionando sem um impulso externo;
cada uma de suas partes trabalha por uma fôrça própria, apenas ligada ao
movimento geral, sem que de ponto algum se ofereça obstáculo ao seu li rre
desenvolvimento. A prova é que ...
- Basta, basta, doutor, interrompeu o Imperador. Cansa ouvir tanto
deslate. Vamos às notícias da Europa.
O espiritista lia o seguinte n'''O Republicano": "Notícias trazidas pelo
paquête Montgolfier ... "
- Como? interrompeu D. Pedro. Notícias chegadas apenas meia hora
e já publica das?
- A arte tipográfica, Senhor, respondeu Tsherepanoff, tem acompanhado
a civilização em seu contínuo progresso por meio de máquinas engenhosas,
ultimamente inventadas. Um pequeno número de tipógrafos, pode em um
quarto de hora compor uma fôlha do formato d'''O Republicano", que logo
se imprime e se distribui por tôda a cidade.
- Sabes, doutor, que se me irritam os nervos quando contas-me os
progressos do Brasil? Vamos adiante.
Tsherepanoff lendo:
"Notícias da Europa. As notícias da Europa alcançam até ontem pelas
9 horas da noite (feita a devida diferença de horas pela diversidade de
meridianos). a estrada de ferro submarina que comunica a França com
a Inglaterra, houve um pequeno incidente, tendo-se desencarrilhado um dos
vagões, que saltou fora do trilho; mas, felizmente, só há a lamentar-se uma
contusão leve do maquinista Foster.
- Uma estrada de ferro entre a França e a Inzlaterra! admirou o Imperador.
- Os governos ingles e francês em 1960 puseram em execução disse
o médium, o plano de Gamond. apresentado em 1855. Construiu-se um
grande túnel que liga os dois países por baixo do mar, entre Douvres e
Calais.
- Que prodígios! exclamou D. Pedro. Só a França e a Inglaterra duas
monarquias, podiam executar obra tão monumental!
- Não, imperial Senhor; V. M. se engana. A França é hoje uma república
unitária; a Inglaterra é uma confederação republicana, composta de
\...
2 de
janeiro de
1870
REVISTA DO LIVRO
três estados, Irlanda, Escócia e Inglaterra pràpriamente dita, com o nome de
Triarquia Britânica.
_ A França e a Inglaterra republicanas!
- E não são só êsses dois países, Senhor.
blicana; não há ali mais testas coroadas; todos
são laboriosos cidadãos.
- E a Rússia, e o meu primo Czar?
- A Rússia adotou o sistema da confederação hoje quase geralmente
seguido: compõe-se de 413 estados na Europa e na Ásia. A família czarina
explora uma rica mineração de platina, Ultimamente descoberta nos montes
Urais.
- Et tu quoque Brutus! bradou o Imperador enfurecido. Até a Rússia,
a Rússia que prometia garantir na Europa o regímen dinástico!... Os homens
desvairaram, enlouqueceram!... C-ontinua, doutor.
Tsherenanoff lendo: .l
"Chegou ontem de Spitzberg com feliz trajeto a expedição Kaepping,
que partira a explorar o pólo setentrional Confirma as anteriores explorações,
que verificaram a existência dos mares Iivres polares, compreendidos nos 86
graus de latitude.
- Os homens já chegaram aos pólosl
- Muitas vêzes, Senhor. Depois da
tatos, não há mais ponto ~aum do globo,
- Continua.
Tsherepanoff lendo:
"Damos parabéns à cmHzaç20 do século XXI, que teve um feliz princípio.
Chegaram-nos importantes telegramas do Oriente. O único país do mundo,
que pelo fanatismo e espírito de imobilidade que caracterizava seus habitantes
ainda se conservava aferrado ao regimen monárquico, dando assim o
triste espetáculo de uma rmensa mancha negra no mapa das nações cultas,
a China, dizemos nós, acaba de entrar na verdadeira senda do progresso,
proclamando a república. Tzírmíon, como se esperava, a revolução sustentada
pelo mandarím Con-fo-kíen, Pequim caiu em poder dos republicanos.
O Imperador foi depôsto e fugiu para Sandwsk. Organizou-se um govêrno
provisório de três membros, que são os mandarins ...
- Basta, doutor. in=errompeu o Imperador. One mundo, que homens!
tudo está perdido! Tudo se abisma neste século de barbaria! ...
S. M. e o médium saram a passar pela cidadee. Quando atravessavam
a Rua da Federação:
- Sabes, doutor, disse S. ~L que ao contrário dos outros homens as
grandes emoções cavam-me o estômago?
Entraram no Hotel da liberdade. Tomaram assento junto a uma mesa.
S. M. almoçou com um verdadeiro apetite bourbôníco-bragantino. Depois
do almôço pediu os jornais do dia.
- Aqui teZJs, ddéldão, disse um crüdo 11[71C'seZJtI1ZJdo-os(,OfRl1ÍS' }iteaidos,
mercantis, científicos, artísticos, históricos, religiosos, políticos ...
- Políticos, disse o Imperador. Dá-me um jornal político. E dirigindo-
se ao médium, escolhe, doutor, um jornal político oposicionista.
- Às tuas ordens, cidadão, disse o criado retirando-se.
S. M. sempre mordia os beiços de raiva e franzia o sobrolho quando o
tratavam por tu; mas calava-se.
Hoje tôda a Europa é repuos
parentes das famílias reais
descoberta da direção dos
que não esteja explorado.
aerós-
134
135
INÉDITOS
- Quero um jornal oposicionista, continuou S. M., porque com um
sistema de govêrno, que nem é govêrno, e nem é nada tão desregrado
tão absurdo, tão inepto como é o Brasil de hoje, é impossível qu~ não
apareça uma oposição forte de idéias, enérgica de linguagem, para desvendar
os olhos dêste povo ignorante, desiludí-lo de seus erros, e mostrar-lhe o verdadeiro
caminho do progresso, apregoando os princípios da monarquia.
- Aqui temos a "Voz do País", Senhor, jornal da oposição, do partido
vermelho radical, puritano, disse o médium.
- Pelo título prevejo que há de ser interessante, virulento, sem compaixão
para zurzir o govêrno: é o estilo dos meus jornalistas da oposição.
- Lá do século XIX.
- Será do século que quiseres. Lê-me o artigo editorial.
Tsherepanoff lendo:
"Não podemos deixar de censurar o Govêrno, não diremos pela .parcimônia,
mas pela avareza com que distribui os dinheiros da nação ... ~
- O começo já não me vai agradando, interrompeu o Imperador.
Censurar um govêrno por ato de economia. É a primeira vez que o vejo
em minha vida.
- A vida do homem é curta, Senhor. Se V. M. pudesse viver mais
um século ...
- Continua.
Tsherepanoff lendo:
"Sabe o país, sabe o mundo, que no orçamento para o exerClClOde 1999
a 2000 decretou o Congresso Brasileiro a verba de 50.000:000$000 para socorro
das nações estrangeiras ...
- Como? Cinqü.enta mil <contospara socorEo das nações estrangeiras?
Não entendo.
- O artigo explica, Senhor, disse o médium. Continuemos (lendo) "É
um dos primeiros preceitos da moral evangélica socorrer os nossos semelhantes,
dar aos necessitados as sobras de nossas economias. As sociedades
políticas, como entidades coletivas, têm idênticas obrigações de auxiliarem-se
umas às outras. Foram-se os tempos em que a palavra hostis (inimigo)
era sinônimo de estrangeiro; foram-se e não mais voltaram os calamitosos
tempos das monarquias, em que as nações se olhavam como adversários irreconciliáveis,
em que a política externa significava um jôgo de interêsses
opostos e contraditórios, a inimiz.ade, o ódio entre as nações; em que os
monarcas só tratavam de engrandecer seus estados à custa dos povos que
conquistavam, espolia am, saqueavam; e para sustentarem seus tronos vacilantes,
em plena paz entretinham numerosos exércitos permanentes ou arrastavam
seus súditos a contínuas guerras, injustas, ruinosas ao país. Já,
felizmente, não mais existe obre a terra testa alguma coroada, flagelo da
humanidade. Não mais voltarão os desgraçados tempos em que até na
virgem América um Pedroll, ao passo que, tímido e covarde, rebaixava o
Brasil ante as grandes potências, procurava escravizar as jovens repúblicas
vizinhas, onde, tresloucado, pretendia enxertar a dinastia bragantina.
"Hoje tôdas as nações formam uma espécie de família universal, e
cumpre, e é de rigoroso dever, que se auxiliem reciprocamente. Cessaram
as distinções arbitrárias, odiosas, de nacionalidades: todos somos irmãos,
cidadãos de uma mesma pátria, de uma só família - o mundo".
- Que sonolento artigo, doutor, disse o Imperador bocejando. Mas
continua sempre; quero ver o final.
- "O Japão é presentemente vítima de uma horrorosa fome, continuou
o médium lendo. Em conseqüência da escassa colheita de cerais no ano
passado, recentes telegramas anunciam o estado lastimoso do país. O que
faz o avarento Govêrno do Brasil? Manda uns miseráveis 6.500:000$000
para auxílio das desgraçadas famílias japonesas. Nossos orçamentos todos
os anos apresentam saldos consideráveis; ainda no ano passado foi de
64.348: 000$000. Uma nação tão rica deve se mostrar generosa distribuindo
suas sobras com as que precisam.
"Necessita o Covêrno de mais dinheiro? Aumente os insignificantes, os
miseráveis impostos que pagamos; peça ainda, que mais daremos. Sempre
fomos os primeiros a levar aos cofres públicos a quota dos impostos que a
cada um de nós cabe pagar, e jamais deu-se o exemplo, depois que nos
constituímos em república, de ser um só contribuinte executado pelos agentes
fiscais.
"Donde vem, pois, essa parcimônia do Govêrno quando sofrem privações
os nossos irmãos do Oriente?
"Concluímos denunciando à nação êste procedimento criminoso do Presidente
da República, e pedimos a sua responsabilidade."
- A sua responsabilidade, doutor? Xão compreendo essa palavra.
- É uma palavra moderna, Senhor, respondeu o médium, que não existia
ou ao menos não tinha sígnífieação no tempo da monarquia. A atual
Constituição Brasileira, que, com pequenas modificações, teve por modêlo
a Constituição federal dos norte-americanos, adotada em 1787, depois de
sua emancipação, estatui no artigo TI seção IV que o Presidente da República
e todos os empregados civis possam ser destituídos de suas funções
quando forem convencidos de traição, concussão ou de outros crimes.
- Que absurdo! que deslate! Um Chefe de Estado responsável por
seus atos! A minha pessoa é inviolável e sagrada, sou impecável, sou igual
à divindade, faço o que quero, dirijo o país segundo meus caprichos e não
tenho de dar contas a ninguém. E o que dizes dessa acusação feita ao
presidente?
- O presidente é responsável pelas faltas, erros ou abusos que cometer
durante sua administração; mas entendo balda de fundamento a censura
da "Voz do País" que tive a honra de ler a V. M. É verdade que no
orçamento federal foi decretada a verba de 50.000:000$000 para auxílio das
nações estrangeiras; mas dessa verba já haviam sido deduzidos 5.000:000$000
para auxiliar a Áustria, 7.000:()()(}.$OOOpara a Itália, 8.000:000$000 para a
França, 11.000:000$000 para a Prússia, 12.500.000:000$000 para a Rússia,
nações estas hoje empobrecidas com os desregramentos de seus velhos governos
monárquicos por quererem sustentar com numerosos exércitos permanentes
o que chamavam o equilíbrio europeu: só restavam 6.500:000$000
que o presidente aplicou em socorro ao Japão. Talvez o estado de miséria
dêste país exigisse maior soma mas o Congresso Brasileiro tem de se reunir
em breve e então decretará maior quantia, não podendo o presidente fazer
despesas que não estejam decretadas no orçamento.
- E por que não abre crédito extraordinário?
:E: contra a Constituição.
:('
REVISTA DO LIVRO
136
..
~
137
INÉDITOS
- Estás-me sempre a falar em Constituição. Eu, quando quero, mando
abrir créditos extraordinários.
- Em um govêrno absoluto ...
- Qual govêrno absoluto. O meu é bem constitucional e até representativo.
- E a constituição permite? ..
- Não permite nada. Apesar dela abro créditos extraordinários, contraio
empréstimos, emito papel, faço operações de crédito. Depois, por simples
formalidade, reunidas as Câmaras, mando-lhes que ratifiquem os meus atos;
é o que em linguagem técnica chama-se conceder um bill de indenidade.
- E se o corpo legislativo não ratificar?
- Ora doutor, já pareces um homem dêste século. ~ como se me
perguntasses: - e se os rios correrem para cima? São os meus ministros
que fazem o corpo legislativo, que designam os deputados. Já vês que êstes
são cegos instrumentos de sua vontade, fazem o que lhes é ordenado, pensam
pelo pensamento do Govêrno. No Brasil sou onipotente.
"Mas, ahl, uma só coisa ainda não pude conseguir. (S. M. com ar
pesaroso guardou silêncio por alguns momentos; depois prosseguiu:) Quando
há pouco lias que no orçamento do ano passado do Brasil ficara um saldo
de 64 mil contos fêz-me lembrar que durante todo o meu reinado ainda
nunca consegui nem mesmo equilibrar a receita com a despesa; sempre
deficit e mais deficit e sempre a acumularem-se de ano a ano, sem nunca
um saldo, por mais que se aumentem os impostos, e por mais que se diminuam
as despesas com as províncias. Os meus vassalos clamam contra o
pêso dos impostos; tudo está tributado; só lhes resta livre o ar que respiram.
E os malditos deficits sempre a acumularem-se. Já os eminentes financeiros
do Império supondo que o meu caiporismo provinha da palavra orçamento,
britanizaram-Ihe o nome batisando-o por budget, despesa budgetária, saldo
budgetário, deficit budgetário.,. Mas, debalde, nunca um saldo que eu
possa aplicar conforme os meus desejos.
- :E: na verdade de lastimar-se, Senhor, que um monarca tão ilustrado
como V. M....
- E como conseguiram os brasileiros, interrompeu S. M., saldar a
enorme dívida do meu reinado?
- Quando V. M. foi deposto do trono no ano de 18., (1)), o Brasil
carregava com uma enorme dívida proveniente em grande parte da desastrada
guerra do Paraguai. Com o estabelecimento da república, as províncias
se constituíram em estados federados independentes, começaram a prosperar.
A emigração estrangeira acudiu pressurosa para um país onde a atraíam
as vantagens resultantes do trabalho livre, de uma civilização nascente, da
tolerância, e, mais que tudo, da aurora da liberdade que começava a
radiar no horizonte brasileiro. As despesas diminuíram por não ter mais
o país de sustentar o pesado fardo da monarquia e de uma côrte inútil.
O desenvolvimento da indústria e do comércio, em poucos anos colocou o
Brasil em estado de poder saldar tôdas as suas dívidas e entrar no caminho
da civilização, rivalizando com as nações cultas da velha Europa. O século
XXI, Senhor, inaugurou-se ...
( " ) O médium não deu-nos autorização de publicar a data precisa.
9 de
janeiro de
1870
REVISTA DO LIVRO
-_ Basta, atalhou o Imperador impacientado: odeio êste teu século ..
Tenho as fauces ressequidas, dá-me um cálix de vinho. S. M. é servido;
depois continua: "Ohl delicioso! Que vinho é êste, doutor?"
- Eis o letreiro, disse o médium, apresentando a garrafa. Lacrqmae
Christi de Trastamara.
- Miserável! bradou o Imperador enfurecido. E atirando-o ao chão;
fêz o cálix em pedaços.
- Bravo! Êste já está em goods spirits, murmurou um inglês que almoçava
na mesa vizinha.
o
- Eram passados alguns dias depois dos acontecimentos que acabamos
de narrar. Já conhecia S. M. grande parte de Guaicuí; visitara os principais.
estabelecimentos públicos e particulares, oficinas, docas, alfândegas, cais,
escolas, universidades, templos, hospícios, casas de benificência, academias;
estações públicas, circos, praças, bôlsas do mercado, museus, institutos,
exposições, teatros sobretudo; só não visitou arsenais e fortalezas, distraçãofavorita
de seu tempo, porque não as havia em Guaicuí; ficara maravilhado
com tanta grandeza e luxo de uma cidade cuja existência outrora nem era
suspeitada. Já estava afeito aos hábitos, aos costumes livres de um povo
republicano, já não se irritava quando o tratavam por tu, por simples cidadão,
já se ia esquecendo dos beija-mãos, das salvas, dos vivas, dos cumprimentos,
das bajulações, do incenso, da adoração de seus bons súditos que deixara
em um outro século.
S. M., para não ser conhecido, ou antes, para ter um nome aceitável
no século XXI, tomara o de Dr. Muller, médico naturalista alemão que
viajava no Brasil em explorações científicas, comissionado pela Universidade
de Koenigsberg.
Coisa célebre! Em Guaicuí, nessa imensa Babel onde pululava uma
população variada, mesclada, composta de indivíduos de tôdas as nacionalidades,
emigrados de tôdas as partes do mundo, S. M. conversava correntemente
com todos; lia e falava como a sua própria tôdas as línguas, o russo,
o chinês, o japonês, o árabe, o persa, o congo, o bunda, o tchepango, o atgapasko,
o vindheeno, o yuma e até um dia entrando em um templo de
Brahma conversou com os brâmanes na língua phallou, língua sagrada sóconhecida
por aqueles sacerdotes. Seja dito entre parênteses que nesta
conversação S. M. mostrou-se tão corrente nos mistérios religiosos que por
pouco o tomavam pela encamação da trindade brâmica. Eram-lhes familiares
tôdas as invenções, descobertas e melhoramentos modernos; nenhum
dos ramos dos conhecimentos humanos no estado a que haviam chegado as
ciências lhe era desconhecido.
Mas, oh arcanos insondáveis da natureza! Oh contradições do espírito.
humano! Em um século de tanto progresso, quando tudo está melhorado,
costumes, idéias, princípios, civilização, quando o desenvolvimento das sociedades,
a prosperidade geral demonstram, evidenciam, o adiantamento das
ciências, quando tudo é luz, só S. M. conserva os velhos preconceitos, os
prejuízos inveterados, os erros, as idéias acanhadas, anacrônicas, das passadas
eras; obcecado, pessimista, acha tudo ruim, detestável, deficiente,
miserável. As ciências tinham retrogradado, dizia êle, suas descobertas e
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INÊDITOS
invenções são enganos, as artes não têm gôsto e a poesia inspiração; os
homens barbarizaram-se, voltaram aos tempos primitivos; sem a monarquia
não há verdadeiro progresso. Assim pensava, e se coubesse em seu poder,
desandaria o mundo para o século XIX.
Perguntamos a Tsherepanoff como explicar esta anomalia na ordem
moral, tão extraordinária aberração do espírito humano?
- O supernaturalismo, respondeu-nos o espiritista com ar sentencioso,
está acima da compreensão dos homens. Como diz Eliphas Levi, as categorias
imperiais são suscetíveis de passividade, afetadas pelo que há de
objetivo nos entes do mundo real, donde resultam afecções crônicas, indestrutíveis,
conseqüência de sua plasticidade.
Ficamos na mesma, nada entendemos, mas não pudemos obter outra
explicação.
"
""1I
Era pela manhã. S. ~L lia atento o Apncaiinhai enisikeu. cubateté
cupabo, uhim ozonakea Conaham Iapotq, isto é: Soco processo para a
cristalização da Mana, pelo Bacharel Japoty. [apotí é um célebre químico
índio da tribo dos macunés.
S. M. lia o seguinte: "A ozana, cuja existência ainda era conjectural
no século passado, hoje extrai-se da atmosfera com a maior facilidade, por
meio do aparelho inventado pelo célebre químico árabe Dr. Ismaíl; liquefaz-
se, solidifica-se em belos cristais octaédricos. Os cristais da ozana são
maus condutores da eletricidade ... "
Tão absorto ia S. M. nesta interessante leitura que não viu chegar um
personagem.
- Estás muito ocupado Dr. Muller? disse êste batendo-lhe no ombro.
Já dissemos que S. M. tomara o nome de DI'. MuIler.
- Oh, és tu, Cidadão Pugirá, respondeu S. M. despertando-se.
Êste personagem, a quem S. M. dava o nome de Pugirá era nada menos
que o Presidente da República.
João Servius Pugirá é um cabra amestiçado, de estatura alta, corpulento,
olhos negros, vivos, expressivos, lábios grossos, nariz carnudo, cabelos pretos,
bastante ondulados, já pintando de branco, dentes alvos, pontiagudos, fronte
larga, inteligente, sobrancelhas bastas. Conta já seus 63 anos de idade, mas
mostra-se ainda tão robusto e bem conservado que ninguém lhe dará 50.
Já pelo nome se poderá conhecer alguma coisa de sua origem. É natural
de Curitiba, capital do Estado do Paraná, nasceu no ano de 1937, filho de
uma índia da tribo dos guaranis, casada com um crioulo cujos antepassados
foram escravos da fazendo do .
- Basta, isso já é demais .
Parece-nos ter ouvido estas palavras do leitor, interrompendo-nos, nas
pontas dos pés, todo horripilado, todo indignação, prestes a inundar-nos com
uma corrente de impropérios, a rasgar-nos na face estas verídicas páginas.
"Como! Figurais um indivíduo de tão baixa origem presidente de uma
república de 142 milhões de habitantes!"
- Paz, amigo leitor; aqui não entra em nada a nossa pobre imaginação;
é a realidade. Nem tanta suscetibilidade... O indivíduo cuja origem tanto
vos revolta já é amigo íntimo e aperta com familiaridade a mão do nossa
REVISTA DO LIVRO
monarca, o cerimonioso D. Pedra, filho de Bragança, que nunca discrepou
um ápice nas etiquetas do ritual. Outros tempos, outros costumes. Os
povos são como os indivíduos; suas idéias, seus princípios, seus gostos, seu
caráter mudam-se com as épocas. O século XIX em que vivemos não é o
mesmo que o século XXI. Diremos com Voltaire - que coisas, que maravilhas
verão os nossos filhos! No século XXI, a côr, o nascimento, são qualidades
puramente acidentais, consideram as coisas debaixo de um ponto de
vista racional; só atendem-se as qualidades pessoais do indivíduo. Oh se
até lá alguma fada, médium ou espíritista nos prolongasse a vida! Paz, caro
leitor, deixai-nos prosseguir.
João Servius Pugirá foi marceneiro, como seu pai, até os vinte anos de
idade; só tivera a educação clássica, mas posteriormente estudou no grande
livro do mundo - observou e aprendeu. Sentindo em si mais elevada vocação,
abandonou a casa paterna e dedicou-se ao comércio. Viajou, e até o ano
de 1948 já tinha percorrido tôdas as partes do mundo. Em 1949 organizou
uma companhia para o rompimento do Istmo do Panamá, e já em 1953
comunicavam-se livremente as águas dos dois oceanos por meio de um largo
canal; os maiores navios por aí transitavam com segurança, poupando a longa
e perigosa volta que antes faziam pelo Cabo de Horn.
Em 1954 fundou a célebre Companhia de Paquêtes Aéreos Circunterráqueos,
a partir de Guaicuí, com escalas em Olinda, Madeira, Madrid, Roma,
Constantinopla, Teerã, Calcutá, Manilha, Sandwich e Lima.
Muitas vêzes o milionário passou a auxiliar os povos que ainda viviam
debaixo do jugo da monarquia e aspiravam uma mudança de govêrno no
sentido republicano. Tomou parte importante nas gloriosas revoluções da
Polônía, que reconstruiu sua nacionaldiade no ano de 1962, da Rússía, que
adotou o sistema federativo em 1963 com a supressão do Czarísmo, e da
Turquia que em 1965 destronizou seu último Sultão Mahommed VIII, o qual
suicidou-se com suas 645 concubinas e 352 filhos.
De 1990 a 1995 representou o Brasil como membro do Congresso da Paz
Universal, na cidade de Concórdia. (")
Em 1996 foi eleito Presidente da Confederação Brasileira com cinqüenta
e seis milhões de votos.
Tal é a biografia resumida de Jcão Servius Pugirá.
- Disseste-me, Dr. Muller, continuou Pugirá, que tinhas vontade de
visitar a cidade do Penedo; oferece-se agora uma excelente ocasião; vou ali
( '") A cidade de Concórdia está situada na Ilha de Marajó, na embocadura do
Amazonas.
Nos séculos passados supunha-se uma utopia a idéia sustentada por Henríque IV,
Saint-Píerre, J. J. Rousseau, Kant e outros, para o estabelecimento de um Congresso dos
estados europeus, que decidisse, em última alçada, as questões internacionais, Os que,
a priori, impugnavam êsse grande e filantrópico pensamento, não contavam com os progressos
da civilização e mudanças de circunstâncias; não atendiam que então o mundo,
e principalmente a Europa, era quase tôda governada por monarcas que se interessavam
em perturbar a paz universal com loucas e rumorosas guerras, empreendidas com vistas
ambiciosas e só a bem da conservação do regimen dinástico,
Essa pretendida utopia está hoje realizada. No ano de 1870 o Brasil propôs às mais
.ações do mundo a reunião de um congresso universal, e para êsse fim cedeu a Ilha
de Marajó, que ficou sendo um território neutro. Todos os Estados soberanos tem ali os
seus representantes. O Congresso decide tôdas as questões internacionais, sem necessídade
do supremo recurso da fôrça armada. Desde então começou a paz perpétua e
ainda não deu-se exemplo de se desrespeitar uma Só decisão do Congresso.
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INÉDITOS
examinar uma mina de carvão de pedra que por um telegrama se me comunica
ter-se descoberto a uma légua ao sul da cidade. Apesar de tuas idéias
excêntricas e anacrônicas terei grande prazer com a tua companhia, e na
qualidade de naturalista, poderás fazer observações míneralógícas.
- Quando parte? perguntou o Imperador.
- Neste momento.
- Aceito o teu convite, Cidadão Presidente.
E saíram.
Conversando com o Presidente Pugirá, S. ~f. segue em sua nova
viagem pelo São Francisco. Visita ao antigo sítio do Paulo Afonso,
hoje aplainado pela ciência moderna. Chegam afinal a Penedo. O
carnaval em Penedo: o Clube Carnavalesco das Antiguidades. Eleições:
depois de algumas dúvidas o Imperador apresenta-se como candidato
monarquista. Seu manifesto. "As eleições no Império" -
paralelo feito num livro de Tratado do Direito Efeitorol entre os
tempos modernos e o reinado de D. Pedro lI. Melancólíca conclusão
da campanha eleitoral do Imperador. Lma visita à Biblioteca. Recita-
se os versos de . ~L, que são confrontados com outros de Garção.
Uma conversa sôbre escravos; comentários sôbre a mesma. Leitura
de capítulos da História da Constituinte. Onde se fala de Federação.
Outra leitura: as Memórias Póstumas de Alencar. Festas da Proclamação
da República.
Vimos como S. M. para fugir aos festejos que se iam celebrar em Penedo
por ocasião do aniversário da república, se retirara em companhia de
Tsherepanoff.
Ocuparia dois grossos volumes a descrição da viagem imperial de Penedo
ao Rio de Janeiro se pudéssemos publicar tôdas as notas que foram-nos
ministradas pelo espíritista; mas não dispomos de maior espaço e as reservamos
para um trabalho que mais tarde daremos ao prelo.
Embarcaram-se no hélice Progresso, grande vapor de moderna invenção,
apropriado à navegação fluvial; subiram a célebre e antiga cachoeira de>.
Paulo Afonso, e ainda pela segunda vez maravilhou-se S. M. por ver como
tranqüilo subia o vapor uma corredeira de vinte léguas, parecendo sulcar
as plácidas águas de um lago. Como já dissemos em outro lugar, fôra
canalizada esta afamada cachoeira e estabelecida livre comunicação entre
o baixo e o alto São Francisco, problema que os antigos supunham insolúvel,
ou antes, cuja solução contrariava aos princípios da política da monarquia.
Chegados em Guaicuí S. M. despediu-se do Presidente e seguiram para
Sabará, pelo Rio das Velhas, em vapor especial.
Tôda a extensão do Rio das Velhas até Sabará compunha-se, em outro
tempo, de terrenos quase ínabítados ou de uma população rara, esparsa,
de gente pela maior parte clorótica, ictiófaga, pobre, miserável. Grandes
riquezas aí jaziam inexploradas por falta de vias de comunicação que dessem-
lhes uma saída para o comércio externo; hoje são terrenos aproveitados,
cultivados por uma numerosa população ativa, empreendedora. Em uma
linha de pouco mais de cem léguas contam-se quarenta e três cidades ricas,
populosas e florescentes.
10 de julho de 1870
Revista do Livro, pág. 111 a 169, Ed. MEC, RJ, 1957.