Benção do Quadro
- Licença para dois?
- Pois não!
E o padre, ao levantar a cabeça, viu um casal avançar entre as curvaturas e sorrisos.
- Queiram sentar-se!
Ele! O tipo do neó-rico! Crânio semi-despido, fronte baixa, rosto bonachão, pescoço, acochado pelo colarinho, gravata berrante com vistoso alfinete, chatelaine grossa sobre a barriga expansionista, um anel de brilhantes em cada dedo.
Ela! Cabelos á la garçone, pintadíssima e caiada, lábios com azarcão, braços presuntos, vestido acima da rótula e, sobre o vasto peito, um colar de pérolas que pareciam petecas.
-Snr. Vigário, somos católicos, apostolicos, romanos .
- Muito prazer em...
- E somos admiradores de V. Revma.
-Tanta honra...
- Os paroquianos louvam todos a gentileza do sr. Vigário.
- !?!
- Não perdermos um só dos seus sermões, tão eloquentes e instrutivos!
- Mas ainda não disseram o que de mim desejam.
- V. Revema. é um sacerdote liberal, moderno, popular. Si todos os padres fossem assim, a religião não andaria como anda.
- Bem, mas vamos ao que serve.
-Sr. Vigário, - começou o marido -...
A senhora deu, com o tronco, meia volta sobre a cadeira e, face a face com o consorte, intimidou: - Cale a boca, Rômulo. Em coisas de Igreja, as mulheres falam melhor.
E descrevend, em sentido contrário, outra meia volta, a suplicante encarou o vigário.
- Mandamos vir da França um quadro do Sagrado Coração.
- Que me saiu num 1:500$000! – acrescentou o consorte.
- Adquiri um vidro e uma moldura, sem calcular despesas, - continuou a matrona.
- lá se foram 665$000! – gemeu o marido.
- Finalmente, aceitamos, em redor do quadro, lâmpadas elétricas muito chics.
- Nota a pagar: 200$000.
- O conjunto ficou uma belezinha. Não é, seu Rômulo?
- É, pois não! Também pelo preço....
Divertido com o diálogo do casal, o vigário aproveitou uma pequena folga, para introduzir uma pergunta.
- Enfim, que desejam de mim?
- Que vá benzer o quadro, em nossa casa.
- Não poderiam trazê-lo aqui?
- Impossível, por causa dos convites, - disse a senhora.
- Aliás, - acrescentou Rômulo, - não fazemos questão de pagar. Por quanto batiza um quadro em casa?
- Batizar,não, benzer!
- Por quanto benze um quadro em casa? – respetiu Rômulo.
- Não se trata de dinheiro.
- Mandaremos nosso automóvel, - prometeu a senhora.
- É um Dodge Brothers, que me custou 22:000$000, mas não me arrependo, confidenciou Rômulo.
- Venha, pois, o Dodge Brothers. Quanto á remuneração, ficara para outra vez.
- Fazemos gosto de recompensar...
- É de coração, - atalhou o marido.
- Não, senhor; obrigado! A que hora mandam o automóvel?
- Ás oito.
- Da manhã? É cedo.
- Da noite!
- É tarde.
- É por causa do baile, logo depois da benção.
- Baile? Depois da benção? Não pode ser!
- E porque?
- É uma profanação!
- Uma quê?
- Como quem diria, um desaforoao Santo.
- Os convidados são gente de respeito.
- Não duvido, porém os Santos não gostam de bailes.
- Isso é lá no céu. Se estivessem na terra!
- Em vida, fugiram de danças, como de Satanás. Vejam S. João Batista, vítima da bailarina, que lhe pediu a cabeça num prato.
- Afinal, V. Revma. Vai ou não vai?
- Não vou, pois não me convém encorajar batuques.
- E os doces e frios que paguei ? – perguntou Rômulo.
- Podem ser comidos sem danças.
- E o “jazzband” que contratei?
- Nada tenho com isso!
- V. Revma. não é padre moderno.
- Diziam o contrário, há pouco.
- Nem liberal!
- Vão tirando!
- Nem é popular.
- E meus sermões ?
- Nunca os ouvimos, pois consta que são paulificantes.
- Então, não são mais meus admiradores?
- Nunca fomos, a não ser por mentira convencional.
- Assim, o vinho passa a vinagre!
- Aliás, recepcionaremos sem V. Revma. São os padres como o senhor, que botam a religião a perder.
- Sejam felizes! Quanto á benção do quadro, poderei realizá-la algum dia, pela manhã.
- Dispensamos.
-!?!
- Ficará para quando tivermos um vigário moderno, liberal, popular.
- E bom pregador, - repetiu a dona. – Passe muito bem, e até logo!
- E a matrona riscou uma trajetória imponentem através da sacristia, donde, seguida pelo consorte, desapareceu num passo mastodôntico.
P.D.Voz de Diamantina, A Bençam do quadro, 1934.