D. Joaquina e um sonho

01-10-2013 10:28

  Entre Diamantina e o Serro em formosa baixada, cercada por um círculo de altas montanhas, ficava a fazenda de D. Joaquina. A casa principal era uma magnifica construção do século XVIII, tendo do lado do nascente uma explêndida varanda larga a que se tinha acesso por uma escada exterior. Nessa varanda estava a rede da dona da fazenda, onde, assentada ou deitada, ela administrava a casa com draconiano rigor e severa vigilância.

 Ao redor havia várias dependências: senzalas, roda d'água e engenho, fábrica de queijo e manteiga, prensa de mandioca, galinheiro, cocheiras, etc.

  A D. Joaquina tinha uma enorme escravatura e, á tarde quando voltavam do serviço acompanhados do feitor, os escravos, passavam um  a um sob a varanda e, respeitosos, tiravam o chapéu para murmurar a saudação:

 - Louvado seja Nossinhô Jesus Cristo, Sinhá!

 Alguns diziam mais abreviados ainda:

 - Soscristo, Sinhá!

 E iam tomar a refeição de tarde, composta de feijão, angu e torresmos, ás vezes acompanhados de um pedaço de carne de porco ou seca.

 Á noitinha, a dona da fazenda permitia que os negros tocassem os seus instrumentos rudes com que acompanhavam canções bárbaras e dolentes, chorando as saudações da terra africana.

 D. Joaquina era viúva riquissima. O falecido marido, Seu Bernardo, havia esquecido de uma forma curiosa, vinte anos antes, não em exploração de fazenda, porém garimpando.

 Ele e seu irmão Pedro haviam perdido tudo que tinham na procura dos diamantes, sem resultado.

 Certa tarde, voltavam do trabalho, tristemente, depois de terem gasto os últimos cobres, restando-lhes apenas o Burrinho carregado de ferramentas com que exploravam os terrenos. Vinham silenciosos. Anoitecia. Em certo trecho do caminho, o Pedro apontou para uma grande pedra que ficava abaixo, á beira do córrego:

 - Mano, vamos virá aquela pedra?

 - Qual nada Pedro, prá quê?

 - Tô cismado que ali tem coisa.

 - Num custa, podemos experimentá.

 E viraram a pedra. Por baixo encontraram um barro piçarrento, misturado de cascalho. Tomaram deles algumas pás e lavaram na bateia, no córrego próximo. Ficaram deslumbrados: os diamantes estrelaram!

 Assim enriqueceu o Seu Bernardo, mas não querendo continuar a aventura de procurar os tesouros da terra, adquiriu a fazenda com que consolidou a sua fortuna.

 Quando morreu, a mulher continuou administrando a propriedade. Lá vivia ela com alguns filhos solteiros, uma filha casada, cheia de filhos e separada do marido, Na casa próxima morava outro filho casado e a respectiva mulher.

 

                             

Foto de Erick - casarão em ruínas - Diamantina-MG

 Toda aquela família foi sempre muito supersticiosa e acreditava que os sonhos encerravam os avisos.

 O fato que se deu posteriormente veio aumentar a sua crença ingênua.

 Certa manhã a D. Amélia nora da dona da fazenda veio á procurá-la, preocupada:

 - D. Joaquina, tive um sonho muito esquisito esta noite!

 - Que foi? Pode contar, minha filha!

 - Não vê a senhora que sonhei com os escravos mataram um porco muito grande e não sabiam onde pô-lo. Eu então disse que o levassem para a tenda do ferreiro para salgá-lo lá. a Marcelina me respondeu então que não podia salgá-lo, porque não havia sal na fazenda. Fiquei muito preocupada e chamei o Demétrio a quem ordenei:

 - Monta a cavalo e vai a Diamantina buscar sal.

Mal tinha mandado, quando ouvi tropel de animal. Fui para a varanda e vi chegar o Sebastião, escravo do tio Pedro, que apeiou e foi dizendo:

 - Meu sinhô manda buscar sá qui farta lá in Diamantina

Fiquei atarantada e falei com a senhora:

 - Minha sogra, que é vamos fazer?

A senhora abriu a boca para me responder, mas, nesse momento, acordei.

- Que é que acha desse sonho, D. Joaquina?

- Não sei, minha filha, coisa boa não é. Isto de matar porco não me cheira bem.

Até a hora do almoço, as duas senhoras continuaram preocupadas com o sonho. Entretanto, se distraíram com as providências que tomaram sempre para a distribuição da refeição dos escravos e do pessoal da casa.

 Ao meio dia, foram ambas para a varanda fiar nas rocas, enquanto conversavam.

 Dentro em pouco, ouviram um grande vozerio do lado do engenho . Olhando para lá, viram o feitor com quatro escravos conduzindo um corpo em direção á casa. A nora, lembrando-se do sonho, perguntou assustada:

 - Que será D. Joaquina?

 - Não sei, parece que trazem um homem carregado.

 Quando chegaram próximo á varanda, o feitor explicou:

 - D. Joaquina, trouxemos aqui o corpo de um homem que acabou de ser assassinado na estrada. Não podíamos deixá-lo lá. Onde vamos pô-lo?

 - Valha-me Nossa Senhora! Que vamos fazer com ele?

 - Não sei, D. Joaquina, a senhora manda que eu faço logo.

 - Olha, feitor, leva-o para a tenda do ferreiro, enquanto vamos deliberar.

 - Nesse momento, entra na varanda a escrava Marcelina que diz:

 - Sinhá, a cozinha manda dizê, que não tem sal, nem prá janta.

 - Será possível? Exclama a fazendeira alarmada e acrescenta:

 - Diga logo ao Demétrio que vá a Diamantina buscar sal. 

 Mal tinha acabado de falar, quando chega ao patio um preto, a cavalo. Era o Sebastião que vinha de Diamantina. O negro chegou todo respeitoso,  tirou o chapéu de couro e foi dizendo:

 - Soscristo, sinhá. Meu sinhô manda buscá sá, qui num tem in Diamantina....

MOURÃO, Paulo Corrêa Krugger, Coincidências, Vd., pág, 4, Diamantina, 1948.