Chica da Silva, João Fernandes e sua família

06-04-2017 08:19
4- CHICA DA SILVA E JOÃO FERNANDES DE OLIVEIRA 
 Longe de querer recuperar a imagem física de Chica, pesquisas em documentos sobre sua vida, revelaram que se tratava de uma senhora mulata que procurava, e de certa forma conseguiu, inserir-se na sociedade branca das Minas Gerais da época. Essa inserção se deu a partir da prática do concubinato com o contratador dos diamantes, o Desembargador João Fernandes de Oliveira, com o qual nunca se casou de fato por estar impedida pelos costumes e leis da época de regularizar sua situação.  
 Ao contrário do que se costuma pensar, como outras mulheres forras de seu tempo, Chica não foi rainha ou bruxa e sua atuação junto à elite branca do arraial do Tejuco foi 
                                                          
 79 Id. Op. cit., nota 60, n. 17.199 e 17.488. 80 LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 31, Maço 31, doc. 7  81 LISBOA. Arquivo Histórico Ultramarino, op. cit., nota 41, Habilitação à Ordem de Cristo; Alberto Luís Pereira. Letra A, maço 31, doc. 5.. 82 RIO DE JANEIRO. Biblioteca Nacional, op. cit., nota 57, v. 8, p. 163-172. 
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sempre conservadora, procurando usufruir das vantagens que sua nova inserção naquela sociedade podia lhe oferecer. Ao longo de sua vida, procurou diminuir o estigma que a cor e a escravidão lhe impuseram, promovendo a ascensão social de sua prole. Para isso, ela dispôs da influência e da riqueza de seu companheiro. 
4.1. Origem 
 A historiografia afirma que Chica era filha de uma negra, escrava, de nome Maria da Costa e de branco chamado Antônio Caetano de Sá, não se conhecendo a data certa de seu nascimento. Simão Pires Sardinha, seu filho mais velho, quando se habilitou à Ordem de Cristo afirmou ter sido essa sua ascendência materna. O Capitão Antônio Caetano teria nascido e sido batizado na Candelária, no Rio de Janeiro, e a avó na Freguesia da Conceição da Praia, na cidade da Bahia.83 O processo foi evidentemente manipulado para esconder a ascendência negra do habilitado, obstáculo quase intransponível para a concessão do hábito, que ele efetivamente alcançou. Para diminuir o estigma da cor e da escravidão, Simão conseguiu que as testemunhas omitissem a condição escrava de sua mãe e avó e afirmaram que Chica era  
“filha legítima do Capitão dos Auxiliares Antônio Caetano de Sá e de Maria da Costa, que possuíam muitos cabedais e uma copiosa escravatura, sendo esta de cor parda e, por conseqüência, sua filha, mãe do habilitado. Já neste, fica em 3º ou 4º grau, porém vivendo todos com uma excelente reputação e à luz da nobreza, com muita riqueza e fazendo a primeira figura naquele continente, visitados das primeiras pessoas.”84  
 
 Em 1726, Antônio Caetano e Sá era Capitão das Ordenanças de Bocaina, Três Cruzes e Itatiaia, distritos do termo de Vila Rica. Homem branco, pouco se sabe sobre ele, otítulo de Capitão era sinal de distinção. Chica honrou seu pai, dando-lhe seu nome ao terceiro de seus filhos homens. 
 Já, sobre sua mãe parece ser possível reunir mais informações. Em 1737, nascia em Conceição do Mato Dentro, Comarca do Serro do Frio, Rita, filha de Maria da Costa, crioula, 
                                                          
 83 LISBOA. ARQUIVOS NACIONAIS DA TORRE DO TOMBO, op. cit., nota 82, Letra S, maço 5, doc. 5. 84 Ibid., f. 11. 
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já então forra.85 Parece tratar-se efetivamente da mãe de Chica, pois Rita foi também o primeiro nome escolhido para uma de suas filhas e segundo nome de outra Chica, portanto, teria nascido antes de 1737, pois sua condição de escrava atestava que sua mãe ainda era escrava no momento de seu nascimento. Em 1748, também em Conceição do Mato Dentro, uma Maria da Costa foi indiciada como ré em uma das Visitas Episcopais que os Bispos faziam ao "rebanho" mineiro. Não é possível ter certeza de tratar-se da mesma pessoa, mas tudo indica que sim, pois as autoridades escandalizavam-se com o jeito libertino de vida destas mulheres forras. Apesar de amasiada com um ferreiro, ela foi acusada de deitar-se “com todo homem que se lhe oferece.”86 Várias testemunhas declararam, que era público e notório no arraial, que seu ciumento companheiro dava-lhe várias surras. Numa delas, “se descompuseram de palavras e pancadas por ciúmes e que do modo de viver da dita têm resultado várias ruínas e mortes.”87  
 Ao que parece, Maria da Costa envolvera-se em muitas contendas no arraial e era exemplo das tensões causadas pelo aumento do número de mulheres livres de baixa condição social. Se era verdade que ela se dava com vários homens, devia provocar a ira de várias mulheres. Com uma delas acabou proferindo ameaças de agressão física e, de modo impróprio, afirmou que “era mulher capaz de dar uma bofetada em Nossa Senhora do Pilar.”88 Maria da Costa, como outros, pervertia o sentido do culto aos santos e conferia-lhe peculiaridades próprias da religiosidade popular, que inseria a religião nas contendas e tensões que permeavam o cotidiano. Acusada de ser meretriz, a ré revidou que “se ela era mulher pecadora, que por ela tinha sido Santa Maria Madalena”, e, com estas palavras, escandalizava a sociedade e os representantes do clero.89 A mesma Maria da Costa apareceu como madrinha de uma filha de uma escrava Silvéria em 1753, no Tejuco, também como forra.90 
                                                          
 85DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico. Documentos sem identificação. Caixa 230. 86MARIANA. Arquidiocese . Arquivo Eclesiástico. Devassas; fevereiro de 1748, f.33. Apud FIGUEIREDO, Luciano R. O avesso da memória. p.109. 87Ibid. 88Ibid., f. 31v-32. Apud SOUZA, Laura de M. Os desclassificados do ouro. p. 184. 89Ibid. 90DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 27,. Caixa 297,. f. 6v.  
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 Segundo o mesmo Sardinha, Chica teria sido batizada no arraial do Milho Verde, dentro da Demarcação Diamantina. Um de seus netos afirmou, em seu processo de genere, que ela nascera na Vila do Príncipe.91 Vários documentos atestam que Chica era mesmo mulata, pois era tratada nos mesmos como parda ou mulata,92 sendo efetivamente filha de uma negra com homem branco, o que era corriqueiro numa sociedade onde as mulheres, principalmente brancas, eram escassas. Certamente nasceu escrava, pois essa condição e depois a de forra foi sempre mencionada nos documentos do Tejuco.  
 Em 1726, Antônio Caetano e Sá era Capitão das Ordenanças de Bocaina, Três Cruzes e Itatiaia, distritos do termo de Vila Rica.93 Homem branco, pouco se sabe sobre ele, o título de Capitão era sinal de distinção. Chica honrou seu pai, dando-lhe seu nome ao terceiro de seus filhos homens. 
4.2.  A Escrava Chica, Mulata 
   Na década de 50, foi possível identificar, pela primeira vez, a presença de Chica no arraial do Tejuco, através dos documentos. Era, então, escrava do médico Manoel Pires Sardinha, proprietário de lavras e importante médico no Tejuco, a essa época com quase 60 anos.94 No ano de 1750, Manoel Pires Sardinha era juiz na Câmara da Vila do Príncipe, importante cargo, reservado à elite dos homens bons da região.95 
 Não há registros anteriores que determinem se Chica pertencia ao médico desde seu nascimento, nem qualquer documento que a relacione ao plantel de José da Silva de Oliveira, pai do padre Rolim. Com certeza, Sardinha foi seu penúltimo proprietário, vendendo-a, no ano de 1753, a João Fernandes de Oliveira.96 Como era usual, principalmente a partir do final do século XVIII, os negros assumirem o sobrenome de seu senhor, provavelmente a historiografia relacionou o sobrenome Silva Oliveira, que Chica adotou quando liberta, como 
                                                          
 91LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Leitura de Bacharéis. Letra L, maço A, doc.24. 92DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivo Eclesiástico, op. cit., nota 27, Caixa 297, f. 2. Id., Livro de Termos do Serro do Frio; 1750-1753 Caixa 557, f. 102v. 93LISBOA. Arquivo Histórico Ultramarino, op. cit., nota 41, Caixa 9, doc. 53. 94Ibid., Caixa 60, n. 29. Em 30 de junho de 1752, o Dr. Manoel Pires Sardinha foi testemunha de uma devassa no Tejuco e afirmou ser branco, viver de sua lavra e curativo no arraial do Tejuco e ter 60 anos. 95Livro de Registro de Patentes da Câmara da Vila do Príncipe – setembro de 1770. f.6v a 9 
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indicativo do seu proprietário, no caso seria José da Silva Oliveira. Como veremos a seguir, Chica tomou esse sobrenome somente após ter sido alforriada. Enquanto era escrava, parecia na documentação da época, como era rotineiro, somente como Chica, parda ou mulata, escrava de...  
 Em 1751, Chica teve seu primeiro filho, Simão, com seu proprietário, que não assumiu nos registros de batismo a paternidade de Simão, mas concedeu sua alforria.97 Mais tarde, em seu testamento redigido em 1755, ele reconheceu Simão como um de seus filhos bastardos, nomeando-o como um de seus herdeiros.98 Manoel já tinha dois outros filhos, Plácido, filho de uma escrava, Antonia Xavier e Cipriano, nascido de outra escrava Francisca Pires.99  
 A Visita Eclesiástica ao Tejuco, em 1753, condenou Manoel Pires Sardinha de concubinato, em primeiro lapso, com suas duas escravas Franciscas e os “admoestou paternalmente ... para que de todo se apartassem (sic) da ilícita comunicação ... evitando por este meio as ofensas de Deus, escândalo ao próximo e o perigo a que vem expor as suas almas.”100 A historiografia é unânime em afirmar que Chica era mãe de Cipriano e Simão. Porém, os dois registros de nascimento, a Visita de 1753 e o testamento de Manoel Pires Sardinha não deixam dúvidas de tratarem-se de duas Franciscas. Em 1756, a mesma Francisca Pires, já crioula forra, dava luz a outra criança, Bárbara, que teve como madrinha a própria Chica da Silva,101 revelava-se, desta forma, que os laços estabelecidos no cativeiro eram honrados na vida livre. 
4.3.  O Desembargador João Fernandes De Oliveira 
 No segundo semestre de 1753, João Fernandes de Oliveira chegou ao Tejuco, após seu pai ter arrematado o quarto contrato dos diamantes.102 Em 24 de novembro daquele ano, 
                                                                                                                                                                               96SERRO. Arquivo do Fórum. Livro de Notas – 1754. f. 55-55v. 97DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27, Caixa 297, f. 29. 98Id. op. cit., nota 26, f. 27. 99DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27, f. 11; op. cit., nota 26, f. 71. SERRO. Arquivo do Forum. Livro Avulso de Testamentos.  100Id., Livro de Termos do Serro do Frio. Caixa 557, f. 102v. 101Ibid., f. 40. 102LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Cartórios Notariais. 5B. Caixa. 15, Livro 75, notas Actual 12. f. 75-78v. 
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apareceu pela primeira vez como padrinho de batismo no Tejuco, estabelecendo através da relações de compadrio as conexões necessárias para criar compromissos com a elite local. Na mesma data, batizou Angélica, filha legítima de José de Araújo Guimarães e Ignes Maria da Conceição, ambos brancos.103 Nos meses seguintes, foi seguidamente padrinho de batismo de mulatos, filhos bastardos, escravos, expostos e brancos. Com isso, garantia a caridade para com os pobres, a deferência com os iguais e os colocava sob sua influência por meio dos laços indissolúveis da gratidão.  
 João Fernandes de Oliveira era um rapaz cuja trajetória, cuidadosamente planejada por seu pai, refletia o processo de notabilização e ascensão social que o antigo contratador dos diamantes procurava estabelecer para sua família, à medida que se enriquecia. João Fernandes de Oliveira, o velho, apesar da enorme fortuna que acumulara com os diversos contratos de diamantes que arrematara desde em 1740, alcançou apenas o título de Sargento-Mor, pelo o qual era sempre referido para se distinguir de seu filho homônimo. O jovem João Fernandes nasceu em Mariana, em 1720, era filho de Maria de São José, paulista, primeira esposa do Sargento-Mor.104 Em 1743, matriculou-se em Cânones na Universidade de Coimbra, onde se formou em julho de 1748105. Em dezembro do mesmo ano, foi sagrado pelo Rei Dom João V, Cavaleiro da Ordem de Cristo, com toda a pompa, em cerimônia ocorrida na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Lisboa106 e o título com sua respectiva tença de 12$000 réis foi dado em julho do mesmo ano.  
 Já sagrado cavaleiro, o jovem apresentou-se em 16 de março de 1750, na Audiência de Juízo, com suas cartas de formatura pela Universidade de Coimbra, e requereu licença para advogar.107 Na ocasião, afirmou que residia na Corte, de onde retornou para o Brasil em 1753, para representar o pai no quarto contrato dos diamantes. Então, já acumulava todos os sinais de dignificação, ao qual juntou o título de Desembargador, nomeado para o Tribunal da 
                                                          
 103Ibid., f. 39 104Id., Índice de Leitura de bacharéis. João Fernandes de Oliveira. Maço 22, doc. 37. 105COIMBRA. Arquivo da Universidade de Coimbra. Actos e graus de estudantes da Universidade por Faculdade. 106LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Chancelaria Antiga da Ordem de Cristo. Livro 235. f. 319. 107Id., op. cit., nota 195, Maço 22, doc. 37. 
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Relação do Porto.108 Por fim, em 1763, foi-lhe “feito mercê do lugar de Juiz do Fisco das Minas Gerais,  [com] mercê de que possa vestir a beca”109 e “com o predicamento de lugar de primeiro banco.”110 
 O jovem João Fernandes que chegava ao Tejuco, “solteiro, de boa vida e costumes”111 coberto de nobreza e ostentando importante cabedal de seu pai, era o que se podia chamar de bom partido. Porém, no ano seguinte, ao contrário de todas as previsões, iniciou um envolvimento amoroso com Chica da Silva, escrava, parda, a quem foi fiel até a morte, ainda que vivessem separados em seus últimos anos, ela no Tejuco e ele em Lisboa. 
 Poucos meses após sua chegada, em dezembro de 1753, já como proprietário de Chica, a quem comprara por 800$00 réis, João Fernandes registrou na Vila do Príncipe sua carta de alforria.112 Este comportamento de alforriar um escravo logo após sua aquisição era quase inexistente entre os proprietários mineiros, que, usualmente, concediam a liberdade às concubinas ou escravos de confiança mediante o processo de coartação, pelo qual a alforria ia sendo paga parceladamente, ou em testamentos na hora da morte, em pagamento de serviços. Entre as vinte e três mulheres forras que registraram seu testamento no Tejuco, somente, Maria de Souza da Encarnação contou ter tido um processo de libertação semelhante ao de Chica. Vivia no Tejuco com Domingos Alves Maciel que, finalmente, a comprou e a libertou em seguida.113 A maioria dos brancos proprietários viviam maritalmente com suas escravas sem conceder-lhes a alforria, como Manoel Pires Sardinha, que alforriou apenas os filhos nascidos das relações consensuais . A atitude de João Fernandes divergia dos padrões encontrados nas Minas da época e sugeriu a existência de laços de afeto entre ele e Chica, além do desejo de que ela não desfrutasse de situação social tão inferior a sua. 
                                                          
 108LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 31, Maço 1342, doc. 7. 109Id. Ministério do Reino. Livro 214, F. 43v e 44. Id. Chancelaria de Dom José I. Livro 86, f. 101v - 102. 110LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 110, Livro 209, f. 184. 111Id. op. cit., nota 105, Maço 22, doc. 37. Depoimento do Dr. José Antônio Cobeiro de Azevedo, corregedor do cívil. 112SERRO. Arquivo do Fórum, op. cit., nota 97, f. 55-55v. 113LISBOA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 26, f. 34- 
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 A estratégia da família Fernandes de Oliveira em relação ao contrato dos diamantes foi expediente comum entre os homens de negócio. Como as relações de poder adquiriam no Império Português caráter privado, para efetivação e sucesso dos negócios era necessária uma abordagem cotidiana e intimista com as fontes deste poder, acima de todas com a própria figura real. As relações de negócio, porque assentadas segundo as mesmas premissas, misturavam-se com as relações familiares e era comum dentro da mesma família seus diversos membros ocuparem diferentes posições dentro do empreendimento. Geralmente, um ou dois cuidavam dos negócios, enquanto pelo menos outro tratava de freqüentar a corte, angariando favores, concessões, privilégios.  
 Esta estratégia foi observada em algumas das mais importantes corporações/famílias de negócio como os Pinto de Miranda e os Pinheiro. A família Pinto de Miranda era produtora de vinho e cuidava da exportação destes e de outros produtos para Brasil. Um dos irmãos, Balthazar, permaneceu em Portugal como elo de ligação com a Corte, e ali chegou a ser nomeado responsável pela Companhia Vinícola do Alto Douro, enquanto seus irmãos vieram para o Brasil: Antônio foi para o Rio de Janeiro em 1739 e João para Vila Rica.114 Francisco Pineiro foi um dos maiores homens de negócio português na primeira metade do século. Em vários momentos, afirmou que desfrutava da intimidade com o Rei, necessária à boa condução dos negócios. Desta forma, conseguia favores e cargos para seu agentes espalhados pelo Império, muitos deles membros de sua própria família, como seu irmão Antônio Pinheiro Netto, que se estabeleceu no Rio de Janeiro e depois em Minas, e seu cunhado e compadre, Francisco da Cruz, que veio para Sabará.115 
 A partir do quarto contrato dos diamantes, os João Fernandes de Oliveira, pai e filho, estabeleceram a mesma estratégia. O pai, o Sargento-Mor, estabeleceu-se no Reino e, a partir da amizade que tecera, cuidadosamente, nas Minas com o Governador Gomes Freire de Andrade, passou a frequentar os mais altos estratos da Corte, compartilhando da confiança de Pombal. Logo após o terremoto em 1755, Lisboa passou por transformações e ampliações urbanísticas fundamentais. Uma destas transformações foi a ocupação do Bairro da Lapa por 
                                                          
 114    SANTOS, Eugênio de. Relações da cidade e região do Porto com Rio de Janeiro e Minas Gerais... 
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uma elite burguesa ascendente, que ali construiu belas mansões, partilhando o espaço com família nobres de nascimento, que também se mudaram para ali. O S.M. João Fernandes escolheu o aprazível sítio de Buenos Aires, que, como o nome indica, ocupava posição privilegiada, no alto do Rio Tejo, desfrutando de bela vista e incomparável arejamento da brisa que subia do rio.116 Ali construiu uma suntuosa mansão símbolo do poder e riqueza que alcançara com os dois contratos diamantinos que arrendara na primeira metade do século. A estreita ligação entre sua trajetória pessoal e os negócios com os diamantes foram expressos nos painéis de azulejos que adornaram a magnífica escadaria. Ali imagens de índios e orientais sugeriam as ligações com o Brasil e a Índia, regiões produtoras das preciosas gemas. 
 Na casa do sítio de Buenos Aires, o velho SM João Fernandes instalou-se com sua nova esposa Isabel Pires Monteiro e passou a desfrutar de uma vida de luxo, gastando seu tempo em demonstrar, na Corte, a fortuna e a importância que adquirira. A intimidade com os poderosos era vital para a concretização dos interesses financeiros. Assim, o velho tratou de estabelecer conexões importantes, destacando-se as relações com o Ministro do Reino, o futuro Marquês de Pombal. Vários indícios demonstraram que as relações entre os João Fernandes, pai e filho, e o Marquês de Pombal eram estreitas. Num intercâmbio de favores, em 1770, durante as negociações da renovação do 6º contrato dos diamantes, o velho Sargento-Mor concedera ao ainda Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Mello, “oito contos de réis, que são vinte mil cruzados, para se acabarem as casas sitas junto à Igreja da freguesia arruinada de São Paulo, desta Corte.”117 
 Um dos detalhes da casa que demonstram o novo poderio da família Fernandes de Oliveira foi a construção de túnel subterrâneo exclusivo para a captação de água. No século XVIII, uma luta surda opunha ricos e pobres nas ruas de Lisboa: a luta pelas escassas provisões de água na cidade. A crônica falta d’água em Lisboa só foi resolvida no final do século XVIII com a construção de um aqueduto por Dona Maria I. Só para se ter idéia da tensão existente devido à disputa pela água, Pombal foi acusado por seus opositores de 
                                                                                                                                                                               115    FURTADO, Júnia Ferreira, op. cit., nota 18. 116 MATOS, José Sarmento. Uma casa na Lapa... 117Ibid., f. 71. 
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construir uma captação secreta e própria de água para sua nova casa, ligada diretamente à fonte que mandara edificar em frente ao imóvel, o que em si já era um privilégio. A existência de túnel exclusivo de centenas de metros para abastecer o solar de Buenos Aires, dá dimensão do poder alcançado pelos contratadores. 
 O filho, preparado para a condução dos negócios, mudou-se para o Brasil para cuidar pessoalmente do novo contrato (4º). A partir daí, seus negócios entrelaçaram-se permanentemente aos do pai. Das Minas, o Desembargador enviava, anualmente, os ricos rendimentos oriundos da exploração diamantina, permitindo que o pai vivesse folgadamente no Reino, como um nobre. O bom desempenho do Desembargador João Fernandes nos negócios no Tejuco, em oposição ao inábil pai, foi salientado várias vezes.  Nas disputas posteriores que opuseram o Desembargador e a viúva de seu pai, Pombal atestou que era “notória [a] insuficiência do dito [SM] João Fernandes de Oliveira para dirigir e governar um negócio de tanta importância.”118 Referiu-se ao tipo de vida que passou a despender após sua volta à Lisboa, com gastos excessivos, principalmente usados para a edificação da nova casa. Pombal testemunhou que foi necessário limitar os saques que o Sargento-Mor fazia ao cofre onde eram depositados os rendimentos do contrato, gastos sem controle “para alguns empregos de bens de raiz; pela dissipação de todos os seus bens.”119 
 Uma vez no Tejuco, o Desembargador João Fernandes organizou a exploração diamantina e fez crescer seus lucros e os do Rei. Assim, tornou-se elemento de confiança do Marquês de Pombal e foi mais um dos exemplos de negociantes que ascendeu na sociedade portuguesa no período pombalino, consubstanciando os interesses do Reino com os da emergente classe mercantil. 
 Os negócios diamantinos enriqueceram o Desembargador que, em vida, acumulou vasto patrimônio nas Minas, no Rio de Janeiro e no Reino. Afirmou em seu testamento “que passando aos Estados da América, no ano de 1753, empregara a sua louvável indústria em 
                                                          
 118 LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 31, Maço 1342, doc. 7. 119Ibid. 
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adquirir um decente patrimônio pelo comércio, com o qual estabelecera a sua casa.”120 Em Minas, possuía um morada em Vila Rica, outra em Pitangui, onze fazendas de criação de gado e cavalos em diversos lugares, uma roça também em Pitangui, além das fazendas no Serro do Frio, deixadas, em doação post mortem, uma para cada filho e, no Rio de Janeiro, era proprietário de umas “casas nobres”. Em Portugal, possuía a fazenda do Grijó, comprada nas mãos do Estado, pois tinha sido um dos imóveis expropriados dos agostinianos por Pombal; era dono de uma Quinta em Portela, caminho de Sacavém; e de outra chamada Enxada do Bispo, com sete casas anexas, na Comarca de Leiria. Em Lisboa, adquirira um quarteirão de casas na Rua Augusta, endereço nobre na cidade; as casas de Buenos Aires, na Lapa, outra no fim da Rua da Bella Vista; duas defronte do convento da Estrela, e outra menor na rua do Guarda-Mor.121 Só em dinheiro, o Desembargador deixou cerca de noventa e seis mil cruzados, recolhidos no cofre dos resíduos e, que deveriam ser investidos em empréstimos a juros em favor de seus herdeiros.122 
 A evolução da produção de diamantes no Tejuco, durante a condução do Desembargador João Fernandes, demonstrou que seu êxito e incremento esteve diretamente ligado a sua presença. A partir da sua ausência, no segundo semestre de 1770 e durante o ano de 1771, a produção decresceu vertiginosamente, apesar do contrato continuar administrado por um de seus homens de confiança, o administrador geral Caetano José de Sousa.123 Depreende-se pelo volume de riqueza produzida que o contratador não poderia ser aos olhos da Coroa apenas um notório contrabandista e contrário aos seus desígnios. Na verdade, os interesses privados e públicos envolvidos na produção diamantina se completavam e geravam benefícios mútuos. E, como bem percebeu Pombal, o Desembargador era peça fundamental no intricado jogo de relações que consubstanciavam os grandes homens de negócio e a Coroa. Isto não significa, contudo, que o Desembargador não tenha auferido lucros ilícitos na extração, pois os benefícios individuais eram inerentes à máquina administrativa portuguesa e eram o custo de manter privada a origem do poder. 
                                                          
 120Id. op. cit., nota 102, Livro 75, Caixa 15.  121LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 102, Livro 78, Caixa 15. Atual 12. F. 48-49. 122Id. op. cit., nota 31, Maço 2112, doc.37. 123Id. Núcleos extraídos do Conselho da Fazenda. Junta de Direção Geral dos Diamantes. Livro 3. p. 1. 
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QUADRO I Produção oficial de diamantes  entre 1765-1771 ANO QUILATES 1765 84.862 1766 91.382 1767 70.942 1768 74.450 1769 76.689 1770 55.414 1771 35.369 Fonte: ANTT. Núcleos extraídos do Conselho da Fazenda. Junta de Direção Geral dos Diamantes. Livro. 3, p. 6v. 
 
 A grandeza e a importância de João Fernandes deveriam ser demonstradas publicamente, para que fosse honrado e respeitado pela sociedade. Um destes mecanismos era a caridade com os mais pobres, que sempre engrandeciam o ofertante. A Chácara que João Fernandes construiu nos arredores do Tejuco, denominado Palha, e que, posteriormente, deixou para Chica, abrigava não só os casamentos da elite local, mas também os de seus escravos. Com este ato, além de demonstrar a benevolência com seus cativos, contribuía para a difusão do catolicismo e das instituições familiares europeias, ocupando o papel do bom súdito e fiel cristão. Em 1769, casaram-se “Cláudio com Maria, escravos de Francisca da Silva e Oliveira, na Chácara de João Fernandes.”124 
 Outra forma de caridade era direcionada aos doentes. Entre as obrigações dos contratos diamantinos constava a manutenção de um hospital, destinado principalmente aos negros que trabalhavam na mineração e padeciam de vários males e acidentes. Na época de João Fernandes, era médico José Antônio Mendes que, mais tarde, escreveu um tratado de medicina chamado Governo de Mineiros... Contou que, no Tejuco, curou vários doentes de cancros, entre eles vários pobres, “que pelo amor de Deus mandava curar o Desembargador 
                                                          
 124DIAMNATINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos. Casamentos no Arraial do Tejuco. Caixa 335, f. 41v. 
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João Fernandes de Oliveira, que alguns sararam com grande admiração do mesmo, que os via quando os mandava aceitar, e quando eles lhe iam render as graças já sãos.”125 Por meio deste ritual de visitar os doentes que mandava curar gratuitamente, e fazê-los render graças quando curados, o Desembargador publicitava sua grandeza, sua magnificência para com os desfavorecidos e trazia de volta para si os ganhos deste ato caridoso. 
 Outra manifestação pública da importância de João Fernandes no arraial, junto aos poderosos locais, foi concretizada no apadrinhamento da construção da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. No documento que em 1788, Sua Magestade confirmou o compromisso da Irmandade, estabelecido na década de 50, nele, o escrivão anotou que “a capela que presentemente possuem por doação dela fez o Desembargador João Fernandes de Oliveira, edificada pelo mesmo com licença do Ordinário da respectiva Diocese.”126 
OS FILHOS 
 O primeiro documento sobre Chica após sua alforria, em 1754, registrou o nome de Francisca da Silva.127 No ano seguinte, já foi citada como Francisca da Silva de Oliveira128 e, algum tempo depois, passou a predominar a incorporação do tratamento de Dona ao seu nome. A mudança na forma de tratamento sugere a importância que alcançou durante sua trajetória de vida e que permitiu que ela encontrasse sua identidade junto à camada de brancos livres. 
  O sobrenome Oliveira foi incorporado oficialmente no momento do nascimento da primeira filha, sugerindo um pacto informal entre os consortes, já que não era adequado e até mesmo possível legalizar sua relação. Analisado, à luz da documentação, o sobrenome Silva de Oliveira não sugere nenhuma conexão com o pai do padre Rolim, José da Silva de Oliveira. Silva era sobrenome generalizadamente adotado no mundo português, indicando exatamente indivíduo sem procedência ou origem definida. Francisca da Silva de Oliveira, mulata forra, 
                                                          
 125MENDES, José Antônio. Governo de Mineiros...p.133. 126BELO HORIZONTE. Arquivo do IPHAN. Pasta de Tombamento da Igreja do Carmo de Diamantina. Cópia do documento com que Sua Magestade foi servida... 127DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27, Caixa 297, f.32 128Ibid., f. 42v. 
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como seu nome ostentava, afirmava-se no mundo livre, por seus próprios meios, porém conectada ao homem ao qual permanecerá ligada até o fim de seus dias. 
 Em 1754, Chica, já então livre, era proprietária de casa e escravos, pois em dezembro desse ano, foi registrado no Tejuco Manoel, filho de uma sua escrava, nascido em sua casa.129 Em abril do ano seguinte, nasceu a primeira filha dos dois, Francisca de Paula, mulata.130 Foi registrada como de pai desconhecido, apesar de Chica ostentar oficialmente seu novo sobrenome, ao invés do habitual Francisca, parda, escrava de ...  
 Durante 15 anos, entre 1755, quando nasceu sua primeira filha, até 1770, ao João Fernandes voltar para Portugal eles mantiveram um relacionamento estável do qual nasceram treze filhos. A média de um filho a cada treze meses faz desmoronar a figura sensual e lascívia, devoradora de homens, à qual Chica esteve sempre ligada. João Fernandes não teve dúvidas sobre a paternidade dos rebentos ao legitimá-los e legar-lhes todo o seu patrimônio.131 Foi possível encontrar o registro de nascimento de onze deles no Tejuco e Macaúbas, mas, infelizmente, o Livro de Batismos de 1769 a 1780 está tão danificado que impossibilitou a consulta.  
 Como já foi dito, em 1755, nasceu Francisca de Paula. João, que se tornaria o principal herdeiro do pai homônimo, nasceu em 1756.132 No ano seguinte veio Rita,133 dois anos depois nascia Joaquim.134 Antônio Caetano nasceu em 61,135 seguidos de Ana,136 Elena137 e Luiza138, nascidos nos anos consecutivos. Em 1766, nasceu Maria,139 seguida de Quitéria no ano 
                                                          
 129DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27, Caixa 297, f..32. 130Ibid., f. 42v. 131SOUZA, Joaquim Silvério. Sítios e personagens históricos de Minas Gerais. Ap. 53, nota 2. LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 102, Livro 75, Caixa 15. 132DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27,. Caixa 297, f. 47v. 133Ibid., f. 55.  134Ibid., f. 74 135Ibid., f. 82v. 136Ibid., f. 85v. 137Ibid., f. 89v 138Ibid., f. 98v. 139SERRO. Arquivo do Fórum. Livro Avulso de Testamentos. Testamento de Maria de São José Fernandes de Oliveira. 
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seguinte140 e, em 1769, veio a caçula Mariana,141 o que significa que José Agostinho142 era, provavelmente, de 1765, e Antônia143 de 1768. 
 Quase todos os nomes escolhidos pelo casal reafirmavam os laços familiares, de onde eram oriundos os prenomes, e procuravam sugerir que ali se estabelecia uma família autêntica, ainda que não sagrada pelos laços oficiais do matrimônio. As cinco irmãs de João Fernandes, todas recolhidas no convento de Monchique da cidade Porto, chamavam-se Ana Quitéria, Maria Margarida, Rita Francisca e Elena.144 João era nome do próprio Desembargador, de seu pai e de seu avô. O pai de Chica chamava-se Antônio Caetano, a mãe Maria e sua irmã era Rita. No testamento do Sargento-Mor João Fernandes, ele afirmou a devoção à Santa Rita, a São Francisco de Paula, a São Joaquim e Santo Antônio. Às várias filhas foi dado também o sobrenome São José, o mesmo que algumas das tias freiras ostentavam e que era também devoção do avô. 145 Percebe-se que a escolha dos nomes, retirados dos diversos indivíduos da família, pretendia honrar os filhos, inserir-lhes no seio familiar, base de seu reconhecimento e identificação, buscando também conferir legitimidade à relação.  
 Se a escolha dos nomes ancorava-se no passado, nas tradições familiares, os registros de batismo das crianças apontavam para o futuro e demonstravam os laços que o compadrio honrava e que o casal estabelecia em vida entre a sociedade do arraial. Foram chamados para batizar as crianças importantes moradores do Tejuco. Se por um lado essas ligações certificam que a relação ilícita era aceita pela sociedade local, por outro lado, era indicativo que tal situação foi empecilho para que João Fernandes pudesse estabelecer, através do compadrio, laços que extrapolassem o arraial e criassem obrigações e reciprocidades com autoridades importantes da Capitania, especialmente o Governador.  
 Por exemplo, durante o terceiro contrato estabelecido por Felisberto Caldeira Brant e seu sócio Alberto Luís Pereira, o batizado de seus filhos foi claramente pretexto para se 
                                                          
 140JABOTICATUBAS. Convento de Macaúbas. Livro de registros de entradas no Recolhimento. 141DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27, Caixa 297, f. 84. 142Sobre José Agostinho existem vários documentos. Ex: LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 31, Maço 1078, n.11. 143SERRO. Arquivo do Fórum, op. cit., nota 140. Faz várias referências à Antônia, na época religiosa em Macaúbas. 144LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 102, Livro 300, f. 28v-34v. 
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unirem a importantes figuras da Capitania, inclusive o Governador. Ana e Thereza, filhas de Alberto, foram batizadas em 1750, 1752, respectivamente, tendo como padrinho o Governador Gomes Freire de Andrade.146 Nesses batizados, Gomes Freire mandou procurações, não indo pessoalmente ao Tejuco; já no batizado de uma das filhas de Felisberto, Thereza, o Governador não só foi o padrinho, como esteve pessoalmente na cerimônia.  Posteriormente, Gomes Freire foi aliado fiel e, nas disputas entre os sócios no contrato e o Intendente Sancho de Andrade e Lanções, colocou-se claramente a favor dos dois, retribuindo as demonstrações de amizade explicitadas nas relações de compadrio. Em 1752, quando Gomes Freire se retirou para o Sul e deixou seu irmão José Antônio Freire de Andrade como interino, advertiu-o em suas Instruções que tomasse cuidado com o Intendente pois o mesmo era “um ministro muito mal conceituado no ministério.”147  
 Os registros de nascimento do Tejuco, de onde podem se apreender os laços de compadrio, demonstraram que amistoso relacionamento entre as partes prevaleceu durante a vida e a morte dos envolvidos. Curioso para os olhos contemporâneos, o padrinho escolhido para Francisca de Paula foi o doutor Manoel Pires Sardinha, seu antigo proprietário. O próprio Sardinha tinha sido procurador do segundo contrato dos diamantes estabelecido pelo Sargento-Mor João Fernandes de Oliveira, de quem, evidentemente, despertava confiança.148 Sardinha gravitava no círculo de amizades da família Fernandes de Oliveira e os laços de compadrio vinham selar os compromissos recíprocos inerentes a essa relação.149 Em 1756, Chica e o médico foram padrinhos de Rosa, filha de uma escrava do cirurgião-barbeiro, José Gomes Ferreira. José Gomes alforriou a criança e Sardinha concedeu-lhe uma esmola de 32 oitavas de ouro.150 Também, Chica herdou bens do finado proprietário, pois no inventário do Sargento-Mor José da Silva e Oliveira, em 1796, foi instada a pagar 28$856 réis de dívidas que Sardinha havia contraído, dos quais consta o pagamento de 3$000 réis.151 Também 
                                                                                                                                                                               145Ibid. 146DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27, f. 23 e 30. 147INSTRUÇÕES que ..., op. cit., nota 75, p. 374. 148LISBOA. Arquivo Histórico Ultramarino, op. cit., nota 41, Caixa 60, Maço 29. 149FURTADO, Júnia Ferreira. Toda oferenda espera sua recompensa. In: Homens de Negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas Setecentistas.  150DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27, Caixa 297, f. 49. 151DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres. Testamento de José da Silva e Oliveira, 1796-1797. 1º ofício, Maço 28. 
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demonstrando sua amizade pela ex-escrava Francisca Pires, mãe de Cipriano Pires Sardinha, Chica foi madrinha de sua filha Bárbara em 1756, e João Fernandes e sua filha Rita Quitéria foram padrinhos de sua outra filha, Elena, nascida em 1762.152 
 Ao se analisar a relação nominal dos outros padrinhos dos filhos de Chica e João Fernandes, a primeira coisa que salta aos olhos foi a ausência de qualquer autoridade importante da administração da Capitania ou mesmo do Distrito, especialmente o Intendente dos Diamantes, expediente sempre utilizado pelos contratadores, para garantir as benesses da principal autoridade portuguesa local. Além de Manoel Pires Sardinha, foram padrinhos o Sargento-Mor José da Silva de Oliveira, velho amigo de seu pai; o Coronel José Velho Barreto, importante fazendeiro e negociante por grosso no Tejuco. Garantindo os vínculos familiares, seu tio Ventura Fernandes de Oliveira, estabelecido em Vila Rica, foi padrinho de Joaquim. Os demais padrinhos foram escolhidos entre militares locais de baixas patentes, como o Sargento Mor Antônio Araújo de Freitas; o Capitão Luís Lopes da Costa, padrinho de Ana, Elena e Luiza, e os Capitães Francisco Malheiros e Luis de Mendonça Cabral. A mancebia do importante contratador branco com uma mulata, a impossibilidade de legalizarem o matrimônio e o consequente registro dos filhos como naturais, constando apenas o nome da mãe, tornavam impossível que essas cerimônias fossem utilizadas para criar os desejáveis laços de compadrio com autoridades de altas patentes que, em muito, auxiliavam no estabelecimento de laços recíprocos, mesmo que tal relação fosse socialmente aceita pela elite local. 
 
A EDUCAÇÃO DA PROLE 
 
 Chica procurou agir como qualquer senhora da sociedade. Educou suas filhas no Recolhimento de Macaúbas, melhor educandário das Minas, destinado apenas às filhas da elite,153 onde fez entrar suas nove filhas. O Recolhimento era destinado às filhas da elite mineira e era um misto de convento e educandário e, algumas vezes, abrigou mulheres casadas que, na ausência dos maridos, buscavam proteção, refúgio e paz. Macaúbas era um dos raros 
                                                          
 152DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27, Caixa 297, f. 50 e 86. 
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locais das Minas onde as mulheres podiam ter acesso a uma educação formal, já que a grande preocupação da época era a educação masculina.154 A falta de mulheres na colônia, principalmente brancas, era crônica e, nas Minas, de povoamento recente e voltado principalmente à exploração do ouro, a situação era mais grave. O número de homens muito superior ao de mulheres e, entre estas, a predominância das negras e mulatas dificultavam as relações estáveis legalizadas sob os laços sagrados do matrimônio católico. Estes motivos levaram à proibição da instalação de conventos em Minas e, por isto, Macaúbas funcionou, informalmente, ao longo de quase todo o século XVIII.  Apesar da existência de um outro recolhimento em Minas Novas, muito mais próximo do Tejuco, para que as filhas pudessem receber educação esmerada, Chica preferiu deslocá-las até perto de Jaboticatubas, na Comarca de Sabará, onde Macaúbas fora construído, na proximidade do Rio das Velhas,. O recolhimento de Minas Novas, que funcionava na propriedade rural de uma das recolhidas, era conhecido por sua pobreza.  Educação esmerada para as mulheres significava, principalmente, a preparação para uma vida virtuosa. Os muros do convento deveriam funcionar como uma barreira intransponível para a vida mundana que grassava no seu exterior. Puras, intocadas e bem preparadas, as mulheres ali reclusas estariam aptas a escolher qualquer uma das duas possibilidades que a sociedade da época possibilitava às mulheres: a vida religiosa ou o casamento honrado. Macaúbas, edificado em recanto aprazível, mas distante e retirado, era local ideal para que Chica preparasse as filhas para ocupar seus lugares destinados na elite do arraial.  
 Como veremos a seguir, Chica buscou, prioritariamente, no Recolhimento que suas filhas tivessem uma educação formal, virtuosa e de qualidade, por isto somente Francisca de Paula, Elena Rita, Ana e Antônia professaram os votos e tornaram-se freiras. Mesmo assim, as quatro primeiras abandonaram mais tarde o hábito para se casarem. A educação que recebiam, quando penetravam no convento, baseava-se nos valores cristãos e era uma ruptura em relação ao mundo externo. Reclusas, vivendo em uma simples cela individual, as internas 
                                                                                                                                                                               153ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas; mulheres da colônia.... p. 22-26. 154ROMEIRO, Adriana. O desregramento da regra.  imaginário e cotidiano no Recolhimento de Macaúbas. Belo Horizonte, 1998. 
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deviam prontamente abandonar os valores a que estavam habituadas em casa e, para isto, cerimônias, ritos e a adoção de novos padrões de comportamento demarcavam o início de uma nova vida. O tempo do Recolhimento era devotado à Deus e o ambiente, suspenso entre a terra e o céu, propiciava a formação da alma caridosa e pura da  honrada cristã. 
 Assim que entravam no convento, num ritual de passagem, abandonavam seus nomes, suas roupas e seus antigos modos. Escolhiam então um novo nome, passavam a ostentar vestes brancas e se comportavam com humildade, gestos contidos e voz baixa, “falando só o que for preciso e necessário, e sempre com modéstia.”155 Seu dia a dia, era moldado pelos exercícios espirituais, que preenchiam o cotidiano e aperfeiçoavam e elevavam o espírito, pois “a prática da oração mental, dissolve com acerto as dúvidas das Recolhidas e  as moverá eficazmente a caminharem com fervor no caminho da perfeição.”156 
 O quarto capítulo dos estatutos pregava a virtude da pobreza, assim como fizeram Cristo e os apóstolos, exortando-as: 
“a que desapeguem o seu coração das cousas temporais empregando-se unicamente nas eternas, deixando os bens do mundo, ou muitos, ou poucos, deixando também o afeto e o desejo de ter e adquirir e se empreguem com mais fervor em amar a Deus, que é o fim porque deixaram o mundo.”157 
 
 
 Exigia-se das recolhidas obediência, pois aí residia a virtude e a santidade, valores a serem quotidianamente buscados. 
 A disciplina reinante no convento deveria ser rígida e tinha objetivo moldar a alma e o corpo segundo os princípios cristãos. Porém, enorme distância separava o ideal da prática, os estatutos da realidade. Nas primeiras décadas do século XVIII, por exemplo, os confessores das internas, os capelães Manoel Pinheiro de Oliveira e Antônio Alvares Pugas acabaram nos cárceres da Inquisição acusados do crime de solicitação. Isto é, tentaram seduzir as recolhidas, 
                                                          
 155RIO DE JANEIRO. Arquivo Nacional. Regimento do Recolhimento de Macaúbas. Caixa 130, pac. 2. doc. 57. 156 Ibid.. 157Ibid. 
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utilizando-se da intimidade criada no momento da confissão.158 O processo revelou um convento completamente fora dos padrões esperados de moralidade, onde as recolhidas segredavam, entre si, as propostas indecentes recebidas no confessionário, onde os capelães requisitavam “abraços e boquinhas, peitos para acariciar e ligas para guardar de lembrança, chamando as recolhidas para encontros fortuitos em seu quarto.”159 
 Em 1734, uma Devassa realizada no Recolhimento revelou a desordem que reinava no convento. A madre regente, que deveria ser a primeira a guardar e preservar as rígidas normas internas, foi acusada de não atender as enfermas, nem realizar vistorias noturnas nas celas, onde internas chegavam a partilhar da mesma cama, sugerindo um ambiente devasso e não casto como fora idealizado.160 A rotina do convento deveria ser prescrita de modo a evitar o tempo ocioso, "senhor dos vícios e da perversão". Além dos exercícios espirituais, da oração, da penitência, da prática do coro e da confissão, as internas deveriam se dedicar às tarefas manuais, que preencheriam o tempo restante. Porém, o mundo exterior, ao contrário do que deveria acontecer, penetrava nos muros da clausura e se reproduzia internamente. A prática de trazer escravos para dentro da clausura, pois senhoras num mundo escravista, sentiam aversão a qualquer forma de trabalho manual, visto sempre como degradante, pervertia a ordem reinante e tornava mundano um ambiente construído para a edificação dos espíritos e elevação das almas. 
 Chica aproveitou-se desta informalidade do convento para ali entrar e sair a seu bel prazer, visitando as filhas quando bem queria e levando-lhes alimentos especiais, como frango para as enfermas e outros quitutes.161 Do lado de fora, João Fernandes chegou a mandar edificar uma pequena casa, onde ela podia se estabelecer em suas estadas prolongadas. 
 Em 1767, Chica recolheu em Macaúbas as filhas mais velhas, Francisca de Paula, Rita Quitéria e Ana Quitéria, pelas quais pagou o dote de novecentos mil réis em barra por cada 
                                                          
 158LIMA, Lana Lage da Gama. A confissão pelo avesso. São Paulo: USP, 1990. 159ROMEIRO, Adriana, op. cit., nota 155, p.9. 160ROMEIRO, Adriana, op. cit., nota 155, p.10. 161BELO HORIZONTE. Arquivo Particular Assis Horta. Documentação do Convento de Macaúbas. 
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uma, no ano seguinte.162 As meninas levaram, para dentro da clausura, três escravas pardas e mais um casal que ficou de fora para lhe assistirem, e puderam contar com mais sessenta mil réis por ano para sua sustentação, que João Fernandes pagou adiantado no primeiro ano.163  
Em 1776, Rita Quitéria voltou para casa vítima de “moléstia grave” para se tratar pelo prazo de seis meses,164 “com umas feridas pela garganta e nariz, que lhe sobrevieram a sete meses, do que não se pode comodamente curar.”165 Era então recolhida, mas não manteve esse estado pois, mais tarde, casou-se no Tejuco.166 Em 1780, já estavam ali também mais outras quatro filhas: Elena Luzia, Maria e Quitéria.167 
 O ano de 1780 foi decisivo no destino das filhas nas Macaúbas. Como João Fernandes morrera em fins de 1779, Chica teve que tomar as providências necessárias ao destino das filhas. Quase todas voltaram então ao seu convívio, apesar de não haver evidências de grandes dificuldades econômicas já que todas receberam dotes de seu pai na forma de fazendas. Chica, provavelmente, achou por bem prepará-las para o casamento que manter os gastos com aquelas que efetivamente não tinham pendor para a vida monástica. Leila Mezan Algranti inferiu que as reformas do Frei Domingos da Encarnação Pontevel que proibiram a livre entrada na casa, visando a sua moralização, pode ter sido um dos motivos que levaram Chica a retirar as filhas.168 Isso pode ter tido algum peso, mas com certeza, foi decisiva a ausência do amparo financeiro paterno e a necessidade de encaminhar as filhas na vida, pois a permanência no Recolhimento estava condicionada ao pagamento dos dotes. Na petição enviada à Madre Regente, Chica afirmou que as filhas mais novas Luiza, Maria e Quitéria “entraram tão somente para aprenderem os primeiros rudimentos e os da virtude que se 
                                                          
 162MACAÚBAS. Arquivo do Convento. Termo de paga dos dotes das três sobreditas... 163Id. Livro de registros de entradas no Recolhimento. p. 85-6. 164Ibid., 50. 165Ibid. 166DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres. Inventário de Rita Quitéria de São José Fernandes de Oliveira Lucena. 1º ofício, maço 63. 167MACAÚBAS. Arquivo do Convento. s. n. 168ALGRANTI, Leila Mezan, op. cit., nota 154, p.24. 
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pratica louvavelmente no dito Recolhimento e como nunca se resolveu a que estas persistissem perpetuamente lhes não aprontou dote.”169  
 Com efeito, respondendo aos pedidos de Chica, em 1781, Francisca de Paula, doente nessa época, foi autorizada a passar um ano em sua casa tratando-se, “dentro do qual se obriga a voltar para esse Recolhimento  e se obrigava a andar de hábito, como irmã recolhida, e em tudo observar as determinações.”170 Na mesma data, foram-lhe entregues as três filhas mais novas Luiza, Maria e Quitéria que ali estudavam.171 Também Elena, Rita e Ana, já irmãs recolhidas, desistiram do hábito e voltaram ao convívio com sua mãe.172 Francisca de Paula também acabou por abandonar a instituição, casando-se  em 1796 no Tejuco.173 
 Na mesma data, Antônia foi recolhida, “de sua livre vontade”174, evidência de que Chica ainda prezava a instituição. Em 1806, Antônia ainda estava em Macaúbas e tinha a seu serviço no Recolhimento a escrava Edwirges, crioula, emprestada de sua irmã Maria.175  
 O Desembargador João Fernandes foi um benfeitor do Recolhimento, contribuindo para sua instalação e permitindo um melhor tratamento para suas filhas; por isto, quando as primeiras filhas e duas de suas netas foram internadas não foi cobrado dote. Ao contrário, foi sua filha Quitéria quem deu, quando da entrada de suas duas filhas, recibo de quitação de uma dívida que o Recolhimento tinha com seu pai pelas “celas feitas pelo dito Desembargador, ficando obrigado a assistir as mesmas duas recolhidas.”176  
 As vidas das filhas de Chica estiveram permanentemente ligadas ao convento, várias delas voltando para dentro de seus muros, buscando refúgio em momentos de aflição e na velhice. Ali, a partir de 1789, esteve internada Quitéria com seus quatro filhos, concubina do 
                                                          
 169MACAÚBAS. Arquivo do Recolhimento.1780. s. n. 170Ibid. 171Ibid. 172Ibid. 173DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 125, Caixa 335, f. 203. 174Ibid. 175SERRO. Arquivo do Fórum, op. cit., nota 140. 176MACAÚBAS. Arquivo do Convento, op. cit., nota 164. 
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Padre Rolim, esperando seu retorno de Portugal, onde se encontrava preso, acusado de participar da Inconfidência Mineira. Em 1832, suas duas filhas mulheres encontravam-se ainda recolhidas em Macaúbas – Mariana Vicencia e Maria dos Prazeres.177 Ana Quitéria e Mariana de Jesus também voltaram para o Recolhimento, mesmo estando casadas, e Francisca de Paula retornou depois de ter se tornado viúva.178 
 
A VIDA NO ARRAIAL 
 
 Ao longo de sua vida, Chica procurou sua inserção social e a de seus filhos no seio da elite do arraial. Isto ocorreu a partir de vários expedientes e não devem ser creditados apenas à importância e à fortuna do contratador, já que ele teve que retornar a Portugal, em 1770. A partir daí, Chica teve que contar consigo mesmo e buscar mecanismos próprios de manutenção do seu status, a exemplo do que faziam as outras mulheres forras do Tejuco. 
 Um dos mecanismos de afirmação social utilizado foi a filiação a diversas Irmandades, inclusive ocupando cargos de direção. Percebe-se que, a exemplo das vinte três mulheres forras estudadas anteriormente, Chica e seus filhos transitaram por todas as Irmandades do Tejuco, não encontrando resistência por parte da sociedade, muito antes pelo contrário. Muitas vezes, suas presenças, inclusive em várias mesas diretoras, foram mecanismos de dignificação e proteção das Irmandades, distinguindo-se aí a do Rosário. 
 Chica e sua família pertenceram às principais Irmandades do Tejuco, local privilegiado de reconhecimento social. Foi possível constatar sua presença em quase todas elas, seja de brancos, mulatos ou negros. Foi livre seu trânsito, ou de seus descendentes, nas diversas Irmandades de brancos, especialmente Santíssimo, São Miguel e Almas, Nossa Senhora do Carmo do Tejuco e da Vila do Príncipe, São Francisco e Terra Santa, com a maioria das entradas ocorrendo posteriores ao retorno de João Fernandes ao Reino e a sua morte. Revelavam que Chica, efetivamente, conseguira a ascensão social que tanto almejara para si e para os seus. Também, como era comum entre os brancos, participavam das Irmandades de 
                                                          
 177Ibid.  178DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, Caixa 478, f. 233.  
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mulatos e negros. Neste caso, mais do que um elo de identificação com os irmãos, o que era buscada era a concessão e a ostentação do prestígio, pois conferiam proteção à Irmandade.  
 Dona Francisca da Silva de Oliveira, como era sempre tratada, como sinal de sua distinção, era irmã nas Irmandades da Terra Santa,179 onde entrou em 08.10.1766, contribuindo até um ano antes de sua morte; das Mercês,180 onde foi Juíza,181 de Nossa Senhora Rosário; de São Francisco de Assis182 e Nossa Senhora do Carmo da Vila do Príncipe, do Santíssimo Sacramento.183  
 Uma das Irmandades de brancos mais importantes em todos os arraiais mineiros era a do Santíssimo Sacramento, que tinha altar específico na Igreja Matriz de Santo Antônio do Tejuco. Em 1791, entraram para esta Irmandade Francisca de Paula, Rita, Antônio, Mariana, Maria e Antônia.184 Estas participações contrariavam diretamente os estatutos aprovados por Dona Maria, demonstrando que a sociedade não se regulava, ou comportava, dentro dos estritos limites das regras escritas. Para ingresso, exigia-se dos candidatos que “sejam pessoas honradas e de aprovados costumes”, mas sob estes dizeres genéricos excluíam-se não só os de mau procedimento, mas, principalmente, os de origem suspeita, como eram os mulatos e bastardos. Por isto, era vedado aos Irmãos que acompanhassem o enterro daqueles que, “havendo contraído infâmia pelo seu procedimento, tendo pardas, e seus filhos.”185 
 Eram irmãs de Nossa Senhora do Carmo do Tejuco suas filhas Quitéria, Antônia, Mariana, Ana, Rita, Maria, Luiza e Elena.186 O Desembargador João Fernandes fora seu primeiro Prior, ficando no cargo até 1767.187 Em 1798, a Irmandade ainda mandava rezar missas póstumas em sua homenagem.188 Antônio Fernandes de Oliveira foi secretário da Mesa 
                                                          
 179DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 27Livros dos Irmãos da Terra Santa no Tejuco. Caixa 509, f. 119. 180Id. Irmandade de Nossa Senhora das Mercês. Caixa.520, f. 20 181Id. Entrada de Juizes e Juízas Irmandade Nossa Senhora das Mercês. Caixa 510, p. 20. 182Id., op. cit., nota 26, f. 55. 183Id. Livro da Fabriqueira da Capela de Santo Antônio. Caixa.509, f. 3. 184Id. Livro de entrada da Irmandade de São Miguel e Almas. Caixa 519. 185COMPROMISSO da irmandade do SS. Sacramento da Capela de Santo Antônio do Tejuco... 186DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos. Ordem Terceira do Carmo. 1763-1808. Caixa 541.  DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, Caixa 478, f. 233. 187HORTA, Assis. Carmo ano 200...Estrela Polar, Diamantina, 1959. 188BELO HORIZONTE. Arquivo do IPHAN. Pasta de Tombamento da Igreja do Carmo. Documentos Avulsos. 
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nos anos de 1777-81, assinando as atas respectivas, este, também, foi Irmão de São Francisco189. Pertenceram à Irmandade da Terra Santa, os filhos Antônio, Luiza e Ana, esta última, quando interna em Macaúbas.190, tomou assento na Confraria. 
 Simão Pires Sardinha, seu filho com seu antigo proprietário, apesar de mulato entrou para a Irmandade de São Miguel e Almas em 1762,191 era irmão do Santíssimo192 e das Mercês,193 desta última Maria e Francisca de Paula também faziam parte.194 João Fernandes Grijó, filho de Chica, pertencia à São Miguel e Almas e foi irmão da Mesa da Irmandade do Rosário entre 1781/88, também Juiz de São Benedito na mesma Irmandade, quando em visita ao arraial.195 Francisca de Paula era irmã do Santíssimo, Almas, Mercês e São Francisco.196 
 Especial proteção despenderam à Irmandade do Rosário. Em 1773, Chica deu de esmola um par de brincos de ouro.197 Francisca de Paula filiou-se a ela em 1788, em 1793, foi irmã da mesa.198 Foram também irmãos da mesa, Grijó e José, durante sua estada no Tejuco em 1783-84.199 Este comportamento observou-se rotineiro entre as forras, que encontravam mesmo na Irmandade de negros forma de diferenciarem-se. Maria Martins Castanheira foi por duas vezes juíza desta Irmandade.200 
 No livro da Fabriqueira da Igreja Matriz de Santo Antônio do Tejuco, apareceram várias contribuições dadas por Chica para enterro de escravos seus e de suas filhas, privilégio que tinha por ser irmã do Santíssimo. Em 1787, demonstrando a caridade com os mais pobres, pagou pelo enterro de um indigente, indício de que aprendera esta lição com João Fernandes, pois tratava-se não apenas de ato social, mas, antes de mais nada, era mecanismo 
                                                          
 189DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos. Documentos Avulsos da Ordem Terceira de São Francisco. 1781-1782. Caixa 503.  190Id. Livros dos Irmãos da Terra Santa no Tejuco. Caixa 509, f. 2,8 e 23. 191Id. Livro de entradas. Caixa. 519, f. 48v. 192Id. AEAD. Irmandades do Arraial do Tejuco. Fábrica da Capela de Santo Antônio. Caixa 509, f. 5v. 193Id. Irmandade de Nossa Senhora das Mercês. Caixa520, f. 5.   194Id. Livro de entrada de irmãos da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês. Caixas 520. Tb. 510. 195Ibid. Caixa.519, f. 87v. Caixa.514, f. 76v, 82, 83v e 92. 196Ibid., Caixa. 509; Caixa.519; Caixa.520, Caixa350. 197Id. Livro de Inventário da Irmandade do Rosário. 1733-1892. Caixa 514. 198Id. Entrada de Irmãos professos na Irmandade do Rosário 1782-1808. Caixa 514, f. 26v e 44v. 199Id. Livro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. 1750-1794. 200 DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 387-388. 
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de exteriorização de sua importância.201 Pelo mesmo motivo, apadrinhava constantemente, batismos e casamentos de escravos e forros. Em 1760, foi madrinha de Antônio, filho legítimo de uma escrava, na companhia de Heitor de Sá, homem branco.202 Desde pequenos, os filhos eram estimulados a externarem o mesmo tipo de caridade com os pobres, mostrando-se bons cristãos e súditos do império. Francisca de Paula foi madrinha de vários batizados junto com o pai, Simão e o pequeno João tiveram o mesmo comportamento idêntico. 
 No livro da Irmandade do Santíssimo, existem registros de dezenas de pagamentos feitos por Chica pelo enterro de escravos seus no cemitério. Na sociedade escravista da América Portuguesa, constava, entre as obrigações de um bom cristão, garantir o acesso aos sacramentos religiosos. A Igreja procurava punir os senhores que não deixassem seus escravos irem à missa, ou negassem a extrema-unção, impedindo que estas almas fossem salvas. Proprietária de enorme plantel, Chica garantiu que eles tivessem acesso a todos os sacramentos cristãos. São inúmeros os registros de batismos, óbitos e enterros de seus escravos, nos livros depositados no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina. Como exemplo, casaram-se, na Matriz do arraial, Joaquim, pardo, e Gertrudez crioula.203 Em 1882, casaram-se seus escravos Antônio pardo e Faustina cabra, na presença de Domingos Fernandes de Oliveira, foi coadjutor e testemunha Cipriano Pires Sardinha.204 Chica foi proprietária convencional, converter os escravos à fé católica era um dos mecanismos de aculturação e acomodamento ao cativeiro e à cultura dominante. Não era grande libertadora de escravos, não se encontrando nenhum registro de alforria concedido por ela, nem mesmo para filhos de suas escravos. Como os documentos são lacunares, esta afirmação não pode ser tomada de forma absoluta, confirma, porém, o comportamento tradicional das negras forras, de manter a todo custo o patrimônio acumulado. 
                                                          
 201Id. Livro da Fabriqueira da Capela de Santo Antônio. Caixa 509, f. 17v. 202Id., op. cit., nota 27, Caixa 297. 203Id., op. cit., nota 125, Caixa 335, f. 33v. 204Ibid. 
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 Revelando cuidado com as filhas, Chica pagou para a Irmandade do Santíssimo pelo enterro de um escravo de sua filha Francisca de Paula e um de Elena.205 Parecia ser mãe cuidadosa, procurando encaminhar as filhas para um futuro seguro, que se casaram com homens livres e brancos do arraial. A proximidade dos nascimentos dos filhos, apenas onze meses de intervalo, demonstra que Chica não amamentou as crianças, utilizando-se de escravas de leite, como era o costume. A reclusão das filhas em Macaúbas também era indício de sua preocupação em criá-las da melhor forma possível e não indiferença ou desapego, como se poderia pensar, à luz dos costumes de hoje.  
 A casa de Chica ficava na Rua do Bonfim, próxima de pessoas importantes do arraial. Era uma construção sólida, ampla e arejada, constituída de dois pavimentos, com seu quintal. Anexa ficava uma capela própria, privilégio de pouquíssimos no arraial, onde mais tarde se casaram duas de suas filhas. A fachada lateral era coberta por delicada treliça, que escondia a varanda, que protegia o interior, revelando preocupação com a intimidade familiar, e garantia a ventilação. 
         Na convivência com João Fernandes, Chica teve acesso a uma cultura sofisticada e letrada. Durante a estada de suas filhas em Macaúbas, assinou vários documentos, sinal de que se alfabetizara neste período. Efetivamente, não era mais a parda, escrava e analfabeta que assinara o termo de culpa por concubinato na Devassa de 1753. 
 Outros foram os exemplos de que Chica não só se educou, como promoveu a cultura local. No arredores do Tejuco, João Fernandes possuía uma chácara que deixou para Chica, quando de sua partida para Lisboa. Nos documentos do século XVIII, a chácara foi palco de vários casamentos importantes do arraial. Joaquim Felício dos Santos afirmou tratar-se de local refinado, onde teria sido construído um lago artificial e colocado um navio, lembrando o oceano. O jardim possuía plantas exóticas, árvores transplantadas da Europa, com cascatas e fontes artificiais, que corriam entre cristais e conchas. Possuía uma capela e sala espaçosa que 
                                                          
 205DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 202, Caixa 509, f. 17v. 
 
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servia de palco para balés e peças de teatro. Ali teriam sido representadas peças de época como, Os Encantos de Medéia, O Anfitrião, Porfiar amando, Xiquinha por amor de Deus.206  
 O gosto pela construção de jardins fechados começou no período renascentista. Com alamedas, bancos, flores e árvores exóticas, era lugar favorável para os encontros, fossem amorosos, sociais ou religiosos.207 Os jardins da chácara parecem ter abrigado todos estes tipos de sociabilidades, sugerindo ter sido espaço de congraçamento e não de reclusão. Ali se realizavam os casamentos, as festas das pessoas mais importantes do Tejuco, ritos de reconhecimento social. O jardim, com seus perfumes e odores, informava a cada um dos convivas a importância dos anfitrões, que deveria ser celebrada em cada ato do seu cotidiano daquela sociedade. Só assim, Chica podia deixar o mundo no qual nascera e desfrutar do mundo dos homens brancos, porém sempre repetindo seus gestos e seus ritos. 
 
A SEPARAÇÃO E O FIM DO CONTRATO 
 
 
 Em 1770, a morte do velho Sargento-Mor João Fernandes de Oliveira, no Reino, interferiu de forma irreversível na vida do casal. Este casara-se em segundas núpcias com uma rica viúva em 1748, casamento arranjado pelo amigo, o Governador Gomes Freire de Andrade. Casamento de interesses, os nubentes estabeleceram um pacto pré-nupcial. A noiva Isabel Pires Monteiro incorporava seu rico patrimônio ao do marido; em troca, quando da morte desse, caso não houvesse filhos do matrimônio, ela retiraria da herança somente o montante correspondente à avaliação de seus bens então realizado. Porém, poucos dias antes de morrer, a madrasta conseguiu que o Sargento-Mor alterasse seu testamento, concedendolhe direito à metade de seus bens.208  
 O Desembargador João Fernandes retornou, imediatamente, ao Reino para lutar pela anulação do testamento, que feria mortalmente seus interesses econômicos. A arrematação 
                                                          
 206SANTOS, Joaquim Felício dos, op. cit., nota 19, p.124. 207RANUM, Orest. Os refúgios da intimidade. IN: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges. História da vida privada. v.3. p. 215-219. 208LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 31, Maço 1342, doc. 7. 
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dos contratos, em parceria com o pai, tornaram seus interesses econômicos indissociavelmente atados.  Nos últimos anos, o filho contribuíra enormemente para o enriquecimento do pai e via na sua herança forma de ser recompensado pela boa administração dos diversos contratos diamantíferos que administrara (4º, 5º, e 6º - entre 1754 e 1770).209 
 Foi esse o verdadeiro motivo da partida precipitada para Lisboa. A decretação do monopólio régio dos diamantes e a criação da Real Extração não eram retaliações ao contratador. Da mesma forma, a tão falada viagem do Conde de Valadares ao Tejuco para devassar secretamente os desmandos de João Fernandes e os embustes do Governador para prejudicá-lo nunca existiram, pois não há uma única referência em toda a documentação dos Governadores no Arquivo Público Mineiro, nem qualquer referência que este tivesse participação ou influência na decisão da Coroa de assumir a extração dos diamantes. Efetivamente, em julho de 1771, Pombal justificou sua decisão de dar por encerrado o contrato no final daquele ano, 
 
“por quanto pelo falecimento de João Fernandes de Oliveira, contratador que foi da Real Extração dos diamantes das minas do Brasil findou o arrendamento por ele celebrado. Devendo, por isto, parar o giro do mesmo contrato para a liquidação das contas entre ele e os seus sócios, e contar-se para este efeito o tempo do mesmo contrato na conformidade de os outros da Minha Real Fazenda. Sou servido declarar findo o atual arrendamento do sobredito contratador falecido e a sociedade dele por acabada no último de dezembro próximo futuro,  o atual administrador geral Caetano José de Sousa será conservado no Arraial do Tejuco enquanto se julgar que cumpre bem suas obrigações de que se acha encarregado.”210  
 
 
 Nada indicava qualquer suspeição de contrabando ou irregularidades. As datas confirmam que a decisão de monopolizar os diamantes ocorrera porque Pombal não podia mais contar com o João Fernandes no Brasil, retido em Portugal devido aos litígios de herança. O Desembargador voltou para Portugal no segundo semestre de 1770 e o monopólio régio só foi decretado em agosto de 1771, apenas um ano depois, quando era 
                                                          
 209LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 31, Maço 1342, doc. 7. 
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certo que a permanência de João Fernandes em Lisboa iria se alongar. A Real Extração só começaria a vigorar em janeiro de 1772, dando tempo ao administrador encarregado por João Fernandes de organizar suas contas e fechar o ano. Especialmente, permitia que as lavras fossem exploradas ainda por ele durante o período das secas do ano de 1771, que ocorria na época do inverno ( maio – setembro), época de maior facilidade de extração, pois as águas dos rios baixavam, permitindo melhor acesso ao leito. 
 Na petição enviada ao Reino João Fernandes pedindo que as providências em relação ao testamento do pai fossem suspensas, afirmou que já arrematara, em 11 de setembro de 1770, a continuidade de seu contrato dos diamantes.211 Assim que chegou ao Reino, João Fernandes pediu que o Rei impedisse uma demanda judicial em torno da herança do velho contratador, pois tais delongas trariam “irreparável prejuízo ao suplicante, e aos comerciantes interessados nos grandes contratos da sua casa.”212 Temia que uma longa permanência no Reino o impedisse de continuar à frente do contrato dos diamantes. Nas suas palavras, ele era, legitimamente, o “único herdeiro do dito seu pai, e tão capaz de continuar e finalizar os negócios de sua casa, que sendo o principal deles, o contrato da Extração dos Diamantes.”213 
 Era constante, na política pombalina, entregar negócios estratégicos do Reino a figuras da confiança e do círculo de amizade do Ministro dos Negócios, que promovera junto consigo uma elite mercantil que se enobreceu.214 A ausência de um desses elementos na condução do vital contrato dos diamantes só podia ser sanada com a já manifesta tendência da política pombalina de retomada do controle da Coroa sobre as riquezas do Reino, com a decretação de monopólios régios. Neste caso, a solução se apresentou não como a culminância de um projeto pombalino de longo prazo, mas como a reação inevitável a uma situação específica e de difícil solução. Na ausência de um homem de confiança, era preferível entregar os negócios do Reino aos administradores públicos, que estavam sendo preparados para este fim. 
                                                                                                                                                                               210Id. Núcleos extraídos do Conselho da Fazenda. Junta de Direção Geral dos Diamantes. Livro.3, p. 1 211LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 31, Maço 1342, doc.7, f. 46v. 212Ibid., f. 47. 213Ibid., f. 46v-47. 214MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal, paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 
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 Mas, nem a proteção de Pombal ou do próprio Rei foram suficientes para impedir que o processo chegasse aos tribunais. A defesa da madrasta era consistente, pois os médicos que acompanharam o moribundo Sargento-Mor e os capelães que ministraram os últimos sacramentos atestaram sua sanidade mental e capacidade para alterar seu testamento de livre vontade.215 João Fernandes não teve outra opção a não ser permanecer em Portugal, tentando mover influências para não perder a ação. Apesar das evidências da sanidade do SargentoMor, em janeiro de 1773, a sentença do Tribunal da Relação foi favorável a João Fernandes, determinando “não dever ela ser meeira nos bens do dito casal de seu marido, nem nos adquiridos, devendo só ser inteirada do seu dote.”216 A amizade de Pombal, que se estendeu ao Desembargador João Fernandes assim que ele voltou à Corte, foi, segundo a madrasta, determinante para sua vitória no processo, que era devida à “opulência de seu enteado e à proteção dos Ministros de Estado.”217  
 Três meses depois, a madrasta protestou da sentença e, novamente, João Fernandes se viu preso ao Reino, enredado nas teias do processo.218 Irado, conseguiu um despacho para trancafiar a madrasta num convento, onde permaneceu até 1778.  
 Com a ascensão de Dona Maria I, a política do Reino se inverteu e os protegidos de Pombal se viram ameaçados. A viúva aproveitou-se para enviar uma petição à Rainha, contando sua desdita. Afirmou que vivia da caridade das freiras, não tendo o Desembargador pago as mesadas anuais que lhe eram devidas. Defendeu-se João Fernandes, alegando que ela saíra de casa levando jóias e cabedais, isentando-o portanto dos pagamentos.219 
 Quando o Desembargador João Fernandes retornou à Portugal, dividiu com Chica as responsabilidades em relação à sua descendência. Demorou-se ainda no Brasil, durante o segundo semestre do ano de 1770, após a morte de seu pai, colocando ordem nos negócios da casa e da família.220 Na ocasião, Chica redigiu seu testamento dispondo seus bens entre os 
                                                          
 215 LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 31, Maço 1342, doc. 7. F. 54v-61. 216Ibid., f. 61-65v. 217Ibid., f. 101. 218Ibid., f. 66v-68. 219Ibid., doc. 7. 220Ibid., f. 45v. 
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filhos, esses certamente dados por João Fernandes e, com isso, garantindo sua sobrevivência na ausência do pai ou da mãe.221 É preciso salientar que não se tratava mais de uma escrava analfabeta, Chica era capaz de assinar seu nome, o que significava provavelmente saber ler e escrever. Assumiu o compromisso de garantir a educação e os cuidados com as filhas e João Fernandes embarcou para o Reino com os quatro filhos homens e ainda Simão Pires Sardinha, responsabilizando-se pelo futuro dos meninos.  
 As filhas permaneceram em Macaúbas sendo educadas. Com a morte do pai, em dezembro de 1779, Chica tomou as providências para levá-las para casa, com o consentimento do tutor nomeado por João Fernandes, o Sargento-Mor Manoel Baptista Landim. A partir daí, a preocupação de Chica foi garantir bons casamentos para as meninas. Rita Quitéria casou-se com o Alferes Bento Dias Chaves e tinha negócio de fazenda seca no arraial do Tejuco, além de uma casa na cidade, uma fazenda deixada pelo pai e trinta e quatro escravos.222 Porém, antes vivera, consensualmente, com o Alferes, tendo o primeiro filho sido registrado inicialmente como natural e legitimado depois do casamento. Em 1799, foi presa na cadeia do arraial de Conceição do Mato Dentro, por ordem da mesa da Vista Episcopal, pelo crime de concubinato, ali ficando mais de um ano.223 
 Em 12 de agosto de 1796, Francisca de Paula casou-se, na Ermida de Santa Quitéria do Tejuco, com José Pereira da Silva e Souza, filho legítimo de Custódio José Pereira e Maria da Silva de Jesus, natural do Porto.224 Casava-se aos 41 anos de idade e desse matrimônio não deixou filhos.225 Em 25 de agosto do mesmo ano, casou-se Mariana com o Alferes José Barbosa da Fonseca, natural do Bispado do Porto, foi testemunha o Intendente João Inácio do Amaral Silveira, revelando que Chica era capaz de estabelecer relações com as importantes figuras locais, apesar da ausência de João Fernandes, ou mesmo por causa disso. Nessa época, ela era respeitável e rica senhora de vastos cabedais e não mais uma ex-escrava ou concubina 
                                                          
 221O testamento de Chica, depositado na Arquivo do Fórum do Serro, encontra-se atualmente desaparecido. Xavier da Veiga viu o testamento e comentou-o em suas Efemérides Mineiras, p. . 222DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres. Maço 63. 1º ofício. 223SERRO. Arquivo da Casa dos Ottoni. Livro de assento dos presos da cadeia de Vila do Príncipe – 1796. f. 27v. 224DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos, op. cit., nota 125, f. 203. 225DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres. Maço 23. 1º ofício. 
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aos olhos de seus contemporâneos. Em 1806, morreu no Tejuco um dos filhos de Mariana, recém-nascido, o registro de óbito deu como causa da morte o “malino.”226  
 Ana Quitéria casou-se com José Barboza, cunhado de sua irmã Mariana, do casamento não tiveram filhos.227 Já Maria afirmou em seu testamento que “nunca fui casada e sempre vivi no estado de solteira e nele tive uma filha por nome de Maria que foi exposta em casa de minha irmã D. Ana Quitéria.”228. Em 1804, finalmente reformou a certidão de batismo, registrando-a como sua filha natural e do Tenente Agostinho José.229 Maria morreu em setembro de 1806 de complicações pós-parto, em sua casa, “com todos os sacramentos”, e foi enterrada junto de sua mãe na Igreja de São Francisco de Assis.230 Em 1806, Antônia ainda estudava em Macaúbas e Quitéria amancebou-se com o padre Rolim, com o qual teve quatro filhos.  
 Luzia casou-se com Manoel Ferreira Pinto, não deixando descendência. Quando este morreu em 1817, já era viúvo.231 Em 1808, morreram Rita e José Agostinho, este último enterrado na capela do Amparo.232 Maria, falecida em 1806, foi enterrada na Igreja de São Francisco de Assis, seu corpo foi acompanhado das Irmandades das Almas, Amparo e Mercês de que era irmã.233  
 Seu filho João tornou-se herdeiro do pai, a quem reservou 2/3 de sua fortuna, constituindo em Portugal o Morgado do Grijó.234 Casou-se com D. Anna Maria da Silva Fernandes de Oliveira, natural de Guimarães, com quem teve pelo menos dois filhos, João Germano e Lourenço João.235 Por meio do morgado, instituído em 1775, João Fernandes pretendeu continuar o processo de notabilização de sua família. Suas cláusulas retiravam da sucessão os filhos naturais de seus herdeiros, além de impedir seu livre casamento, devendo 
                                                          
 226DIAMANTINA. op. cit., nota 26, Caixa 351, f. 213. 227DIAMANTINA. Biblioteca Antônio Torres, op. cit., nota 152, Caixa 478, f. 233. 228SERRO. Arquivo do Fórum, op. cit., nota 140. 229DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos. op. cit., nota 27, Tejuco. Caixa 298, f. 11. 230 Id., op. cit., nota 26, Caixa 351, f. 279. 231Ibid., f. 88. 232Ibid., f. 307 e 316v. 233Ibid., p.279. 234LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 103, f. 75-78v.    235Id. Leitura de Bacharéis. Letra L. Maço no. A. Doc.24 
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“cuidar em que vá em aumento a sua descendência, buscando casamentos sempre melhores.”236 Porém, esse não era o caso da escolhida por João Fernandes Grijó, já que contando com a oposição de seu tutor, ele teve que recorrer à Dona Maria para honrar os compromissos com a jovem amada, pois era filha de lavradores.237 
 Em 21 de dezembro de 1779, muito doente, João Fernandes morreu em sua casa no sítio de Buenos Aires, doença agravada certamente pelos dissabores da era Mariana. O registro de seu enterro foi sucinto, tendo sido enterrado no Convento de Nossa Senhora de Jesus.238 A moléstia deixara-o tão enfraquecido que não teve forças para assinar um último adendo a seu inventário, escrito três dias antes de seu falecimento.239 O Desembargador redigira um testamento e dois complementos. O primeiro foi registrado em Vila Rica, em novembro de 1770, quando de seu retorno para o Reino e aprovado na Corte em 1774. Ali, dispunha suas principais preocupações com o destino de seus bens e instituía o Morgado do Grijó.240 O primeiro aditamento, feito dois anos depois, tinha também um caráter nitidamente econômico, descrevendo, minuciosamente, vários bens.241 A última modificação, feita às pressas na hora da morte, revelou o cristão temeroso do destino de sua alma e adquiriu uma feição mais típica da época. Eram todas pias as suas disposições finais, que determinavam as seguintes esmolas: 
“às suas irmãs religiosas; às seis criadas que em diversos místeres o serviram e acompanharam; ao recolhimento da Lapa; à Irmandade do Santíssimo Sacramento da mesma Freguesia; ao Frei Antônio das Angustias, religioso da Terceira Ordem da Penitência; a uma viúva e cinco filhos da mesma; órfãos e menores de quatorze anos; a duas donzelas para seus dotes.”242 
 
 Insatisfeito com a perda deste patrimônio, João Fernandes Grijó recorreu à Casa de Suplicação para impugnar o testamento. Seu ato escandalizou Nuno Henriques Dorta, testamenteiro do falecido e encarregado de concretizar estas últimas disposições 
                                                          
 236Id., nota 103,. fs. 75-78v 237Id. Chancelaria de Dona Maria, Livro 22, f. 294v. 238Id. Registros paroquiais. N.1, caixa 7,. Microfilme 1019. 239LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. Registro Geral de Testamentos. Livro 312. 240Id., op. cit., nota 103, Caixa. 15, Livro 75, Notas. Actual 12, f. 75-78v. 241Ibid., 12. f. 48-48v. 242Id., op. cit., nota 238, f. 11. 
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testamentárias, justamente aquelas que serviam à remissão dos pecados e benventurança dos pobres. Segundo o padre, 
 
“a idade daquele mancebo ou  a sua inconsideração, o não deixavam contemplar nos deveres da gratidão, porque aproveitando-se da extraordinária complacência do pai, para tal disposição e da régia beneficência para se constituir morgado e senhor de tão grossa herança impugnava, atropelava e infamava as disposições do pai, que eram a favor de outros.”243 
 
Cinco anos depois, após várias apelações, o testamento continuava inconcluso, pois Grijó apresentava uma série de recursos, que impediam que o testamenteiro finalizasse as contas e encerrasse o mesmo.244 José Agostinho ordenou-se padre. No morgado, o pai instituiu-lhe uma côngrua de quatrocentos mil réis anuais, devendo se estabelecer na capela do Mosteiro do Grijó, que adquirira da Coroa.245 A morte do Desembargador levou João Fernandes de Oliveira Grijó, de volta ao Tejuco, certamente levando a notícia à mãe e com a tarefa de organizar os assuntos da casa.246 Lá foi pego de surpresa pelo Alvará de Dona Maria I de 1780, que restituiu o Mosteiro do Grijó aos agostinianos.247 Era o resultado das novas investidas da madrasta em busca de sua parte na herança. Essa, aproveitando-se da Viradeira e da perseguição aos antigos aliados de Pombal, conseguiu sensibilizar a Rainha a seu favor e iniciar novas demandas judiciais pela partilha dos bens do finado Sargento Mor, a partir de 1778.248  Em 1781, Antônio Caetano e José Agostinho se apressaram a ir encontrar o irmão no Tejuco, provavelmente buscando refugiarem-se da política adversa na Corte. Em 1793, já de volta ao Reino, administrador do Morgado do pai, que reuniu consideráveis montantes emprestados a juros, Grijó ainda litigava pela herança do Sargento Mor, quando então o processo se encerrou pela morte da mulher do avô.249 
                                                          
 243Ibid. 244Id. Casa da Suplicação. Juízos Diversos. Inventários Maço 375. Caixa 2093. 245LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 103, f. 75-78v. O mosteiro tinha sido seqüestrado por Pombal dos cônegos regrantes de Santo Agostinho. 246Id., op. cit., nota 31, Maço 1078, doc. 11. 247Id., op. cit., nota 238, f. 335. 248Id., op. cit., nota 31, Maço 1342, doc. 7. 249Ibid., Maço 707, doc. 10. e Maço 706, doc. 32. 
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 Simão Pires Sardinha teve todo o apoio do padrasto para iniciar seu processo de dignificação. Concluiu seus estudos em Roma, adquiriu um hábito de Cristo e diversas tenças anuais como almoxarife do Reino.250 Em 1784, voltou para Minas na comitiva de Luís da Cunha Meneses. Esse confiou-lhe o estudo do primeiro achado fóssil na Capitania, na região de Prados. Em 1788, estabeleceu-se no Rio de Janeiro, quando da partida do Governador, e ali passou a freqüentar a Sociedade Literária. Envolveu-se na Inconfidência Mineira, mas sua participação não foi de todo esclarecida. Sabe-se que foi procurado por Tiradentes para traduzir a Coleção das Leis Constituitivas das Colônias Inglesas Confederadas sob de Estados Unidos da América Setentrional. Também foi ele que mandou avisar Tiradentes, no Rio de Janeiro, de que seria preso. Sob o abrigo do Vice-Rei Luís de Vasconcelos, retirou-se para o Reino em agosto de 1789 e ali foi inquirido somente em 13-08-1790, na qualidade de testemunha. É falso que utilizou a proteção direta de João Fernandes para escapar, pois este já estava morto. Utilizou o argumento de que achava que Tiradentes era louco, por isto ouvira-o mas não lhe dera atenção, e que se retirara para Lisboa devido a assuntos familiares. Sábio e ilustrado, retornou ao Reino em 1789, buscando minimizar seu envolvimento na Inconfidência Mineira,251 de lá ainda conseguiu uma patente de Tenente Coronel da Cavalaria Auxiliar de Minas Gerais. Em 1803, coberto de nobreza aos 50 anos,  ainda se encontrava no Reino.252  
 Tudo indica que o relacionamento entre Chica e João Fernandes só não foi totalmente convencional porque a sociedade hierárquica da época impedia a legalização de um matrimônio entre pessoas de origens e condições tão desiguais. Mesmo tendo sido omitida do Morgado, Chica esteve sempre presente nos pensamentos de João Fernandes e certamente, fortes sentimentos de afeto os unia, expressos na fidelidade que devotaram um ao outro até a morte, apesar das distâncias que os mantiveram afastados nos últimos nove anos da vida de João  Fernandes, enquanto ele resolvia as pendências relativas à herança de seu pai. Manifestou-se, também, no zelo e cuidado que tiveram com os filhos a quem procuraram encaminhar da melhor forma possível. Disposto a introduzir seus varões na Corte, o 
                                                          
 250LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 238, Livro 6, f. 314 e Livro 23, f. 23v- 24v, 25. 251AUTOS da Devassa da Inconfidência Mineira... 1978. v.1, p.190; v. 3, p. 23 e 441. 
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Desembargador sabia bem que era necessário esconder suas origens, consideradas ilegítimas e indignas por seus contemporâneos. Para isso, era preciso apagar da memória sua relação com a ex-escrava e ocultá-la, como bem demonstrou no processo de habilitação à Ordem de Cristo de Simão Pires Sardinha.  Omitir a existência de Chica em seus legados não era sinal de esquecimento ou ingratidão, mas revelava o cuidado em dignificar os filhos frente à sociedade hierárquica do Reino e com isso, mesmo à distância, cuidava de Chica, que deixara no Tejuco de posse de vastos bens, e de seus filhos, garantindo-lhes o futuro. 
 Chica morreu no Tejuco, em fevereiro de 1796, e, demonstrando o reconhecimento social que alcançara, foi enterrada no corpo da Igreja de São Francisco de Assis, cuja Irmandade era reservada e congregava a elite branca local.253 Teve ofício de corpo presente, com a presença de todos os sacerdotes do arraial, seu corpo foi também acompanhado à sepultura por todas as Irmandades de que era irmã.254 Neste ano, foram rezadas quarenta missas por sua alma na Igreja das Mercês, da qual era irmã, seguindo suas disposições testamentárias.255 
  Este trabalho procurou reconstruir a figura de Chica e inseri-la em seu tempo. Assim como as outras mulheres forras de seu tempo, Chica buscou ascender socialmente e procurou diminuir o estigma que a condição de mulata e forra que marcavam. Tornou-se rica, proprietária de escravos e bens de raiz. Mais do que tudo, cuidou de sua descendência a quem garantiu um melhor lugar na sociedade branca e preconceituosa do século XIX. Era a forma que estas mulheres tinham de retomar o controle sobre sua vida, negado pela condição feminina e escrava. Acumularam bens; transitaram entre as diversas Irmandades, independente da cor exigida para a filiação; possuíram escravos; imitaram padrões de comportamento e, assim, misturaram-se na sociedade branca onde buscavam participação, reconhecimento e aceitação. 
 
                                                                                                                                                                               252LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, op. cit., nota 238, Livro 23, f. 124v. 253Id. Livro de óbitos de São Francisco. Caixa.350, f. 55 254 Id., op. cit., nota 26, Caixa 521, f. 73v 255 DIAMANTINA. Arquidiocese. Arquivos Eclesiásticos. Livro de Missas para falecidos da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês. Caixa 520. 
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Fonte: JULIA FERREIRA FURTADO