Estrada de ferro1

25-07-2015 21:57

TÍTULO DO TRABALHO: O Silvo do Progresso e o Cincerro da Tradição: desenvolvimento econômico e identidade cultural na imprensa diamantinense no início do século XX. AUTOR: James William Goodwin Junior, Doutor em História Social, CEFET-MG. RESUMO: Este trabalho parte da locomotiva como ícone do progresso tecnológico no final do século XIX e início do século XX, e sua importância para Minas Gerais. Aborda como a imprensa diamantinense acompanhou os esforços para construir a ligação ferroviária da região, as expectativas geradas pela chegada do trem de ferro, os impactos no desenvolvimento da cidade e sua relação com a identidade regional. Apresenta algumas considerações sobre a compreensão regional do conceito de progresso e a pertinência de sua discussão, bem como da possibilidade de trabalhar a memória ferroviária na cidade e na região, numa perspectiva histórica e turismológica. PALAVRAS-CHAVE: Ferrovia; Imprensa; Progresso; Tradição; Diamantina. ÁREA TEMÁTICA: 1. História Econômica e Demografia Histórica ABSTRACT: This work takes the locomotive as icon for the technological progress between the end of the 19th and the beginning of the 20th centuries, and its importance for Minas Gerais. It approaches how the Diamantina press followed the efforts to build a railroad link for the region, the expectations generated by the arrival of the train, its impacts on the city´s development and its relation to regional identity. It presents some considerations about regional comprehension of the concept of progress and the significance of its discussion, as well as the possibility of working railroad memories in the city and the region, in a historical and tourismological approach. KEY-WORDS: Railroad; Press; Progress; Tradition; Diamantina. O Silvo do Progresso e o Cincerro da Tradição: desenvolvimento econômico e identidade cultural na imprensa diamantinense no início do século XX. James William Goodwin Junior Introdução O presente trabalho retoma parte da pesquisa realizada para minha tese de doutoramento em História Social, aprofundando a reflexão a respeito do impacto de novas tecnologias sobre a percepção do espaço urbano e a identidade cultural de uma região. Especificamente, aborda a maneira como a imprensa diamantinense reagiu à expectativa da ligação ferroviária da cidade com outras regiões do estado, na virada do século XIX para o XX (a linha foi completada em 1914). A partida será dada com uma breve introdução sobre o lugar da ferrovia e da locomotiva no imaginário referente ao progresso no período, com ênfase sobre Minas Gerais. No caminho, serão abordados textos de jornais de Diamantina que tratam da chegada da locomotiva àquela região. E a partir daí, novos rumos podem se abrir à reflexão. Optei por reproduzir largas porções, ou mesmo a íntegra, dos textos analisados. O leitor poderá ter em mãos parte da documentação analisada – que dessa forma circulará para além das fronteiras locais – e poderá contrapor sua leitura àquela apresentada ao longo da argumentação. Se isto resultar num aparente excesso de transcrições, defendo-me invocando as palavras de Francisco Foot Hardman, na abertura de sua clássica obra, a qual aborda outras construções da modernidade no Brasil: Tenho consciência do relativo excesso documental presente nos textos seguintes deste trabalho. Tentei suavizá-lo ao máximo; mas o peso das fontes persiste. Não sei se seria mesmo inevitável; confesso que deriva em grande parte de uma obsessão renitente que ainda teima em roubar-me preciosas horas de sono. Gosto de viajar por textos esquivos e documentos perdidos; quisera trazê-los todos de volta à tona de nossa desrazão. Não posso; trago pelo menos alguns, vivendo a angústia imensa pelos outros que lá quedaram, esquecidos nos tonéis de tão estranhos tempos. (HARDMAN, 2005, p. 138) 1) O Progresso em Movimento: Ferrovias “Comigo é diferente, apenas vim // Pra ver o movimento que tem Barulho de trem” (Barulho de Trem, Milton Nascimento)1 Já é lugar comum associar a locomotiva e as ferrovias ao novo mundo tecnológico experimentado por pessoas nos mais diferentes lugares ao longo do século XIX. Isto não significa, porém, que o clichê não seja válido; pelo 1 As letras das canções foram copiadas do sítio oficial do cantor Milton Nascimento na internet (https://www.miltonnascimento.com.br), cuja sequencia de abertura aborda justamente os trens, o progresso tecnológico e a mudança das paisagens mineiras. contrário, eis um caso em que a banalização do uso se deve, justamente, à força representativa da imagem: para uma parte considerável da população mundial do período, a locomotiva era um poderoso signo do progresso, não apenas em si, mas por tudo que carregava consigo – literal e metaforicamente. Não admira que no campo das artes, por exemplo, o conjunto ferroviário (locomotivas, estações, estradas de ferro, o ato de viajar de trem, as tabelas de horário) tenha adquirido lugar central nos enredos literários e nas artes visuais, especialmente na fotografia – prima-irmã da ferrovia como signo, metáfora e instrumento da modernização.2 A locomotiva a vapor alterou a percepção de tempo e espaço, como também a relação entre esforço físico e movimento, de uma maneira poderosa para todos os que com ela mantiveram contato. Como diz Hardman, “com as ferrovias, muito claramente, a técnica se desgarra das formas que a produziram e assume feição sobrenatural” (HARDMAN, p. 51). A ferrovia, e especialmente a locomotiva, tornava-se, pois, uma imagem fantástica, encarnando várias qualidades que foram, ao longo do século, associadas ao que se convencionou chamar de progresso: o trabalho regular da máquina, ultrapassando os limites da força animal; a velocidade do deslocamento; a regularidade de funcionamento e a precisão do mecanismo; a criação de um sistema completo de vida, envolvendo práticas sociais, linguagem técnica, organização do trabalho, atividades complementares; e o impacto transformador da estrutura social onde se fazia presente o traçado dos caminhos de ferro. Este impacto transformador, obviamente, era limitado e condicionado por diversos fatores, como o grau de industrialização, as condições de florescimento de atividades associadas, como a siderurgia; sua vinculação a outros sistemas de transporte; e o uso que se poderia fazer da própria ferrovia, para escoar produtos de exportação, para dinamizar mercados de abastecimento, para transportar mão de obra. A locomotiva, por si só, não poderia provocar uma revolução industrial. Isto não impediu que fosse vista e descrita, em diferentes lugares e línguas, como a figura-síntese do progresso material e tecnológico. Não à toa, tanto aqueles que advogavam mudanças, quanto aqueles que procuravam resistir a elas viam a construção de estradas de ferro como um sinal de que as antigas formas de vida estavam com os dias contados. Entre os maiores defensores e difusores de uma cultura do progresso estavam aqueles que, por força de sua condição social ou por outras possibilidades construídas ao longo da vida, tinham na cultura formal, no manejo das palavras e das letras, o instrumento com o qual construíam sua inserção social. São aqueles que, na expressão de Angel Rama, compunham uma ilha letrada num mar de iletrados (RAMA, 1994). No Brasil de fins do século XIX e início do XX, são homens, em sua maioria, bacharéis muitos deles – em Direito ou Medicina, 2 Para uma introdução à relação da ferrovia com a literatura inglesa, ver LANDOW, 2012; para a literatura brasileira ver, por exemplo, a coletânea realizada por ocasião do 17º aniversário da Rede Ferroviária Federal (VELHO, 1974). Para os primórdios da atuação de fotógrafos em Minas Gerais, ver CHRISTO, 1995; para um importante fotógrafo de Diamantina, ver ALKMIM, 2005. e cada vez mais em Engenharia; atuando em instâncias do Estado, em diferentes níveis; e também, ao mesmo tempo ou não, em instituições ligadas à área cultural, como escolas, teatro e a imprensa. Na Europa, a imprensa havia se transformado num importante instrumento de transmissão de ideias, de defesa de modos de vida, tanto diretamente, através de editoriais e artigos de fundo, como de maneiras mais sutis, noticiando eventos e comentando situações. No Brasil, a partir principalmente da segunda metade do século XIX, a circulação de jornais tornou-se um dos critérios para definir a qualidade da vida intelectual de uma localidade. A página impressa era, assim como a locomotiva e a máquina fotográfica, demonstração e indução, sintoma e causa, da modernidade e do progresso. Os “homens de imprensa” assumiam, assim, um papel amplo de representação da civilização moderna. A eles competia traçar os contornos do progresso: o que era e o que não, como poderia ser implementado no Brasil, qual o tipo de comportamento adequado, que hábitos precisavam ser abandonados, quem estava dentro e quem estava fora, e o que se deveria fazer a respeito. O papel era amplo, em dois sentidos – primeiro, porque duplo, já que a imprensa era ao mesmo tempo, símbolo e guardiã do progresso; segundo, porque o mandato (auto)conferido às redações abarcava toda e qualquer esfera da vida, da política econômica do Estado às minúcias da vida privada. Aos homens de imprensa cabia, pois, educar a população – elites, inclusive – a viver sob os preceitos da ordem e do progresso. Tarefa que a imprensa mineira assume com orgulho. 2) Minas Gerais e os caminhos do Progresso “A plataforma desta estação é a vida desse meu lugar” (Encontros e Despedidas, Milton Nascimento e Fernando Brant) Ao se considerar o folclore sobre Minas Gerais consolidado ao longo do século XX, os mineiros desenvolveram uma ampla e íntima relação com o trem. Todavia, um exame mais acurado da história ferroviária mostra que as coisas não foram tão simples, nem a ferrovia se fez presente em todo o território mineiro. Embora a implantação da ferrovia no Brasil não seja tardia, quando comparada a outras regiões da América (a primeira linha foi construída em 1854), apenas em 1869 foi inaugurada a estação de Chiador, a primeira em território mineiro da Estrada de Ferro D. Pedro II. Poucos anos depois, em 1876, o primeiro ramal ferroviário chegava a Juiz de Fora, principal cidade da mais dinâmica região da província. Em pouco tempo, o novo modo de transporte alavancou ainda mais a cafeicultura na Zona da Mata, favorecendo também outras atividades econômicas que ali existiam, ou que passaram a existir a partir da ligação ferroviária com a capital do país. A ferrovia assegurava o transporte de quantidades maiores de produtos e pessoas, num tempo menor, com menos imprevistos – embora a ocorrência de acidentes não fosse algo incomum. As elites letradas de Juiz de Fora, e com visível intensidade, os homens de imprensa, transformaram o discurso sobre o progresso numa apologia ao desenvolvimento econômico – e também moral, social, intelectual. E também ali, como em outros lugares, um dos sinais mais concretos da força do progresso era a ferrovia: O homem é o progresso e o progresso nasce do homem. O progresso, com certeza e sem questão, é o motor mágico e poderoso, que desde os tempos primários, encarnado na humanidade empreendedora tem operado de século para século as mais espantosas e gigantescas maravilhas, tocando a maior perfectibilidade até o nosso século, a ponto de fazer surgir de pequeníssimos lugares, grandes vilas; destas, opulentas e importantes cidades; e de seus habitantes, numerosas famílias, que espalhadas convenientemente sobre a face do globo, formam presentemente vastos impérios e magníficos reinos. [...] Ao vermos os robustos braços dos operários infatigáveis do trabalho desenrolarem os pesados trilhos de ferro, através de elevadas montanhas, de extensas e frondosas matas e verdejantes campinas, que se perdem ao longe, fazendo com que a locomotiva vença em pouco tempo as maiores distancias, soltando de quando em quando esse estridente silvo do progresso, que tanto nos entusiasma... Quem deixará de aplaudir e bater palmas ante essa invenção maravilhosa, sem que bendiga o criador de um melhoramento, quase universal, que produz tão benéficos e profícuos resultados? ... Ninguém. (Pharol. 21.out.1877) A malha ferroviária era considerada essencial para romper o isolamento dos produtos juizforanos. A ferrovia foi louvada de muitas formas, até poemas foram escritos para ela, como “A mantiqueira saúda a locomotiva”, publicado no jornal Pharol em 17 de março de 1878. Essa euforia não era encontrada apenas nas redações de Juiz de Fora: Olympio de Araújo, correspondente de Rio Novo, ao noticiar a chegada da locomotiva àquela localidade, soltou as asas da imaginação, numa linguagem rebuscada e enfática da relação entre o trem de ferro e o novo tempo que se inaugurava: [...] o resfolegar do pégaso do progresso nos exprimiu ainda a adesão, a simpatia e o desejo ardente á nossa causa, revelados pela vizinha e culta Juiz de Fora, que, representada pela suma de sua sociedade, nos vinha dizer: Rio Novo! desperta do sono mórbido em que te exaures e vem receber o ósculo do trabalho inteligente e profícuo, que faz a minha gloria! [...] Confraternizemo-nos e associemo-nos à laboriosa e gentil Juiz de Fora, imitando o seu raro exemplo de amar o progresso. (Pharol, 06.mar.1888) Em 1884, a Zona da Mata concentrava 602 dos 1006 quilômetros da malha ferroviária mineira (BLASENHEIM, p. 89). Entretanto, investimentos pesados haviam sido feitos também em outras regiões mineiras. Na década de 1870 foram garantidas as concessões para uma estrada no Oeste mineiro, tendo São João d`El-Rey como ponto de partida; a formalização na primeira sociedade anônima em Minas Gerais deu-se em 1878, quando foi criada a Estrada de Ferro Oeste de Minas – EFOM (LIMA, p. 72). Esta estrada foi muito importante para a expansão das fronteiras econômicas e para a integração regional de Minas Gerais. Em 1888 a EFOM inaugurou a estação de Ribeirão Vermelho, a partir da qual iniciava-se uma “seção fluvial” da estrada, com vapores navegando o Rio Grande, interligando as terras que compunham sua bacia hidrográfica à rede ferroviária.3 O advento da República, como apontou John Wirth, fez da ferrovia o instrumento que realizaria a plena integração e o pleno desenvolvimento de Minas Gerais. De fato, a experiência republicana em Minas foi baseada na integração através de ferrovias. Desdobrando-se aos pontos cardinais, as linhas novas e projetadas supostamente valorizariam a terra, atrairiam os imigrantes, estimulariam as economias locais e acelerariam a produção de bens; em suma, uma repetição da bem-sucedida história norte-americana, agora esperançosamente facilitadas pelas novas instituições federais. (WIRTH, p. 105)4 A construção da nova capital, a Cidade de Minas, no lugar do Arraial do Belo Horizonte, tornou ainda mais premente a expansão da rede ferroviária na região central do Estado. A imagem-símbolo do século XIX, a locomotiva, representa a mobilidade, a circulação, a chegada da “civilização”, a viabilidade mesma do empreendimento de se construir uma capital a 600km do Rio, em pleno sertão das Minas Gerais [...]. (SALGUEIRO, p. 122) Todo esse movimento de expansão ferroviária despertou esperanças nas cidades localizadas mais ao norte mineiro, que há muito se ressentiam de uma melhor ligação com as regiões centrais do Estado e com o litoral. 3) Diamantina: a ferrovia como antídoto ao atraso “Todos os dias, toda manhã // Sorriso aberto e roupa nova Passarim preto de terno branco // Pinduca vai esperar o trem” (Roupa Nova, Milton Nascimento e Fernando Brant) Desde os tempos do Arraial do Tejuco, centro do antigo Distrito Diamantino, sua ligação com outras regiões era tema central no conjunto das preocupações, quer dos administradores regionais, quer para a população local.5 No final do século XIX, as ligações entre Diamantina e arredores, e entre estradas, comércio e desenvolvimento, apareceram com muita clareza e urgência na longa campanha que se fez pela construção de um ramal ferroviário que conectasse a região à malha ferroviária estadual e nacional. Nos últimos anos do Império ocorreu uma negociação para a concessão, a uma firma europeia, da construção de um ramal ferroviário, o qual partiria de 3 Para uma análise dessa “seção fluvial”, e da navegação como sistema de transporte no Sul e Oeste mineiros, ver MARTINS, 2012. 4 Na comparação com os EUA, as ferrovias em Minas Gerais não parecem ter realizado seu papel de indução do progresso. John Wirth afirma que as estradas de ferro mineiras, por vários motivos, “não produziam um impacto maciço nos fatores de produção” (WIRTH, p. 104). Peter Blasenheim destaca que a maior parte das linhas férreas mineiras acompanhou a expansão das áreas cafeeiras, ao contrário do que ocorreu nos EUA, “onde as ferrovias frequentemente precediam a fronteira econômica”, (BLASENHEIM, p. 88). 5 O empreendimento turístico conhecido como “Estrada Real” deu visibilidade à história dos caminhos que, desde o final do século XVII, ligavam a região de Diamantina à Bahia, ao centro de Minas Gerais e ao Rio de Janeiro. Vitória, capital da Província do Espírito Santo, e chegaria a Diamantina, passando por regiões do nordeste e leste mineiros. Assim seria criado um corredor de escoamento da produção para o litoral. Todavia, a mudança de governo, ocasionada pela proclamação da República, pôs fim às negociações. Ao final da primeira década republicana a campanha tomou nova feição. Um esforço orquestrado, no qual a imprensa teve papel de destaque, tanto noticiando os avanços e vitórias quanto articulando e incentivando ações em prol do assentamento dos trilhos de ferro. É nesse contexto que se publica uma carta enviada ao Presidente da República, pedindo o “prosseguimento dos trabalhos de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil” em direção a Curvelo: As vantagens que advirão para toda a rica, vasta e populosa região norte-mineira, com a chegada da Estrada de Ferro Central a Curvelo, são patentes. // Uma população civilizada e laboriosa, constante de mais de um milhão de almas, e que habitam os municípios de Curvelo, Diamantina, Serro, Guanhães, Peçanha, Minas Novas, S. João Baptista, Bocaiuva, Montes Claros, Grão Mogol, S. Francisco, Januária, Arassuahy, Salinas, Tremedal, Rio Pardo, Theophilo Ottoni e muitos outros, terão suas comunicações, seu movimento comercial, sua atividade industrial e progressiva sensivelmente melhorados com a facilidade de comunicações do Curvelo aos pontos servidos pela Estrada de Ferro Central. [Carta assinada na Cidade de Minas, capital, a 20/02/1898 por uma longa lista de “filhos do Norte de Minas”, entre eles Pedro da Matta Machado, Carlos H. Benedicto Ottoni, Francisco Sá, Antenor Horta, Pedro Brant, Gustavo Affonso Farnese] (Cidade Diamantina, 20.mar.1898) Com a inauguração da estação ferroviária de Curvelo, em 1905, uma nova opção de trânsito foi aberta para Diamantina. Seculares rotas, como a do Mendanha, ou a que seguia em direção ao Serro e daí ao centro mineiro, seriam gradativamente substituídas por um novo trajeto. Em 1907, o jornal O Norte saudava a criação de uma empresa de transportes de cargas e passageiros ligando a região de Diamantina ao recente ramal ferroviário em Curralinho (atual Corinto) – e alertava para os problemas que esse empreendimento poderia enfrentar: Nós que sabemos avaliar os grandes benefícios que à indústria da mineração e ao comércio de extensa zona do norte do estado advirão de um regular e bem feito serviço de transporte daqui para o Curralinho, sem medo de contestação, afirmamos que melhor emprego não pode ter o dinheiro do Estado [...] (O Norte, 14.mar.1907) Noticiando este melhoramento notável que o Norte alcançou pela iniciativa particular, devemos lembrar ao governo do Estado a conveniência de dispensar à empresa dos srs. Almeida & Comp., alguma proteção e favores que assegurem a permanência de um serviço que é tão necessário. Esses favores não seriam difíceis de realizar e podiam consistir em reparos de que carece a estrada e obtenção de chegar a Curralinho diariamente o trem de passageiros. (O Norte, 17.jul.1907) Conforme os textos publicados na imprensa, a solução definitiva para esses problemas seria um tronco ferroviário que ligasse Diamantina ao restante do mundo. O fracasso do projeto “Vitória-Diamantina” exigiu buscar outras direções. Por intervenção do governo do Estado de Minas Gerais, Diamantina passou a compor o vasto território a ser ligado à rede ferroviária da Central do Brasil. Em 1908, foi publicado na imprensa local um telegrama do senador diamantinense Pedro da Matta Machado: “presidente do Estado ordenou construção estrada de ferro econômica de Curralinho a Diamantina, bitola 60 centímetros. ’’ A mesma edição noticiou a festiva passeata que ocorreu, com banda do 3o Batalhão e vivas ao Presidente do Estado, Julio Bueno Brandão, e ao Dr. Juscelino Barbosa (A Idéa Nova, 06/12/1908). Natural da região, este ocupava a pasta de Finanças e era o autor da proposta aprovada, recebendo grande reconhecimento por sua atuação no processo. Sr. Redator // Parabéns a Diamantina. // A justa aspiração do povo diamantinense será agora convertida em realidade. A Diamantina vai ser dotada com uma estrada de ferro, graças aos esforços do ilustre nortista que dirige a pasta das Finanças. O dr. Juscellino Barbosa assinalará a sua passagem pelo governo, dotando a Atenas do Norte, com esse melhoramento, cuja necessidade palpitante ele ha muito reconhece. [de Belo Horizonte, um “Patrício e amigo”] (A Idéa Nova, 06.dez.1908) A “Atenas do Norte” poderia agora se ligar ao restante do Estado e do país.6 Tal expectativa gerou nas elites locais a esperança, expressa pelos homens de imprensa, de que a ferrovia viesse a ser o meio pelo qual o progresso e o desenvolvimento chegariam definitivamente à região, resgatando-a da decadência a que parecia condenada: Ramal Curralinho-Diamantina // Felizmente dentro em pouco será uma esplêndida realidade a antiga aspiração que sempre nutriu a Diamantina de ver-se ligada aos centros cultos do Brasil, por uma viação rápida e cômoda. [...] Em dois anos no máximo, a locomotiva fará ouvir nestes serros alcantilados o silvo promissor do progresso. // Então a Diamantina, que infelizmente ia definhando numa cruel agonia, despertará forte, viril e rediviva. // O sr. Julio Bueno Brandão e o dr. Juscelino Barbosa serão credores eternos do reconhecimento e da gratidão de todo o povo do Norte de Minas, que sempre verá nos dois ilustres mineiros os grandes propugnadores de um melhoramento tão importante, que sem ele esta zona se transformaria em breve num cemitério de ruínas. [...] (A Idéa Nova, 13.dez.1908) Tal entusiasmo pelo “silvo promissor do progresso”, acordando o “cemitério de ruínas”, explica a regular publicação de notícias sobre o encaminhamento do processo e o acompanhamento das etapas da construção. Um exemplo, entre muitos que foram publicadas por vários jornais, criando um clima de irreversibilidade do progresso citadino: A 27 de Julho foram entregues ao tráfego da estrada de ferro Victoria a Diamantina mais 26 quilômetros de linha construída, sendo inaugurada a estação Accioly. // Já estão em tráfego 117 quilômetros, devendo inaugurar-se neste mês o trecho de Baunilha. (A Idéa Nova, 05.ago.1906) Nesse espírito, o jornal A Idéa Nova iniciou, a partir de janeiro de 1909, intenso combate editorial com jornais de Curvelo, acusados pela folha diamantinense de liderarem um levante contra o início das obras do ramal Curralinho – Diamantina. Este ramal era tratado pela imprensa local num tom quase escatológico: “tal melhoramento (que é a nossa única salvação)” – o grifo é do próprio texto (A Idéa Nova, 04.abr.1909). Daí entende-se a urgência e a decepção atribuída à comunidade, que esperava do Governo do Estado fosse construído o ramal férreo ligando a cidade até a Estrada de Ferro Central do Brasil (Pão de Santo Antonio, 03.abr.1909). 6 “Atenas do Norte” era um dos epítetos que as elites letradas regionais utilizavam para designar Diamantina, construindo, junto com a memória de outros tempos, uma imagem de fausto e exuberância cultural. A cidade possuía diversas instituições de ensino, atuando como polo educador no norte-mineiro, e uma constante presença de estrangeiros, inclusive residentes, o que gerava interessante intercâmbio cultural. Dadas as possibilidades de desenvolvimento que a ferrovia parecia trazer, o seu traçado passou a ser tratado como a diferença entre o progresso e o esquecimento, sendo alvo de intensas disputas. Além do suposto levante curvelano contra o ramal – que poderia libertar toda a região em torno de Diamantina da vinculação à cidade, tão bem vista em 1898 – houve esforços por parte de diferentes comunidades para serem incluídas no projeto. Em carta ao “Ilm. e Exm Sr. Doutor Juscelino Barbosa, D. D. Secretário das Finanças do Estado de Minas Gerais”, o Padre José Maria dos Reis, Vereador Municipal do Peçanha, escreveu sobre a ligação de S. Maria do São Felix ao Ramal Diamantina, pela estrada do Gavião. A linguagem empolada, resquício das práticas literárias de antanho, embala o pedido de auxílio à sua região: “[...] O auspicioso empreendimento, a obra momentosa, para cuja realização tanto vos esforçais, virá, incontestavelmente, rasgar novos horizontes, aclarados pela luz pura do bem, marcando para a nobre Diamantina e para o vasto norte mineiro uma fase nova de vida, formando um centro seguro de atividades práticas e de movimento ressurgidor das riquezas naturais que se espalham por essa vasta região, máxime nesta zona privilegiada das opulentas matas do Suassuhy.” (A Idéa Nova, 30.mai.1909) A assinatura, pelo Governo Federal, do decreto que modificava o traçado da Vitoria-Diamantina para incluir a estação de Curralinho (Corinto) na Estrada de Ferro Central do Brazil-Diamantina foi motivo de grande comemoração (A Idéa Nova, 18.jul.1909), como também oportunidade para debochado acerto de contas com desafetos, ironizando as promessas vazias que teriam sido feitas quando a ferrovia estava distante. O texto utiliza-se do telefone, melhoramento recentemente implantado, outro sinal visível da civilização que a ferrovia viria consolidar: E. F. Diamantina // Conversa ouvida no telefone: - Triin... triin... triiiiiiiiiinn... - Alô! - Alô! - Quem fala aí em Datas? - Sou eu A. C. - Já soube do contrato da estrada? - Já. Este arraial está em festas. - E aqui também há um festão! - Ouve lá. O Manoelzinho ainda oferece o túnel? - Qual! Já desistiu. Também o L. A. já não dá mais os dormentes... - Pudera! - Bem. Até logo! - Até logo! Abelhudo. (A Idéa Nova, 18.jul.1909) Textos como esse nos lembram de que o deslumbre com o progresso não impedia certo olhar crítico, o qual em alguns momentos chegava a ser irônico. Comentando as primeiras experiências de implantação do sistema telefônico em Diamantina, um articulista anônimo do jornal A Idea Nova revela-nos os limites da transferência dos sinais visíveis de civilização: Panaceia municipal [...] Pois senhores, se Oswaldo Faria descobriu a transformação das correntes sucessivas em simultâneas, se Santos Dumont resolveu o problema da dirigibilidade dos balões, não os invejamos nós filhos de Diamantina. As dificuldades que outros procuram resolver com medidas múltiplas e diversas, nós afastamos de um golpe, empregando um só remédio e pouco dispendioso – telefones. [...] Assim, se os habitantes do Rio Grande fizerem o seguinte requerimento: “Illm. E Exm. Sr. Agente Executivo Municipal. // Nós, moradores do Rio Grande, nesta cidade, vimos pedir a V. Exa. se digne baixar suas vistas ao péssimo estado das ruas deste bairro e á falta de iluminação, que nos priva de transitar à noite sem risco iminente de deixarmos uma perna nos profundos fossos, que armam ciladas á distração dos transeuntes.” Será este o despacho: “Sim. Oportunamente se instalará no Rio Grande uma estação telefônica”. (A Idéa Nova, 07.abr.1907) Havia, portanto, entre os próprios homens de imprensa, a consciência de que alguns artefatos tecnológicos apenas não eram suficientes para tornar a região plenamente desenvolvida. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, à ferrovia era atribuída a capacidade de carrear transformações, pois não era apenas mais uma máquina, e sim o vetor de um novo tempo. Isso explica a intensa cobertura realizada pela imprensa local do progresso da obra: telegramas de felicitações pela aprovação do ramal (A Idéa Nova, 01.ag.1909); propostas de modificações no trajeto – como as que evitariam túneis e cortes na Estrada de Ferro, além de criar uma estação na conjunção das estradas entre Melancias, Cafundós, Riacho, Santa Barbara e Curimatahy, projeto do “sr. dr. J. Pettersen” (A Idéa Nova, 01.mai.1910); propostas de expansão da linha férrea por todo o norte de Minas, ligando-a a Vitória e à Bahia para gerar desenvolvimento e uma nova linha de escoamento (A Idéa Nova, 22.mai.1910); notícias sobre outras vias férreas ou de rodagem, além das várias notas sobre o andamento da construção, como a inauguração da Estação Figueira da Estrada de Ferro Vitória-Diamantina (A Idéa Nova, 21.ago.1910). As inaugurações de estação, aliás, eram sempre momento de festejos, e serviam para manter a mobilização da cidade e a expectativa das melhorias que viriam para a região: Ramal Curralinho-Diamantina // Na semana passada inaugurou-se solenemente, com a presença do ministro da Viação, dr. Francisco Sá, e de varias pessoas gradas, a primeira estação da estrada de ferro de Diamantina, na Roça do Brejo. // A Câmara Municipal de Diamantina foi representada pelos sr. senador Pedro Matta e Theodulo Leão, representando este ultimo também “A Idéa Nova”. // Inaugurou-se também a estação de Pirapora na Central do Brasil e no quilômetro 864, foi batida a primeira estaca do ramal de Montes Claros. // No dia da inauguração realizou-se uma importante passeata pelas principais ruas desta cidade, promovida pela Comissão Popular. (A Idéa Nova, 05.jun.1910) Antes mesmo de seu funcionamento, o ramal já trazia vantagens à cidade, como a nomeação do “ilustre conterrâneo e amigo T.º C.ol José Augusto de Menezes, para o cargo de agente da Estação da E. de Ferro nesta cidade” (Diamantina, 29.nov.1913). Em meio a essas festejadas notícias, algumas notas dissonantes, como as denúncias sobre a exploração dos trabalhadores empregados na construção do ramal pelos empreiteiros (A Idéa Nova, 03.abr.1910), causada, aparentemente, pelo pouco pessoal trabalhando, o que ainda tinha o inconveniente de atrasar os trabalhos (A Idéa Nova, 31.jul.1910). Assim, a cidade teve que esperar ainda alguns anos antes de poder ver a locomotiva “entrar triunfalmente no largo de D. João, mensageira de uma época que deve necessariamente ser a da nossa renascença”: Vai-se agora, porém, realizar o sonho. // Dentro de um mês, pouco mais ou menos, o silvo agudo da locomotiva despertará os ecos da serra; a cidade recebe-la-á em galas, em meio da mais justa expansão de jubilo, e o estourar dos foguetes e o espocar do champangne marcará o momento solene da grande conquista do povo, da reivindicação de um nosso indubitável direito. // E a Diamantina nesse dia homenageará ao Dr. Sá, não mais, talvez, com uma taça de ouro... mas numa das praças desta cidade, n’um arroubo de gratidão e romantismo, erguerá um busto de bronze que perpetuará o mérito da sua grande obra, o seu amor pela terra natal. (Diamantina, 29.nov.1913) 7 Querendo realizar o “sonho, do qual a Diamantina nunca mais acordava”, as notícias criaram uma contagem regressiva, na expectativa da chegada da locomotiva, a qual já se podia ouvir da cidade. Ramal de Diamantina // Acham-se bastante adiantadas as obras da estação da nossa via férrea, que fica situada no largo de D. João, sendo de esperar-se que muito breve estejam concluídas. // A ponta dos trilhos acaba de chegar bem perto do Arranca-Rabo, lugarejo que dista apenas 4 quilômetros desta cidade. // Consta-nos que a Estação do Guinda será inaugurada brevemente. // Do largo de D. João e outros pontos da cidade, já se ouve distintamente o silvo da locomotiva. (Diamantina, 29.nov.1913) A inauguração da Estação do Guinda em 15 de dezembro de 1913 foi celebrada com festas e vários discursos (Diamantina, 20.dez.1913). A iminente chegada da locomotiva levou a imprensa local a sonhar novamente, convidando a população a transformar o evento num motivo para melhorar a cidade: Embelezamento da cidade [...] Para recebermos a estrada de ferro, que sempre foi o sonho doirado da nossa vida de cidade, é mister que preparemos as ruas, capinadas e limpas, principalmente as ruas centrais (como Bonfim, que é uma praça que facilmente se embeleza com algumas fileiras de magnólias, ou quaisquer outros arbustos) e que asseiemos o exterior das nossas casas para dar à cidade o aspecto que alegra e encanta ao viajante, que aqui aporta sem supor que pisa uma cidade civilizada [...] Aí na Praça do “Sonho” a iluminação deve ser perfeita, com a distribuição de diversos focos, que projetem luz aos quatro cantos da praça. // É necessário, enfim, por mãos à obra, pois já é tempo de cuidar nos preparativos para a recepção dos nossos ilustres hospedes. (Diamantina, 06.dez.1913) A realização do “sonho doirado da nossa vida de cidade”, o grande dia da abertura da “Avenida Esperança”, mereceu tratamento especial pelo jornal A Estrella Polar. A primeira página em 03 de maio de 1914 veio encabeçada pelos dizeres “Deus te proteja, Diamantina” e o subtítulo “Homenagem aos benfeitores, a quem Diamantina deve hoje a Estrada de Ferro, aos ilustres hóspedes que nos visitam, aos diamantinenses todos’’. Numa demonstração visível da importância daquela edição, o texto é entremeado por clichês de fotos do “Dr. Francisco Sá, ex Ministro da Viação e atual Senador Federal”, do “Exmo. Sr. Coronel Julio Bueno Brandão DD. Presidente do Estado de Minas”, do “Dr. Juscelino Barbosa ex Secretário das Finanças do Estado de Minas e atual Presidente do Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais” e do “Dr. Nilo Peçanha ex Presidente da República e atual Senador Federal” (A Estrella Polar, 03.mai.1914). 7 O busto foi efetivamente erguido, e esteve em uma praça central da cidade até 2007, quando foi retirado pela Prefeitura Municipal, dentro do Programa Monumenta de revitalização das áreas centrais da cidade. Mais à frente, em outra página, foi publ