Estrada de ferro2

25-07-2015 21:58

Mais à frente, em outra página, foi publicada a lista de uma “Subscrição para a aquisição do busto de bronze do benemérito Dr. Francisco Sá”; entre as contribuições encontram-se as da “Redac. Estrela Polar 20$000”; “Motta & Cia. 50$000”, depositários da arrecadação; “Redação da ‘Diamantina’ 50$000”; “Exm. Sr. Arcebispo 50$000” (A Estrella Polar, 03.mai.1914). E já preparando-se para a utilização prática do novo serviço, havia também um quadro com o “Horário a vigorar entre as Estações de Curralinho a Diamantina, da Estrada de Ferro Curralinho a Diamantina” . A saída de Corinto ocorria às 7h, com chegada em Diamantina às 13h55min, parando nas estações em Roça do Brejo, Santo Hipólito, Rodeador, Riacho das Varas, Paraúnas, Guinda. A saída de Diamantina também ocorria às 7h, mas a chegada em Corinto demorava pouco mais, sendo às 14h. O quadro era assinado por “Joaquim Leite Junior // Superintendente” (A Estrella Polar, 03.mai.1914). 4) A ferrovia, o progresso e a tradição “Pedra, padre, ponte, muro // e um som cortando a noite escura // colonial vazia pelas sombras da cidade // hino de estranha romaria // lamento água viva” (Beco do Mota, Milton Nascimento e Fernando Brant) O progresso traria as “luzes da civilização” e seus sinais visíveis – os aparelhos urbanos, os artefatos tecnológicos, a escola, a moda e os comportamentos citadinos. A chegada da ferrovia era o marco de uma nova era, isso era consensual na imprensa diamantinense. Mas, então, o que fazer com o tempo anterior, tão marcante na memória local, e tão visível ainda em construções, crenças e costumes? Na Zona da Mata, o discurso das elites letradas sobre o progresso parecia ser unânime e inequívoco: o progresso era a missão a ser realizada, era o objetivo a ser alcançado; o passado deveria ser apenas a memória dos esforços feitos para atingir tal fim. O Século XX // Comemorando a aurora do século XX o “Jornal do Commercio” presta, com o numero de hoje, um tributo devido aos que têm sido os obreiros do progresso desta nobre e generosa terra. // Em rápida síntese, o “Jornal” de hoje consagra o resultado proveitoso que a atividade humana colheu, na metade do século, neste vale fecundo do Parahybuna. [...] O século XX encontra esta zona de Minas transformada em centro de luminosa civilização; e, entretanto, há apenas meio século que o trabalho humano abre nestas terras o sulco indelével de sua ação. // Tem sido forte a geração que aqui vai imperando, e que, por isso, merecerá a consideração dos pósteros. // Que os homens do século XX sejam herdeiros desse poder de iniciativa, dessa emulação vigorosa, dessa energia de vontade e dessas qualidades progressistas, eis os votos que fazemos ao assinalar o alvorecer do novo século. (Jornal do Commercio, 01/01/1901) Também a construção da nova capital mineira representava a vitória do planejamento e da racionalidade sobre as “disposições das cidades antigas, ‘filhas do acaso’ ou de ‘circunstâncias comerciais’, com suas ruas estreitas e tortuosas seguindo o relevo”: Uma cidade fundada a partir do nada só pode ter uma planta regular; e essa planta, desenhada por um engenheiro geômetra, leva em conta sua prática profissional, respondendo ao ideal de regularização em vigor no meio dos politécnicos progressistas. (SALGUEIRO, p. 154, 155) Para as elites letradas de Diamantina, porém, a relação com o passado representava um dilema bastante presente, porque iluminava, como por reflexo, o futuro incerto da cidade. A ocupação regional datava de bem mais de meio século, e havia se constituído em outro ambiente cultural, em outro momento da história mineira. O traçado da cidade era quase um estereótipo das críticas feitas pelos urbanistas modernos ao espaço urbano do tempo da colônia, com suas vielas tortas, becos sem saída, casas de eirado à beira da rua, calçamento irregular ou inexistente. Os costumes e práticas sociais remontavam a valores e necessidades antigas, sendo o espaço urbano dividido por romarias, festejos populares, vendedores e animais de carga. Tudo, na cidade, sinalizava a memória e a permanência de tempos antigos; ao mesmo tempo, tempos gloriosos, quando o Arraial do Tijuco, e depois a Vila Diamantina, eram mundialmente famosos pela produção diamantífera, quando contratadores e suas amásias desfilavam o luxo e o fausto, multiplicados às fábulas; quando a fé fazia germinar árvores bentas em cruzeiros; quando o trabalho de escravos calçava léguas de estradas ou erguia belas igrejas; quando músicos locais produziam obras de grande sofisticação.8 O passado regional não era visto apenas como a base sobre a qual se construíra o presente; de certa forma, ele era o lastro que justificava as demandas e legitimava as pretensões das elites locais quanto ao futuro. Simplesmente deixá-lo para trás, como faziam as elites do centro-sul mineiro, era abrir mão da possibilidade de ocupar lugar especial no novo cenário político e econômico que se construía em Minas Gerais. Assim, é possível entender o movimento de reavaliação do passado impresso nas páginas dos jornais locais, motivado pela iminente chegada da ferrovia. Salles Mourão, por exemplo, passou a publicar uma coluna intitulada “Memórias Indeléveis”. Logo no primeiro capítulo, uma descrição da cidade apresentava seu passado como o fundamento da nobreza e da riqueza locais: Diamantina, a cidade lendária e graciosa que um sentimentalismo poético eleva sustentando o cetro e a coroa rutilante de princesa do Norte, conquistados justamente pelo seu passado nobre e tradicional, pela riqueza do seu subsolo, e pela opulência e majestade de perspectiva da sua natureza, assenta-se, indolentemente, em torno de uma colina, que recebeu o nome de St.º Antonio, a qual vai suavemente se estendendo até às margens do rio grande, na base da serra de S. Francisco. // As casas branquejam, n’um agrupamento aconchegado, aqui e ali, encantando a vista surpreendentemente. // Cidade antiga, ela desenha aos olhos do forasteiro uma paisagem amena e original. Levanta aos ares, com garbo e misticismo, as torres das Igrejas, em cujas criptas dominando o ambiente vasto das serras, a cruz simbólica da Redenção se ostenta, solene e triunfante, no seu magnetismo miraculoso de resignação e caridade! [...] (Diamantina, 29.nov.1913) Até mesmo a topografia da região era apresentada de forma positiva, com termos que valorizavam o ritmo calmo e suave da vida na cidade amena, a resignação como contraponto fervoroso ao progresso ágil e avassalador. É de 8 As alusões, aqui, são a João Fernandes e Chica da Silva; à lenda da árvore no adro da Igreja do Rosário; ao “Caminho dos Escravos” e às igrejas barrocas; a Emerico Lobo de Mesquita. Ver, respectivamente, FURTADO, 2003; COUTO, 2002; FERNANDES e CONCEIÇÃO, 2003. se notar que mesmo este autor, declaradamente tradicionalista, sentiu-se compelido a construir seus argumentos aos olhos do estranho que, supunhase, chegaria pela ferrovia. A própria defesa das tradições inseria-se no contexto de uma cidade a abrir-se para o mundo. A cruz e as serras remeteriam tal forasteiro a um tempo a-histórico, o tempo das lendas, das coroas e da riqueza dos diamantes, ao passado que se estende sobre o futuro, lastreando-o: “a rigidez das pedras e das construções garantiriam assim a perenidade da tradição” posta em risco pelo romper da modernidade (ORTIZ, p. 215). Talvez a percepção mais nítida do caráter ambíguo do impacto da ferrovia – apresentada como o avatar do progresso – sobre Diamantina, tenha sido proporcionada alguns anos antes da inauguração do ramal ferroviário, num texto publicado no jornal A Idea Nova, defensor das inovações econômicas. A propósito da chegada da ferrovia, o autor prenunciava o inexorável progresso e a remodelação do espaço urbano. O texto é sutilmente irônico, nostálgico e temeroso das consequências sobre os hábitos e costumes regionais. Merece ser transcrito na íntegra: VÃO-SE AS TRADIÇÕES... Dentro em pouco o grito estridente da locomotiva anunciará uma nova existência à Diamantina. // Novos costumes, novas vestimentas, nova gente. // Todo o dia, ao arfar das caldeiras, o trem despejará uma onda de povo estranha nas estreitas ruas da velha e tradicional cidade, e do interior, procurando o caminho da costa, olhos admirados, corações satisfeitos e medrosos, os velhos e as crianças virão ver, pela primeira vez, o progresso invadindo o sertão solitário. Transformar-se-á o aspecto da cidade, mudará o seu vocabulário: e cada dia, com pedreiros e carpinteiros importados, irá perdendo o que lhe resta ainda do pitoresco, o ar dos bons tempos primitivos. // Os próprios filhos da terra, ao voltarem à pátria, depois da entrada triunfal e ruidosa da locomotiva, custarão a reconhecê-la. O Barracão, velho mercado da cidade, será modificado. // Não veremos mais os tropeiros deitados ao meio das cangalhas, junto ao fogo em que ferve o feijão na panela de ferro suspensa à tripeça. // Não veremos mais, às estacas, com os ombros em grandes chagas, sacudindo as moscas com as caudas, os cansados animais, que transportam através de léguas, atravessando os rios e as areias ardentes, os alimentos necessários aos habitantes. // Aí, em breve, se erguerá um belo edifício, elegante e limpo, em que de tudo se encontre. Por toda a cidade, e mais ainda nas proximidades da estação da ferrovia, como por encanto, se verá surgir uma nova população. // Casas se edificarão por toda parte. // O próprio comércio, modificando antigos hábitos, aos ruídos constantes das manobras e ao sabor das notícias trazidas através de léguas e léguas, de todos os lugares, perderá o seu feitio local. // Nada ficará sem sofrer a influencia estranha desse progresso que chega. Poder um homem, de cima de um cocuruto de serra, a mil e quinhentos metros acima do litoral, num dia, ir comer camarões e ostras à praia do oceano, é a alegria maior que se pode prometer aos sertanejos. // Pois terão isso. Em compensação, entretanto, aos poucos, irão perdendo o pitoresco quadro de um carro de bois, vagarosamente rinchando, pelas ruas da cidade; e talvez os filhos dos que por aí andam não possam ver um desfilar lento de tropa, ao monótono ruído dos cincerros das madrinhas. // Terão, se quiserem ver isso, de ir além por serras e vales, a mais longínquos lugares. O progresso tem isso. Pelo bem que nos traz nos priva de muita coisa boa. // É verdade que o benefício é sempre maior do que aquilo que perdemos. Mas... que querem? Nós nunca nos esquecemos do que vendo uma vez, gostamos. // Por isso é que, dificilmente, os olhos gostam de novidades. Tenham paciência, porém, por esta vez. // Terão estradas de ferro, e, querendo, pode um velho garimpeiro barbado mudar de alimentação, passando do feijão com torresmos e angu aos camarões, ostras e badejos, com um só dia de viagem! Não creio que goste. Se não achar bom, verá o mar, grande e tranquilo, a sacudir ruidosamente, onda sobre onda, a babugem branca das espumas alvas para a praia. // E isso, estou certo, lhe compensará a viagem. A verdade, porém, é que a Diamantina atual será absorvida pela Diamantina futura. // Aí vai a nova cidade em trem de ferro! Tu, porém, cidade antiga, tu viverás veneranda na memória dos moços e na saudade dos velhos. // Falarão de ti através dos tempos, e ficarás gloriosamente lembrada nos escritos daquele que te tornou imortal – Joaquim Felicio dos Santos. // E crescerás, perdendo em costumes locais, na tradição que te fez respeitada pelas tuas legendas.// No dia em que a nova cidade chegar, tu podes desaparecer tranquila, porque morres com glória. // Aldo Delfino. (A Idéa Nova, 01.ago.1909)9 O trem de ferro ainda não exalava seus vapores sobre Diamantina, mas alguns já vislumbravam suas manobras. Aqui estão presentes as ideias mais generalizadas sobre a modernidade fin-de-siècle: o desenvolvimento tecnológico, a modificação arquitetônica, a preocupação com a higiene, o avanço do comércio, a abertura ao cosmopolitismo – tudo significando a ruptura com o passado, o qual será inevitavelmente tragado pela cidade futura. Aldo Delfino demonstrava sua sensibilidade face ao progresso. Reconhecia o que, para ele, configurava-se como a irreversibilidade da História, entendida como a expansão da civilização moderna; mas não deixava de ressentir-se de seus efeitos. Ao invés de discutir se o passado deveria ou não ser descartado, o autor admitia o progresso como inexorável: ele viria, anunciado pelos silvos – ou ainda, pelos gritos estridentes – da locomotiva, despejando uma nova existência sobre a cidade, como um espetáculo tal que tornaria Diamantina irreconhecível para quem não acompanhasse o processo. As mudanças por ele preconizadas ocorreriam em vários níveis, e apontam para uma percepção ampla dos valores e práticas embutidos no movimento de modernização: o aspecto arquitetônico e espacial da cidade mudaria, obra de mãos estrangeiras/estranhas; mudaria também o vocabulário utilizado por seus habitantes, e mesmo – num entendimento preciso dos mecanismos da expansão capitalista – os hábitos de consumo, as demandas, gostos e necessidades locais. “Nada ficará sem sofrer a influência estranha desse progresso que chega”, e chega pelas manobras da locomotiva. O autor mostra, também, uma sofisticada interpretação da relação entre progresso e atraso, intuindo que esta não é linear. As mulas madrinhas dos tropeiros, os barulhentos carros de boi, são ruídos típicos de uma determinada organização social, uma economia característica, com seus hábitos e costumes, que se refletem na organização dos espaços públicos e das práticas sociais. Mas esses sons não seriam, simplesmente, suprimidos pelos novos barulhos da modernidade, e sim relegados a outros cantos, distantes da novidade e, portanto, atrasados – ou, talvez, preservados. O passado deixa de ser um momento no tempo, e, identificado com uma maneira de viver a vida, 9 Aldo Delfino também escrevia nos jornais Cidade Diamantina, O Itambé e O Jequitinhonha; seu pai, Luiz Delfino, havia sido colaborador d’O Município durante a década de 1890. Cf. José Teixeira Neves – Fundo José Teixeira Neves, Caixa 4, envelope 2. torna-se também um marco no espaço; o progresso o empurra para os lugares às margens da História, numa imagem quase euclidiana. 10 Mas há um preço a ser pago. Como no Fausto de Goethe, apresentado por Marshall BERMAN (1986) como “a tragédia do desenvolvimento”, o progresso sempre tomaria algo em troca do que dava – e o autor marca como trocado o que ele caracteriza como pitoresco, o “feitio local”, aquilo que os olhos já viram e gostaram, “o ar dos bons tempos primitivos” – enfim, o que, para ele, dava identidade própria à sua região. O progresso embarcado na ferrovia traria a possibilidade do acesso rápido ao mar, ironizado na imagem do sertanejo e do velho garimpeiro barbado, a jantarem camarões, peixes e ostras. Mas exigiria em troca a perda da identidade local, sinalizada ao longo do texto nas referências à culinária e modos de comer tradicionais, mas também no jeito das casas e mesmo nas diferentes profissões, modos de abastecimento e relações pessoais, formando um conjunto, um modo de vida, que iria desaparecer. Aldo Delfino percebia claramente que o progresso não ocorria simultaneamente em todos os lugares, mas agia em ondas, isolando o passado em “mais longínquos lugares”; seu tempo não é cronológico, mas histórico. Seu tom é nostálgico, resignado diante do progresso que vê como irreversível e inegociável. Mas ele não se coloca como um derrotado. Ao mesmo tempo em que percebia ser inevitável o desaparecimento da cidade antiga e dos antigos modos de viver, recusava-se a aceitar a perda total da sua identidade. Pelo contrário, o passado seria transfixado, transformado em veneranda “memória dos moços” e “saudade dos velhos”. Num movimento impregnado de ideias próximas ao movimento romântico, o autor procurou oferecer uma saída para seu dilema. A ruptura com o passado seria necessária para abrir caminho ao futuro; mas seria também a forma de preservar o passado, transmutado em discurso identitário. 11 O Romantismo buscou nos monumentos do passado um instrumento de fácil percepção dos laços afetivos e das sensibilidades que o movimento artístico quer denotar: as marcas das construções humanas, o valor moral do fazer, a transitoriedade das obras do homem, o poder fundador dos monumentos e a transformação que o tempo impõe a tudo. Qualidade estética ou o pitoresco são elementos que norteiam a emoção estética romântica. Esses valores vão transformar os monumentos do passado (monumentos históricos) em alvo de culto que são, ao mesmo tempo, reverência à arte e à celebração de uma identidade regional ou nacional. [...] Para o homem do século XIX, a mudança dos tempos deve ser respaldada na percepção de sua construção cronológica e na ideia de que é preciso lembrar o que foi para viver melhor o que virá. (MENESES, 2004, p. 34, 35) Aldo Delfino confessava seu saudosismo, ao mesmo tempo em que se voltava para o que viria. Seus olhos eram os de um homem do passado, que tristemente enxergava o futuro inevitável. Ele ecoava a angústia daqueles que 10 Ver CUNHA, 1999. Para um estudo sobre os sons urbanos como sinais da tensão entre passado e futuro em outra antiga cidade mineira, ver DUARTE, 1997. 11 É interessante lembrarmos que duas décadas depois da publicação desse texto, o centro antigo de Diamantina foi tombado como patrimônio histórico-cultural brasileiro, evitando sua descaracterização completa. viam o anjo da História a acumular detritos sob seus pés.12 Ao passado, sobraria um só lugar: a “memória dos moços” e a “saudade dos velhos”. Mesmo que de forma um pouco mais carinhosa, Aldo Delfino via o passado condenado à tirania do futuro. “No dia em que a nova cidade chegar, tu podes desaparecer tranquila, porque morres com glória”. E a nova cidade chegaria a bordo do trem de ferro! Considerações finais “Velho maquinista, com seu boné // lembra o povo alegre que vinha cortejar Maria Fumaça, não canta mais // para moças, flores, janelas e quintais.” (Ponta de Areia, Milton Nascimento e Fernando Brant) A chegada da ferrovia em Diamantina representava muitas coisas. Seguindo a mitologia que já havia sido construída ao longo do século XIX, e que ainda vigorava nas primeiras décadas do século XX, era o sinal definitivo da inserção de Diamantina no mundo moderno, na era da tecnologia e do progresso. Imediatamente, era uma oportunidade para ligar Diamantina de forma rápida e constante aos centros comerciais, contornando problemas como a antiga dependência dos tropeiros para abastecer a cidade. Em muitos aspectos, Diamantina e região permaneciam como um enclave, separado geograficamente pelas serras, pelos caminhos difíceis de percorrer, pelas distâncias aumentadas pelo esforço necessário para vencê-las. 13 Embora a cidade tivesse construído uma orgulhosa tradição assentada sobre suas relações culturais e a capacidade de acompanhar os modos civilizados dos grandes centros, a situação econômica e as mudanças tecnológicas deixavam claro que os antigos métodos não serviriam para o futuro que se desenhava. Com a ferrovia, Diamantina não corria mais o risco de perder o trem da história. As transformações modernas, num aparente paradoxo, representavam também a possibilidade de resgatar as glórias do passado (míticas ou não), evitando que tudo se exaurisse na decadência presente e futura da região. A importância local na história mineira (e, de certa forma, mundial) seria reivindicada à medida que a cidade e a região se modernizassem, inserindo-se novamente num sistema mundial de comércio, comunicação, cultura – como já havia acontecido antes. Seria um retorno de Diamantina ao cenário global, agora seguindo outro roteiro. Roteiro que incluiria o resgate do passado como referência identitária da localidade. Ainda que o espaço urbano fosse modificado, costumes e práticas abandonados, as manifestações de outros tempos deveriam ser registradas, em letra e imagem, de forma a preservar sua memória e o papel que desempenharam na formação regional. Também os eventos, as histórias, as lendas deveriam ser coligidos, estudados, interpretados, visando definir uma identidade própria, um “espírito diamantinense”, o qual seria modificado pelo progresso, mas deveria reter aquelas características que o definiam, 12 Conforme a imagem do Anjo da História em BENJAMIN, p. 222-232. 13 Para o impacto que essa condição tinha sobre a economia regional, e o que mudou com a inauguração da ferrovia, ver MARTINS, 2004. diferenciavam-no e o valorizavam face a outras regiões de Minas Gerais e do Brasil. Tais expectativas convidam-nos a outras reflexões. Talvez seja inevitável perguntar até que ponto as expectativas geradas pela chegada da ferrovia e da modernidade concretizaram-se em Diamantina. Ao longo do século XX, a cidade modernizou-se em termos, com a eletrificação em 1910 e outros melhoramentos sendo gradativamente construídos. O tombamento do núcleo antigo da cidade como patrimônio histórico e artístico nacional, em 1938, se por um lado limitou as transformações físicas da região central, por outro conservou a herança arquitetônica e favoreceu outros movimentos de preservação e revitalização de práticas e costumes ancestrais. Além de abrir à cidade uma alternativa econômica, pela inclusão de Diamantina no circuito turístico-cultural que se construía à época. Também abriram-se algumas fábricas, especialmente têxteis e ligadas à mineração, e outras atividades econômicas. O ápice do processo de modernização econômica da cidade, porém, viria por outros caminhos, ligados à política. A meteórica ascensão do filho mais ilustre da terra, Juscelino Kubitschek de Oliveira, ao governo do estado e, principalmente, à Presidência da República, resultou numa série de investimentos na região, bem como a instalação de várias repartições e departamentos da burocracia estatal. Isto teve como consequência imediata a elevação do nível de vida de parte das elites locais, bem com a renovação do papel de “capital regional” que Diamantina historicamente desempenhou face ao Vale do Jequitinhonha e parte do norte-nordeste mineiro. Ainda assim, é correto dizer que nem por isso a cidade se modernizou plenamente. Antigos e tradicionais hábitos, costumes e valores permaneceram arraigados na população, bem como dificuldades de transporte e comunicação, evasão de cérebros, ausência de capitais para investimentos mais pesados na industrialização ou em redes comerciais mais amplas, limitaram enormemente a possibilidade de Diamantina efetivamente acompanhar a modernização vivida pelo país em geral. Até mesmo o posto de “capital regional” do norte mineiro foi perdido, a partir das décadas de 1970-80, para a cidade de Montes Claros. A promessa do futuro progressista trazido no bojo da locomotiva não chegou, portanto, a se concretizar plenamente, por razões intrínsecas à cidade, mas também por questões além das forças regionais. A proximidade do centenário da chegada da ferrovia à cidade faz o olhar se voltar também para o presente, indagando sobre outras panaceias apresentadas nessa outra virada de século. Em 1999, a cidade recebeu da UNESCO o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, coroando uma longa relação com a atividade turística, e um movimento amplo de vários setores da sociedade diamantinense pelo reconhecimento mundial. Assistiu-se, à época, a uma renovação do “espírito diamantinense”, reivindicando para a cidade um lugar digno de sua história e de sua importância no cenário mineiro e internacional – e, novamente, o passado era a base para tais pretensões, passado ao qual se faria justiça pela ascensão contemporânea da cidade. Muitos dos temores e das esperanças presentes no texto de Aldo Delfino repetiram-se no discurso das elites locais, e mesmo de outros setores da sociedade. Qual o impacto sobre a vivência local da chegada maciça dos turistas? O que deveria ser alterado para se garantir aos visitantes a máxima experiência local? Como isso poderia ser feito sem violentar hábitos e costumes da população residente? Ou a perda de espaços, valores e práticas deveria ser encarada como o preço a pagar pelo sucesso comercial do turismo? Mais de uma década depois, torna-se evidente o que já deveria ser óbvio no início, isto é, que a atividade turística não seria a solução para todos os problemas locais – pela sua própria natureza, o turismo é negócio cujo retorno se dá em prazos mais latos. Consolidando-se como rotina a presença mais visível dos turistas na cidade, muitas das questões foram abandonadas, sem que isso significasse terem sido resolvidas. Ainda hoje, a cidade, seus habitantes e os turistas sofrem com algumas inadequações e indefinições quanto à implementação da atividade turística na região. Em 2005, outra importante alteração no perfil da cidade foi a transformação das Faculdades Integradas em Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM. A universidade carreava promessas de ampliação do horizonte intelectual, pela presença de especialistas das mais diversificadas áreas do saber propondo novas temáticas e linguagens aos estudos que se realizavam há séculos na e sobre a região; expectativas de ampliação da vivência cultural, pelo intercâmbio de experiências e práticas do mundo acadêmico com o mundo popular, tanto das regiões açambarcadas pela sua área de atuação quanto das várias regiões de origem de professores, alunos e técnicos administrativos; esperanças de desenvolvimento econômico, tanto como resultado da aplicação de resultados de pesquisas e ações de intervenção direta do corpo acadêmico da universidade, quanto pelos negócios favorecidos pelo crescimento populacional e pela injeção de recursos através da formação de um novo público consumidor na região. Aos poucos, a UFVJM parece responder a algumas das imensas expectativas criadas pelas elites letradas e outros segmentos da população regional. Todavia, a especulação imobiliária, os atritos com a população local gerados pelas atividades de lazer dos estudantes, a sobrecarga dos equipamentos urbanos, o desrespeito às características arquitetônicas das edificações, a ausência de um efetivo plano diretor que organize e viabilize uma ocupação sustentável do solo, demonstram também que, assim como a ferrovia quase um século atrás, também as novas encarnações do progresso e da modernidade cobram um preço à comunidade diamantinense. Vivemos um momento de deslumbramento com o desenvolvimento econômico do país, a inserção de novas camadas da sociedade no mercado consumidor e a expansão no uso de artefatos tecnológicos no cotidiano das pessoas. O centenário exemplo diamantinense da ferrovia, bem como os mais recentes do turismo e da universidade, deveriam servir-nos de alerta contra a recorrente ilusão de que a tecnologia ou a ciência, por si só, podem consertar ou melhorar mazelas sociais cuja existência deve-se, fundamentalmente, a políticas socioeconômicas construídas ao longo da história – regional ou do país. Por último, mas não em último lugar, resta perguntar o que foi feito da própria ferrovia. Antes símbolo-síntese da mitologia do progresso, hoje a locomotiva, especialmente a Maria-Fumaça, parece ter se tornado ícone de um passado romântico, de expectativas de desenvolvimento não realizadas, de possibilidades não alcançadas, de caminhos não trilhados. Há um forte movimento de resgate da memória ferroviária, que se manifesta em sítios eletrônicos da internet, em publicações memorialísticas, em museus temáticos e mesmo no retorno à atividade de velhas composições, hoje atrativos turísticos a oferecer, ironicamente, uma experiência de deslocamento, uma viagem, mais vagarosa e contemplativa. Diamantina não preservou seu conjunto ferroviário. O prédio da estação ainda existe, transformado em quartel do Corpo de Bombeiros. Conserva parte de sua beleza e arquitetura originais, agora atendendo a novas demandas sociais, incorporado, portanto, à vida da cidade. O que não impediria, obviamente, que funcionasse também como ponto de partida de uma viagem interpretativa e problematizadora da linha férrea, pela qual tantas pessoas lutaram e que tantos sonhos e esperanças carregou. Do trecho coberto pelo ramal entre Corinto e Diamantina, uma parte significativa do trajeto ainda é usada como estrada de rodagem. Alguns poucos marcos e registros da ferrovia que por ali passou estão preservados. Se já não existem muitas estações, algumas edificações permanecem, carecendo de investimento em sua restauração e conservação. Outras ficaram apenas na memória das pessoas, a qual precisa ser trabalhada historicamente, antes que os últimos vestígios desapareçam com o tempo. O conceito de “território-museu” poderia ser aplicado a essa região, aglutinando os fragmentos da memória ferroviária numa história regional, a qual levaria em conta também os elementos naturais e a ocupação do território (antiga e atual). A atividade turística poderia agir como elemento integrador, que valorizasse esse passado e questionasse nossa relação com o progresso, com a tecnologia e seus fantasmas, com o ambiente natural em que vivemos e que alteramos. Diferentes locais poderiam abrigar estruturas interpretativas, que oferecessem ao visitante informações necessárias à compreensão do tema, bem como apontasse opções de trajeto para melhor conhecer a região e sua história – ferroviária ou não.14 Poderíamos resgatar, quiçá, não apenas o silvo estridente da locomotiva, mas também os cincerros das mulas “madrinhas” e tantos outros sons que marcaram épocas em Diamantina – e quem sabe, nossos ouvidos poderiam, também, escutar de forma mais atenta aos sons de nossa própria era. 14 Para uma melhor discussão do conceito de “território-museu”, ver MENESES, 2004, especialmente o capítulo IV.. I – Fontes documentais 1. Jornais (as datas referem-se ao período estudado, não necessariamente a toda a extensão da coleção) Diamantina: Acervo Soter Couto. UEMG/FEVALE/Centro de Pesquisa; Biblioteca Antônio Torres. IPHAN-Diamantina. A Estrella Polar.1903-1914. A Idéa Nova. 1906-1912. Cidade Diamantina. 1889-1898; 1903. Diamantina.1913. O Norte. 1906-1909. Pão de Santo Antonio. 1907-1914. Juiz de Fora: Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes. Jornal do Commercio.1901-1914. O Pharol. 1880-1914. 2. Outros documentos Fundo José Teixeira Neves. Caixa 4, envelope 2 [jornais não separados/(262 fls.); sem data]. Biblioteca Antônio Torres. IPHAN-Diamantina, MG. II – Referências Bibliográficas ALKMIM, Paulo Francisco Flecha de. Chichico Alkmim: um retrato retocado. IN: SOUZA, Flander de; FRANÇA, Verônica Alkmim (orgs.) O olhar eterno de Chichico Alkmim. Belo Horizonte, Editora B, 2005, p. 99-105. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1986. BLASENHEIM, Peter. As ferrovias de Minas Gerais no século dezenove. in Locus: Revista de História. Juiz de Fora, Núcleo de História Regional/EDUJFJ. 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