chica da silva1

24-12-2016 11:18

Chica/Xica da Silva: Representações do mito na memória de Joaquim Felício dos Santos e no romance de João Felício dos Santos Vinícius Amarante Nascimento1 Regina Célia Lima Caleiro2 Resumo: Esta pesquisa objetivou investigar as representações memorialísticas e literárias de Chica da Silva nas “Memórias do Distrito Diamantino”, 1868, de Joaquim Felício dos Santos e no romance histórico “Xica da Silva”, 1976, do literário João Felício dos Santos a partir da utilização do conceito de representação. Busca também discutir a aproximação entre História, Literatura e Memória Histórica e com os suportes metodológicos da análise discursiva identificar as desigualdades socialmente construídas para a mulher negra que circulam no discurso do texto literário e memorialístico. Palavras-chave: História, Literatura, Memória Histórica, Representação, Chica da Silva Abstract: This study investigated the representations and literary memorialísticas Chica da Silva in “Memórias do Distrito Diamantino”, 1868, by Joaquim Felício dos Santos and the historical novel “Xica da Silva” in 1976, the literary João Felício dos Santos from using the concept of representation. Search also discuss the connection between History, Literature and Historical Memory and supports methodological discourse analysis to identify socially constructed inequalities for black women that circulate in the discourse of the literary text and memorialistic. Keywords: History, Literature, Historical Memory, Representation, Chica da Silva Introdução Objetivou-se através deste artigo analisar as representações memorialísticas e literárias de Chica da Silva na memória histórica de Joaquim Felício dos Santos (SANTOS, 1956) e no romance histórico Xica da Silva (SANTOS, 2007) do escritor carioca João Felício dos Santos. As maneiras de imaginar o “ser mulher” nas diferentes sociedades em que as mesmas se encontraram introduzidas, seja por meio das apreciações masculinas seja por meio das femininas, cunharam representações. Neste sentido, este trabalho teve como principal questionamento: Que representações de Chica da Silva foram construídas na memória histórica de Joaquim Felício dos Santos e na obra literária de João Felício dos Santos? De acordo com Furtado (2003) Chica da Silva foi uma personagem histórica nascida escrava entre os anos de 1731 e 1735 no arraial de Milho Verde, viveria no diamantífero arraial do Tejuco entre 1750 e 1779 data do seu falecimento. Sua vida se ver intrínseca a do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira no qual manteve um relacionamento assente tendo com este 13 filhos. Chica conseguiu alforria e logo buscou mudar os rumos de 442 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 sua vida, auferindo bens, tornando-se senhora de escravos, buscando comportar-se como um membro da elite tejucana. A ex-escrava mostrou desvelo pelos filhos, não medindo esforços para educá-los e inseri-los positivamente em uma sociedade excludente, demonstrando também devoção no seguimento dos preceitos católicos. O corpus documental desta pesquisa é composto por fontes impressas, um livro de memórias e um romance literário. Fontes profícuas para pesquisadores que buscam impressões de vidas, valores, anseios, sentimentos humanos e no caso deste trabalho, representações sobre a figura feminina, repleta de significados. Isso não seria possível sem o advento da História Social e Cultural como da História das Mulheres, que retiraram das fímbrias da memória aspectos importantes do universo feminino. Ressalta-se que, no estudo das representações memorialísticas e literárias se “(...) requer, necessariamente, a interpretação da forma e do conteúdo das obras, ou seja, exige que sua análise interna seja articulada aos contextos históricos e sociais” (FERREIRA, 2009, p. 83). Assim sendo, tornouse indispensável instituir uma tática para o estabelecimento da conversação entre texto e o mundo circundante. Dessa forma utilizou-se como procedimento de investigação e interpretação do documento, a análise do discurso, que visa “(...) explicitar como texto organiza os gestos de interpretação que relacionam sujeitos e sentidos” (ORLANDI, 2001, p. 26 – 27). Sobre a fonte memorialística, vale ressaltar que pode ser escrita seja a partir da investigação em arquivos, como a partir das memórias do autor, sejam elas sociais ou particulares. Como verdadeiros autentificadores de uma ideologia regionalista, muitos memorialistas não hesitaram em eternizar a história de sua região, edificando mitos fundadores, como foi o caso de Chica da Silva, inscrita na memória regional encoberta sob o véu do preconceito. A literatura nos oferece um conjunto de possibilidades para novas leituras de retentivas do passado. O diálogo entre história e literatura permite interpenetrar processos sociais e processos simbólicos. No seu ofício, o historiador urde o enredo de sua trama subjetivamente, assim como o literato, “tal como a literatura, a história, enquanto representação do real constrói seu discurso pelos caminhos do imaginário” (LEENHARDT, 1988, p.12). Os historiadores, como artífices da história, utilizam de recursos ficcionais na representação de fatos e acontecimentos, embora freados por alguma documentação. Pois, Historiador não é literário. Ainda que se escreva em forma “literária”, o historiador não faz literatura, e isso por causa do fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo, 443 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 portanto, em relação ao passado do qual é a pegada. (...) Dependência, continuando, em relação aos critérios de cientificidade e às operações técnicas relativas a seu “ofício” (CHARTIER, 2001, p. 135). A literatura não pode ser sintetizada a uma mera realização estética, mas sim como fenômeno cultural, que vem possibilitando ao historiador assumi-la como documento para as suas observações e indagações, por trazer “(...) à luz alguns dos valores, comportamentos, gestos, inclusive motivações e imaginários que serviam como guias para as ações das pessoas em cada época” (CARNEIRO, 2006, p. 15). Por historiar e registrar o movimento que o homem desempenha, suas perspectivas de mundo, suas aspirações, a literatura dá um depoimento histórico, e como tal, deve ser inquirida segundo seus atributos característicos. Dadas as mãos, história e literatura, aproximam-se das representações construídas sobre o real. A representação histórica – mítica de Chica da Silva a partir do relato fundador de Joaquim Felício dos Santos O conceito de representação está no âmago da História Cultural, pois permite compreender como os “indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade” (PESAVENTO, 2008, p. 39). Sobre a definição do conceito de representação certifica o historiador Roger Chartier que: (...) as acepções correspondentes à palavra “representação” atestam duas famílias de sentido aparentemente contraditórias: por um lado, a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepção, a representação é o instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma “imagem” capaz de repô-lo em memória e de “pintá-lo” tal como é (CHARTIER, 1991, p. 184). Assim sendo, a representação torna presente algo ou alguém ausente, pois, “representar é, (...) fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá ver uma ausência. A idéia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença” (PESAVENTO, 2008, p. 40). O fazer presente de algo ou alguém ausente se dará por mediação de uma “imagem” portadora de sentidos e significados, cuja constituição deriva de valores modelados segundo determinadas condições sociais, econômicas e políticas. A lembrança de Chica da Silva permaneceu viva na memória e oralidade de homens e mulheres no nordeste de Minas Gerais desde 1796.3 Porém, sua imagem seria presentificada, 444 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 apresentada pela primeira vez nas páginas das Memórias do Distrito Diamantino (1868) de Joaquim Felício dos Santos. Se o conceito de representação remete a “(...) uma exposição, uma reapresentação de algo ou alguém que se coloca no lugar de um outro, distante no tempo e/ ou no espaço” (PESAVENTO, 2008, p. 40), percebe-se, a partir da obra de Joaquim Felício dos Santos, a exibição de uma imagem repleta de valores de Chica da Silva que colocou-se no lugar da “outra”, da mulher setecentista que habitou no arraial do Tejuco e que encontra-se espacialmente e temporalmente distante do momento de escrita do autor. Se a imagem-lembrança de Chica da Silva residia na mente dos diamantinenses e se os fatos tidos como de sua vida passeavam pelas conversas populares através do campo volátil da oralidade, a sua imagem passaria a se solidificar com maior intensidade no imaginário social a partir da linguagem escrita de Joaquim Felício dos Santos, já que, “o imaginário social se expressa por símbolos, ritos, crenças, discursos e representações alegóricas e figurativas” (PESAVENTO, 1995, p. 24). Joaquim Felício dos Santos no ano de 1853 conduziu a repartição dos bens no rompimento da união conjugal do seu tio o tenente Feliciano Atanásio dos Santos com a neta de Chica da Silva, Frutuosa Batista de Oliveira a única filha de Rita Quitéria Fernandes de Oliveira (FURTADO, 2003). Também foi no ano de 1860 o representante legal dos legatários de Chica da Silva num processo pela posse dos haveres do contratador João Fernandes de Oliveira no Brasil (FURTADO, 2003). Ambos os processos, de repartição de bens e de ação de posses no pleito judicial, serviram a Joaquim Felício dos Santos como “(...) material inusitado para compor sua crônica colonial, pois nas horas vagas Joaquim Felício escrevia uma história da região, publicada em capítulos, entre 1862 e 1864, no jornal local O Jequitinhonha” (FURTADO, 2003, p. 265). Trata-se do primeiro jornal da cidade mineira de Diamantina, fundado pelo próprio Joaquim Felício dos Santos no ano de 1860 (DUARTE, 2010). Joaquim Felício dos Santos coadunou os vários artigos periódicos lançados no jornal O Jequitinhonha numa obra intitulada como as Memórias do Distrito Diamantino, que se tornou notória após a publicação em 1868 (FURTADO, 2003). De definida inclinação republicana, Joaquim Felício dos Santos nas suas Memórias do Distrito Diamantino não somente buscou elencar os principais fatos do cenário político da história diamantinense, mas ao focalizar a fase de exploração de diamantes no Arraial do Tejuco, ressalta a história de Chica da Silva, que inscrita na obra com feições de lenda, ganha o estatuto de personagem histórica de alcance nacional. 445 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 As representações são determinadas pelos movimentos sociais, políticos e culturais que emergem na sociedade, sendo que o relato fundador de Joaquim Felício dos Santos cria uma representação de Chica da Silva marcada pelo período histórico em que esta imagem foi concebida. Para construir esta representação Joaquim Felício dos Santos respaldou-se em depoimentos de moradores locais, em informações apreendidas nos autos processuais em que esteve envolvido enquanto advogado dos sucessores de Chica da Silva e principalmente nas suas concepções e convicções particulares, que devem ser entendidas como pontos de referência para o entendimento de sua época, já que as representações, enquanto “(...) percepções do social não são de forma alguma discursos neutros” (CHARTIER, 1988, p. 17). Como um homem do século XIX, Joaquim Felício dos Santos reconstrói a sua Chica da Silva segundo os desígnios de sua época, quando “(...) a mulher e a família deviam regrarse pela moral cristã e onde imperavam os preconceitos contra ex-escravos, mulheres de cor e uniões consensuais” (FURTADO, 2003, p. 266). Sendo que para os homens daquele tempo “(...) as escravas eram sensuais e licenciosas, mulheres com as quais era impossível manter laços afetivos estáveis” (FURTADO, 2003, p. 267). Envolto por um imaginário preconceituoso do seu contexto histórico, Joaquim Felício dos Santos não tolerava o fato de um homem branco, nababo e instruído ter uma afeição duradoura por uma escrava, parda e filha de uma africana. Assim sendo, no seu livro Memórias do Distrito Diamantino, Joaquim Felício dos Santos sob os suportes de valores europeus e cristãos como também das suas preferências pessoais desenha a imagem de Chica da Silva como uma mulher que: (...) tinha as feições grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeça rapada e coberta com uma cabeleira anelada em caixos pendentes, como então se usava; não possuía, graças, não possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, enfim não possuía atrativo algum, que pudesse justificar uma forte paixão (SANTOS, 1956, p. 161). Na obra do memorialista Joaquim Felício dos Santos, João Fernandes de Oliveira personifica a figura do senhor absoluto do Tejuco, homem arbitrário, que reprimia os moradores do arraial com sua tirania ao obrigar “(...) a elite local a se curvar à escrava opressora e dominadora, que se vestia ricamente e tinha tudo o que o dinheiro e o poder podiam comprar” (FURTADO, 2003, p. 268). Embora pejorativa e negativa, assim é a origem da primeira representação de Chica da Silva que desempenha um papel substitutivo do ausente vivido, já que a representação deve ser “(...) entendida como relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homólogo (...)” (CHARTIER, 1991, p. 184). Se a 446 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 representação de Chica da Silva possibilita uma explicação da realidade do autor que a pensou e a retratou de maneira torpe, passando “(...) a encarnar o estereótipo da mulher negra e escrava (...)” (FURTADO, 2003, p. 267). Cabe ressaltar que esta imagem foi estabelecida por um corpo de valores culturais e sociais de um dado momento, não podendo ser crivada como uma representação real ou não real, pois, “a força da representação se dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade” (PESAVENTO, 2005, p. 42). Roger Chartier explica que as representações do mundo social “(...) são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza” (CHARTIER, 1988, p. 17). Pois, ao relacionarmos o conteúdo da crônica colonial de Joaquim Felício dos Santos com a sua posição de enunciação relevante pelo seu posto de autoridade como político4 , jurista5 e romancista6 , percebemos que o seu livro de memórias, pelo alcance e circulação territorial tornou-se notório e de leitura indispensável para qualquer indivíduo que se sinta atraído a saber mais sobre a história de Diamantina. Tal obra recria uma representação feminina, tal mediatização é resultado de um discurso social masculino que não é neutro, mas, ideológico, já que, “(...) a linguagem, em seu sentido mais amplo, desempenha papel fundamental na definição e na manutenção da visão de mundo “masculina”, vigente na maioria das sociedades ocidentais modernas” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 55). Joaquim Felício dos Santos enquanto “membro da elite branca preconceituosa do século XIX (...)” (FURTADO, 2003, p. 268) descreveu Chica da Silva como uma “mulata de baixo nascimento” (SANTOS, 1978, p. 161), pois, “aquele que tem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças” (PESAVENTO, 2008, p. 41). A memória histórica de Joaquim Felício dos Santos, dotada desse poder simbólico, projetou Chica da Silva para a história. Embora, a partir dessa obra o nome dessa mulher setecentista não tenha sido esculpido na tabula monumental que perpetua a memória dos grandes heróis brasileiros. Chica da Silva tornou-se um mito que atravessou as páginas de memórias e romances, sendo transportada dos livros para o cinema, teatro, música e mais recentemente foi “popularizada” pela televisão. Mas, qualquer estudioso ao buscar a matriz de onde surgiram tantas imagens7 sobre essa personagem, certamente se deparará com o discurso oficial de Joaquim Felício dos Santos, já que o texto do memorialista marca a gênese das representações sobre essa mulher setecentista. A obra deste autor servirá de base concreta para quase tudo 447 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 que se escreverá posteriormente sobre Chica da Silva. Embora o livro de Joaquim Felício dos Santos apresente informações enganosas sobre essa mulher histórica, enquanto “relato original” e “texto fundador” foi constantemente retomado pelos autores subseqüentes, que tomavam o seu texto como “matéria prima” ou “fonte principal” para os seus escritos sobre a vida da ex-escrava tejucana. Sendo assim, os que sucederam a Joaquim Felício dos Santos na memória histórica só agregaram novos atributos à imagem de Chica da Silva, fazendo uma releitura desta mulher movidos por valores de novos tempos, pois “as representações apresentam múltiplas configurações e pode-se dizer que o mundo é construído de forma contraditória e variada pelos diferentes grupos do social” (PESAVENTO, 2008, p. 41). Diferenciando-se das inúmeras negras que eram envolvidas no mundo da desclassificação e do esquecimento, sina comum a quase todas as mulheres de sua etnia, Chica da Silva foi descrita como uma exceção, mulher sem igual nem semelhante, singular, que fez acordar emoções conflitantes nos autores que a representavam. “Bruxa, sedutora, perdulária, megera, mas também redentora e libertadora de seu povo” (FURTADO, 2003, p. 278) todas essas modalidades são carregadas de sentidos sociais e históricos, são como nos diz Sandra Pesavento imagens que “(...) se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão” (PESAVENTO, 2008, p. 41). Cabendo ao historiador da cultura traduzir, interpretar estas imagens cifradas que podem ser historicizadas, já que, foram concebidas num determinado momento histórico. A reabilitação de Chica da Silva por João Felício dos Santos: de escrava grotesca a mulata sensual Como personagem literária Chica da Silva atravessou as amarrações colocadas pelas explicações históricas, “a liberdade de reconstrução da realidade preencheu as lacunas da história com a imaginação, recurso estilístico próprio do romance e agregou outras qualidades ao mito” (FURTADO, 2003, p. 278). Se no século XIX Chica da Silva teve a sua aparência e o seu caráter infamados pela inscrição mordaz de Joaquim Felício dos Santos, no século XX a imagem de Chica da Silva será reatualizada por João Felício dos Santos, sobrinho-neto de Joaquim Felício dos Santos. Embora pareça contrário ao senso comum, é um parente de Joaquim Felício dos Santos que vai dotar Chica da Silva de características bem diferentes da imagem descrita no relato fundador. Diferentemente do seu predecessor, o célebre memorialista Joaquim Felício dos Santos, que rispidamente aponta Chica da Silva como tendo um aspecto físico desagradável; 448 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 João Felício dos Santos, na década de 1970, reabilita a aparência de Chica da Silva a exornando com muita beleza, esbanjando graça e sensualidade em seu romance (SANTOS, 2007). A Chica da Silva de João Felício dos Santos, ou melhor, a Xica da Silva com “X” de João Felício dos Santos, pois, como se justifica na nota introdutória da primeira edição do seu romance “com X, como se escrevia no tempo em que viveu” (SANTOS, 1976, nota de introdução). Mas, a mudança não se resume a uma mera modificação consonantal no nome de Chica da Silva8 , pois, ela passa a encarnar a partir dessa obra ficcional o estereótipo da mulata tentadora e irresistível, tipo feminino cobiçado pelos homens por seus atrativos sexuais e por sua acentuada beleza física e sensualidade aflorada, que são os seus grandes trunfos. A imagem voluptuosa de Chica da Silva fantasiada por João Felício dos Santos tem ligações com a própria conjuntura sócio-histórica de escrita da obra literária, a década de 1970, momento histórico de forte inquietação política e cultural, onde assisti-se mobilizações libertárias com o desejo de uma maior liberação sexual que prometia “sacudir a velha moral, o velho mundo pudico, autoritário, patriarcal, arcaico” (GUILLEBAUD, 1999, p. 176) e que progressivamente fazia desvanecer a velha armadura social que defendia uma imagem normatizada para a mulher como casta, assexuada e abnegada ao lar. João Felício dos Santos, na década de 1970, concedeu a Chica da Silva a “alforria sexual”, transformando-a na mulata fatal, luxuriosa e amoral. Esta imagem é reveladora de como o mito de Chica da Silva vai sendo modernizado de acordo com os valores dos diferentes períodos históricos, como também torna visível uma posição masculina machista que através da linguagem cria uma representação feminina sexualizada e racializada. Vale ressaltar que as representações sobre a mulata altamente sensualizada remetem aos tempos coloniais, mas cada época atualiza tais representações a sua maneira, assim como faz João Felício dos Santos. Se o movimento da Revolução Sexual da década de 1970 repercutiu para a escrita do romance de João Felício dos Santos, influência maior foi recebida da obra Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freyre que criou representações sobre a mulher negra e tornou-se um marco referencial sobre as possibilidades de pensamento de sua época. João Felício dos Santos é contemporâneo de Gilberto Freyre e ao observar o contexto de formação do romancista na década de 1930 e ao analisar a sua obra literária percebe-se a influência das idéias sobre a mulher negra e sobre a miscigenação que circulavam naquele contexto de lançamento e discussão da obra de Gilberto Freyre. Chica da Silva for transformada na mulata luxuriosa por João Felício dos Santos, tal mudança, “(...) foi justificada com o argumento da falta de documentos históricos sobre o assunto, e somente a sensualidade da mulher mestiça poderia servir como fio narrativo (...)” 449 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 (FURTADO, 2003, p. 282) de uma história insólita, venturosa, de extravagâncias e descomedimentos a história de “Xica da Silva e sua espantosa loucura” (SANTOS, 2007, p. 7). Ajustando-se ao imaginário coletivo9 do momento de escrita do autor, 10 a imagem da escrava Xica modelada no romance de João Felício dos Santos acompanha as mudanças da década de 1970, a libertação da mulher de estereótipos de submissão, compostura e reclusão no lar. Vale ressaltar porém, que João Felício dos Santos é menos influenciado pela revolução sexual feministas ocorridas entre as décadas de 1960 e 1970, do que pela tradição de pensamento sobre a mulata que remonta a Gilberto Freyre, autor esse, da mesma geração do romancista. O contexto particular dos anos de 1970 tiveram sua parcela de influência na concepção da obra, entretanto não poderíamos sobrevalorizar lutas femininas como possíveis influências de um homem talvez mais interessado em outros modos de pensar a mulher do que como um individuo livre sexualmente. Constância Lima Duarte ao descrever as lutas e conquistas femininas, ressalta a década de 1970 como um momento buliçoso que foi “(...) capaz de alterar radicalmente os costumes e tornar as reivindicações mais ousadas em algo normal” (DUARTE, 2003, p. 17), pois, começou a ser debatido neste período questões polêmicas como “(...) o aborto, a mortalidade materna, as mulheres na política, o trabalho feminino, a dupla jornada e a prostituição” (DUARTE, 2003, p. 18). A denúncia da persistência da desigualdade entre os sexos e a busca pela equiparação entre os direitos políticos e civis da mulher em relação ao homem, foi uma das reivindicações do movimento feminista neste período, que no Brasil contribuiu para que as mulheres “(...) se posicionassem também contra a ditadura militar e a censura, pela redemocratização do país, pela anistia e por melhores condições de vida” (DUARTE, 2003, p. 18). Sexualidade feminina? Aborto? Direito ao prazer? A onda levantada pela revolução erótica na década de 1970 trouxe à tona todas essas questões. Ao se erguer o mastro com a bandeira que denotava o lema o “nosso corpo nos pertence” (DUARTE, 2003, p. 18), a revolução sexual feminina possibilitou “(...) à mulher igualar-se ao homem no que toca à desvinculação entre sexo e maternidade, sexo e amor, sexo e compromisso” (DUARTE, 2003, p. 18). Mas, como argumenta Mary Del Priore, “se a revolução sexual foi, antes, considerada, uma libertação diante das normas de uma sociedade puritana e conformista – a burguesa e vitoriana – ela, atualmente promove uma sexualidade mecânica, sem amor, reduzida à busca do gozo” (PRIORE, 2006, p. 11-12). Todavia, aqui ainda cabe um questionamento: Que revolução sexual feminina foi esta? Pois, embora a mulher tenha sido parcialmente desobrigada de seguir o cânone feminino arbitrário, que exigia da mulher uma entrega oblativa à maternidade, uma sexualidade contida ao casamento e uma vida restrita ao 450 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 ambiente privado e doméstico, ainda não conseguiu se livrar dos laços de novos padrões comportamentais normativos impostos para as mulheres como também desvincular-se de uma visão masculina opressiva e tendenciosa que busca dominar os corpos e desejos femininos. Pois, Mary Del Priore questiona: Quem é essa mulher “mais livre”? Aquela que deseja, nos anos 70, viver a liberação sexual. Cada vez mais parecida com as mulheres fotografadas nas revistas masculinas, ela é extremamente provocativa. Não porque queira. Mas porque o homem assim a deseja. Conhecedora, pelo menos em tese, de milhares de técnicas sexuais, é o oposto de sua avó do início de século. Leitora ávida dos conselhos de psicólogos, médicos e terapeutas sexuais, ela domina, ou crê dominar, todos os saberes exóticos. Ela é um objeto sexual que gosta de seu papel. Alguma preocupação com o emocional ou o afetivo? Zero. O fundo musical da cena pode ser um hit da época: “I can’t get no satisfaction” do grupo Rolling Stones (PRIORE, 2006, p. 331). É neste momento histórico que o mito de Chica da Silva seria modificado. Como musa inspiradora que transporta valores presentes no imaginário social e expectativas daqueles que a conceberam e ainda como receptáculo captador dos desejos dos homens, Chica da Silva passa a ser, na década de 1970, objeto das fantasias sexuais masculinas, projeção de um tipo de mulher desbragada sexualmente, de corpo sempre disponível onde o sexo poderia ocorrer sem restrições. Pois, “(...) o corpo da mulher também é o campo de exercício do poder masculino” (SANT’ANNA, 1993, p. 13) e na obra literária Xica da Silva “(...) a voz que fala pela mulher é a voz masculina” (SANT’ANNA, 1993, p. 12) que não exprime os verdadeiros sentimentos femininos, pois, não se trata de uma mulher de carne e osso, mas, de uma imagem idealizada do que os homens querem e esperam da mulher. Pois, “longe de ser um problema recente, as relações que o eu desenvolve com seu outro, desde tempos imemoriais, têm provocado medo, segregação e exclusão” (JOVCHELOVITCH, 1988, p. 69) o que ocorre na obra de João Felício dos Santos, onde o “eu” do autor é uma voz que tenta se passar pela voz da mestiça Xica da Silva, voz que se expressa por ela, que se posiciona por ela, mas que em momento algum questiona o racismo, a existência de preconceitos ou promove a desconstrução de estereótipos. Muito pelo contrário, o discurso de João Felício dos Santos vem reafirmando determinismos raciais como um círculo vicioso de estereótipos depreciativos contra a mulher mestiça. Dessa forma o autor passa a perder a passagem para uma subjetividade feminina, como a capacidade de se pôr no lugar do outro(a), de expressarse como se fosse o outro(a) e de traduzir interiormente o outro(a) desprendido daquilo que ele é, ou seja, perde o alcance de uma positiva alteridade.11 Como um produto cultural que acompanha a sua conjuntura histórica, a obra de João Felício dos Santos tem também algo a dizer sobre a década de 1970. Sendo assim, a partir da 451 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 escrita do romance de João Felício dos Santos podemos perceber o momento histórico de elaboração da obra. Para melhor entendermos as representações de Chica da Silva na obra de João Felício dos Santos temos que estar atentos aos aspectos extra-textuais como os da produção autoral da fonte literária, ou do universo histórico-estético do autor, que são expressão de uma época e das relações sócio – culturais que o mesmo constitui como sujeito e agente histórico dentro de uma trama social. Sendo assim, o entendimento do momento de inscrição da obra como o conhecimento das influências históricas, literárias, estéticas do escritor permitem a compreensão de como as ausências são presentificadas no modo como João Felício dos Santos constrói “sua” Chica da Silva. Na linha do chamado “romance histórico”,12 a obra ficcional de João Felício dos Santos Xica da Silva de 1976, mostra-se reveladora de representações femininas que dizem muito mais do tempo de escrita da obra do que do tempo em que se busca retratar. Como um homem inserido no seu tempo, as imagens criadas por João Felício dos Santos desvelam a realidade do período em que foram imaginadas, como da sociedade que as concebeu (PESAVENTO, 2002). Sendo que, o modo como o sujeito histórico constrói estas representações é mediante sua posição sócio-cultural (CHARTIER, 1988). Assim sendo, cabe a perquisição: Quem foi João Felício dos Santos? João Felício dos Santos13 nasceu na cidade de Mendes no Estado do Rio de Janeiro no ano de 1911 vindo a falecer em 13 de junho de 1989 no mesmo Estado. Foi topógrafo, publicitário, funcionário público federal e jornalista, profissão na qual atuou por longa parte de sua vida, sendo que os seus primeiros escritos datam de 1938 (SANTOS, 2007). A compreensão da vida do autor nos permite compreender as relações de forças, já que “podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz” (ORLANDI, 2001, p. 31). Em seus romances históricos14, João Felício dos Santos buscou expor importantes etapas da história brasileira, “(...) como o ciclo minerador, a chegada da família real portuguesa, a Inconfidência Mineira, a Guerra dos Farrapos e resgata personagens que se tornaram célebres – Xica da Silva, Carlota Joaquina, Aleijadinho, Anita Garibaldi, Calabar, entre outros”, (SANTOS, 2007, p. 239) sendo que muitos destes personagens foram transportados para a narrativa fílmica, pela expressividade de suas biografias romanceadas, “(...) os livros Xica da Silva; Carlota Joaquina; Ganga Zumba (premiado pela Academia Brasileira de Letras) e Cristo de Lama foram adaptados para o cinema” (SANTOS, 2007, p. 239). 452 Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 441-464, Jul. 2015 João Felício dos Santos, embora seja um ficcionalista, não deixa de ter o real como referência (PESAVENTO, 2000), pois, existe a vontade do romancista “de fazer crer que as coisas se passaram realmente assim” (LEENHARDT, 1998, p. 43), sendo alicerce tanto do discurso histórico como do literário “a vontade de representar na linguagem os fatos e