Aninha Garrincha

15-03-2011 23:32

Há alguns anos passados, ainda se viam aqui, em Diamantina, umas fotografias curiosas. Representavam um tipo feminino popularissimo naquela cidade.

            Quanto fotográfico por lá aparecia retratava-a, grátis, e fazia ótimo negócio. Os cometas do Rio, muito freqüentes então por aquelas regiões, compravam as fotografias e enviavam-nas aos seus amigos, como lembranças de viagem.

            Os retratos da Aninha Garricha, assim haviam-na apelidado e ela aceitara de boa vontade e alcunha, circulavam como os postais de hoje.

            Se não tivesse morrido antes da viagem do Brocos a Diamantina, com certeza não lhe escaparia ela á palheta, e seria um dos seus mais apreciados quadros.

            Representavam-na bem as fotografias: uma velhinha têsa, fisionomia jovial, boca pequena, que era um centro aonde convergiam numerosas rugas partidas de toda a face, menos da vizinhança dos olhinhos que marcavam os centros de outros sistemas de préguinhas em verticillos, e menos do nariz onde as ruguinhas se desenhavam desordenadamente.

            Mas, esse labirinto de plicas senis adejava um sorriso paradoxal, um ar de contentamento que a fotografia mal denotava, nem podendo traduzir a bela carnação alva rosada da  velhinha, o pardo azulado dos olhinhos inteligentes e plácidos, a boca sem um só dente, mas tão rubras as gengivas que, quando ela falava ou sorria, davam a idéia de uma goiaba partida de fresco.

            No retrato via-se a Garricha trajada como sempre andava: um lencinho, mal cobrindo os alvíssimos cabelos aparados no alto da testa, porque a cabeça era coberta por um enorme chapéu velho, alto, de canudo, dos que se chamam aqui cartolas e lá chapéus de bombão.

            Uma capona de baêta preta, traçada sobre o hombro esquerdo, envolvia todo o corpo, e cobrindo um grande embono saliente na altura da ilharga. Era uma cabaça tampada, cheia de ovos...

            Desde o albôr da aurora, saía a Garricha de usa casinha, na rua das Mercês, onde morava com uma filha parecendo mais velha do que ela; recomendava-se á Aninha da Eufrásia, sua vizinha, e corria os arrabaldes da cidade, comprando ovos a três por um cobre (40 réis), para vendê-los a vintém.

            Tinha frequezes certos.

            - Já larguei duas dúzias para a d. Maria, no Macau, e uma para d. Etelvina, na rua do Amparo; levo três dúzias para as quitandas de d. Maria Bahia, e vou largar mei dúzia pra o Joaquim Henriques... São todos do Arraial deBaixo; agora vou colher os do Arraial dos Forros, Venda Nova e Curral...

            E lá se ia a Garrinchinha largando ovos pela cidade.

            Porque não vaiavam os meninos esse tipi esquisito?

            Ao contrário, todos acorriam alegres quando a viam na rua. É que a velha era uma criatura boníssima para todos  e sempre afável para com eles. Quando a cuia se esvasiava de ovos, ela a supria com frutas e biscoitos, que lhe davan aqui  e acolá, e repartia com eles.

            Em todas as casas era recebida com prazer, porque nada pedia, só aceitando o que lhe davam. Se havia algum doente, prestava serviços indo  á botica, ao médico, ajudando a fazer o caldo ou o curativo. Se eram pobres, ia aplicando chás, beberagens, tisanas, lambedouros, suadores de fumo bravo e chá de pedestre, fomentações; ia curando as feridas com ingüentos de brasalicão, disgistivos, catemplasmas de joá bravo para amadurar os temores e até os intrazes da nunca; quando materiavam, punha charuto de galinha (ceroto de Galeno) ou de esturro (Saturno). Preparava a cevada ou água penada, a purga de sal cátrapo, de azeitinho ou de riobrabo cum cramelanos, dava a ajuda de herva de bicho, antes de encomodar o doutor  para receitar ou o surjão  para lancetar.

            Do pouco que lhe davam, vivia. A filha cosiam fazia rendas de bilro, para não estar á tôa, porque quase nada rendia aquilo.

            E, todavia, era a Aninha Garricha uma das criaturas mais felizes que tenho conhecido, Ela mesma se gabava disso, num otimismo magnífico. Vamos lembrar  algumas de suas demonstrações, conversando comigo.

            - Olha, eu não invejo a ninguém e ninguém me inveja... é uma grandeza ! Porque a coisa pior que há neste mundo é a inveja. Quanta tristeza e quanta maldade há pro mor dela! Foi fazendo invejar a Deus Nosso Senhor que o demônio enganou a Eva. Tenho muita pena dos ricos, porque não sabem divulgar se gostam deles ou do dinheiro deles. Casam mal as filhas, inducam mal os filhos, e muitas vezes estes e os genros acham que eles estão vivendo muito e dão esmolas de mais aos pobres e ás igrejas . A riqueza é desgraça , e o pior é que todos invejam o coitado do rico...

            sem o saber, repetia ela assim uma bela sentença de São Bernardo!

            - É, pois – acrescentava ela. Se eles não fazem caso de Deus, são uns desgraçados; se fazem conta com ele, tem medo das contas depois da morte. E vivem sem sossego. Como Ele ne deu pouco, vivo sossegada. Só me deu uma filha, e essa memso, porque é feia, não é cubiçada.

            O possível romance passional de que resultou aquela filha, nunca o soube eu, mas é interessante como explicava a Aninha a feialdade da filha.

            - Eu era muito moderna quando tive a Jacinta. Dormia, muito e sempre com ela na cama. Não acordava quando a menina mamava. De manhã, me sentia esfalfada, com os peitos vazios e a menina a esmagrecer! Eu ficava otusa,sem saber a causa. Ora, uma noite, acordei, sentindo que me chupavam um peito e a apojadura corria no outro . Passei a mão para mudar a menina para ele... ai que susto, meu Deus!  Agarrei uma cobra caninana, que estava mamando... e a pobrezinha chupando a ponta do rabo do bicho! Veja vosmecêque irmã de leite teve a Jacinta, e porque ficou  mirradinha para sempre. Mas, vamos vivendo, ei e ela, como Deus é servido. Ela não sai de casa, mas eu vou por toda parte e todos me tratam bem. Não digo o que vejo de mal, nem carrego intrigas daqui prá ali. Não espero que me façam cara feia para ir saindo. Como me tratam sem “cermônia”, estou livre de me mostrarem os dentes com alegria, para depois falarem mal de mim por detrás, me chamando massante, torradeira, empalhadeira do tempo dos outros. Quem me faz feata, gosta de mim mesmo. Quando adoeço, mandam logo pedir ao doutor que me vá tratar por caridade, porque, se eu morrer  aí vem a “suscrição” para o enterro e a missa. Também saro depressa, porque o doutor não ganha com as visitas. Os ricos saram e morrem mais devagar... E, coitados, quantas vezes sem sacramento, porque não os querem assustar ! Nós, os pobres, não temos medo de morrer, e, por isso, ou saramos mais depressa, ou morrermos com o Nosso Senhor, porque ninguém “ostia” o vigário de noos confessar. É assim, a riqueza é boa de um lado e ruim do outro; o que é bom pra o bofe não é bom para o figo. Agora, eu bem sei que, se Deus não me deu “atabulações”, é porque Nossa Senhora das Mercês não deixa...

            - Como assim? – perguntei.

            - Ah! “Vosmecê” não sabe? Nosso Senhor Jesus-Cristo gosta de nos dar trabalhos e sofrimentos. Tem razão; judiaram muito com ele... E foi por “môr”  de nossos pecados. Então, Ele quer que nós também paguemos alguma coisa para nossa salvação... Ah! se não fosse Nossa Senhora, nós não aguentavamos! Ela é que tem mão n’Ele, pedindo por nós. E, quando a gente é devota dela, então, nem espera que se peça: vai logo pedindo e alcançando.

            Que belos conceitos nesse chilrar da Garrincha! Só mais tarde, neles vi o conselho de São Paulo, sobre a conveniência de completarmos em nosso corpo a paixão do Redentor. E, aí temos o que disse Dante da devoção, “ á Virgem Mãe e Filha de seu Filho”:

            “Lá tua benignitá pur non soccorre

            A’Qui domanda , ma molte fiate

            Liberamente al dimandar precorre.”

                                                         ( Parad. XXXIII).

            “Atendes tão benigna a quem te implora!

            E, quantas vezes antes de pedirmos

            Intercedeste já por nós, Senhora!”

SILVÉRIO, Padre, Quarenta Contos, Anninha Garricha, 1918.