Formação Diamantina
Diamantina: breve relato de sua formação Diamantina: a brief report of his formation Cristiane Souza Gonçalves* Abstract: The article is based on the first chapter of the thesis called “Trials in Diamantina: a study on the practice of SPHAN in the urban protected site, 1938-1967”, and discusses the development of the ancient Tijuco, since its origin until the first decades of the 20th century. The analysis of its former urban shape is based on maps and on the descriptions of foreign visitors from which we can foresee the impact of new structures in the city that was going to be listed as national heritage, in 1938 – date that marks the beginning of the efforts for its preservation. *Cristiane Souza Gonçalves possui graduação em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (1996), especialização em Patrimônio Arquitetônico: Teoria e Projeto pela PUC/ Campinas (1998), mestrado (2004) e doutorado (2010) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. É arquiteta colaboradora da KRUCHIN arquitetura desde 1999, onde atua no desenvolvimento de projetos de preservação e arquitetura. No âmbito acadêmico, atua como docente e coordenadora dos cursos de Especializa- ção Lato sensu e de Aperfei- çoamento Online Patrimônio Arquitetônico: Preservação e Restauro (Universidade Cruzeiro do Sul). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 39 Diamantina: breve relato de sua formação O ouro do Serro Frio, descoberto nos fins do século XVII, seduzia, de toda a parte, a ambi- ções de bandeirantes e aventureiros. Um grupo desses, tranquilizado pela visão guiadora do pico de Itambé, afoitou-se a explorar regiões mais apartadas, à cata de local onde a minera- ção fosse abundante e fácil. Deparou-lhes o destino o sítio a que aspiravam, na confluência de dois córregos riquíssimos, posteriormente chamados Rio Grande e Piruruca. Como de costume, confiaram ao acaso a escolha do melhor curso d’água. Largada aos ventos, a bandeira voltou-se para a esquerda e os sertanistas subiram o Piruruca. [...] Com pouco, seguindo mais ou menos o mesmo roteiro, nova bandeira chegou. Coube-lhe o outro córrego, a que pôs o nome enfático de Rio Grande. Seguindo por ele acima, fraldejando o morro, deteve-se em vasto tremedal, por sobre o qual serpejava outro córrego, que, nascendo no flanco oriental do morro, ia perder-se no Rio Grande. Deram-lhe o nome de Tijuco1, vocábulo indígena que quer dizer lama [...]. Explorado o terreno, encontraram ouro em abundância assombrosa, como nunca aparecera em toda a capitania (MACHADO FILHO, 1980, p.9). E assim surgia o arraial do Tijuco. Ali, como em outras cidades mineiras formadas em torno da exploração aurífera, a determinação do sítio para o assentamento dos primeiros núcleos de povoação foi consequência direta da proximidade com os locais de mineração2; e o traçado da cidade que foi se moldando, ao longo dos séculos seguintes, era antes resultado da somatória desses aglomerados espontâneos que se constituíram próximos aos pequenos cursos d’água e junto aos caminhos para os demais povoados do que expressão de um modelo de ocupação pré-estabelecido ou efeito de um plano regula- 1.Saint-Hilaire confirma a toponímia: “Um dos primeiros sítios onde eles fizeram descobertas foi num pequeno regato que corre sobre o monte onde hoje se acha a aldeia. As margens desse regato eram pantanosas e foi isso que fez dar ao lugar o nome de Tijuco, que significa barro, na língua dos índios” (1974, p.27). 2.Reis Filho (1968, p.124- 127) lembra que vários eram os aspectos a considerar na escolha dos sítios das povoações, tais como natureza do solo, relevo, fontes de água para o consumo, cursos ou massas de água, avaliação do clima e do solo. Ressalta o autor que “nas minas, porém, a localização dos aglomerados junto aos locais de mineração não permitia a escolha de sítios mais convenientes, e Ouro Preto, como São Luiz de Potosí, teria um sítio excepcionalmente acidentado” (Ibid., p.127). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 40 dor ordenado e uniforme – como se veria surgir, sobretudo nas vilas fundadas sobre a administra- ção pombalina. Mas se o nascimento do pequeno arraial esteve associado à exploração do ouro, a consolidação de sua forma urbana se daria a partir da descoberta do diamante em suas terras3. A condição de região de mineração diamantífera e as características administrativas específicas dela decorrentes tiveram forte influência na configuração do núcleo urbano da futura cidade de Diamantina – conjunto urbano tombado pelo IPHAN, em 1938, e listado como patrimônio mundial junto à Unesco, em 1999. De comum com as cidades mineiras tombadas na década de 19304, o antigo arraial do Tijuco traz, além da proximidade da data de sua fundação e da motivação que lhe deu origem – a descoberta do ouro –, o caráter predominantemente irregular de sua implanta- ção, resultante de um traçado urbano que foi se configurando a partir da polarização dos primeiros povoados que se estabeleceram na região. Quando, porém, comparada aos demais núcleos mineiros setecentistas, Diamantina apresenta, de particular, o ritmo e a maneira com que se organizaram as relações hierárquicas administrativas da Coroa portuguesa. Afinal, enquanto as outras logo “se transformaram de pequenos arraiais em vilas, com o aglomerado usual da igreja matriz, casa de câmara e cadeia, com o pelourinho nas proximidades [...], Diamantina manteve-se na condição de arraial, subordinada a Vila do Príncipe – Comarca do Serro Frio” (PESTANA, 2001, p. 579), desde o início de sua formação, em 1713, até 1831, quando foi elevada à categoria de vila, com a nova denominação de Diamantina5. De arraial à vila: os primórdios do núcleo urbano diamantino Os primeiros povoadores do antigo arraial fixaram- -se a pouca distância do córrego Rio Grande, no leito de um curso d’água ao qual batizaram Tijuco, no ano de 1713. A ocupação deu-se sobre a encosta de uma colina, margeando a Serra dos Cristais, criando para o pequeno núcleo construído, desde o início de sua formação, uma indissociável e imponente moldura natural. O Tijuco manteve- -se na condição de arraial por mais de um século, mesmo já tendo atingido uma concentração de moradas e de construções religiosas que justificaria sua ascensão aos níveis hierárquicos subsequentes6. O fato chamou a atenção de Saint- -Hilaire que registrou, em sua viagem de 1817: Não se dá ao Tijuco outro nome além de arraial, entretanto a população desta aldeia, já que é assim chamada, eleva-se a cerca de 6.000 almas, e o número de casas é de cerca de 800. Provavelmente, para impedir o clero de assumir grande importância no Distrito dos Diamantes, não se quis mesmo elevar Tijuco à categoria de cabeça de paróquia, e, ao tempo de minha viagem ela não era se não humilde sucursal dependente de Vila do Príncipe (1974, p. 27). 3.Foi nas encostas e nos cursos d’água das serras de Santo Antônio e São Francisco, e em especial no vale no riacho do Tijuco, pequeno afluente do Rio Grande, que se descobriu grande quantidade de ouro, em 1713 – data a partir da qual se fixariam os primeiros povoadores, dando origem ao arraial do Tijuco. Mais tarde, nos primeiros anos da década de 1720, foram encontrados diamantes, mas a Coroa portuguesa só seria informada em 1729, por Dom Lourenço de Almeida, governador das Minas, quando não era mais possível acobertar o precioso achado, segundo Cairo e Pessôa (2007, p. 83). Cf. ainda Pestana (2001, 2002, p. 2); Machado Filho (1980, p.11-13). 4. Além de Diamantina, Serro, Tiradentes, São João del Rei, Mariana e Ouro Preto foram inscritas, em 1938, no Livro de Tombo das Belas Artes. 5.Til Pestana apresenta, em um artigo publicado em 2001, a data de 1832; porém, em um texto publicado em seguida, apresenta a data de 1831, confirmada também por Cairo e Pessôa (2007, p. 84). A vila seria erigida à categoria de cidade, sob a mesma denominação, em 1838, segundo Pestana (2002) e D’Assumpção (1995, p. 87); porém Cairo e Pessôa apresentam a data de 1833. 6. Murillo Marx (1991, p. 12) esclarece: “Se a aglomeração surgia espontaneamente e, ao longo do tempo, ia galgando diferentes estágios hierárquicos, esse processo ocorria norteado pela Igreja até o momento decisivo da criação do município. Uma concentração de moradas e uma capela, depois capela-curada ou visitada por um padre, quem sabe uma paróquia mais tarde. Um povoado de determinado porte aspiraria constituir uma paróquia ou, denominação que prevaleceu entre nós, uma freguesia. Depois tal freguesia vai almejar a autonomia municipal que, se alcançada, implicará o seu símbolo, o pelourinho, e a sua casa de câmara e cadeia. Símbolo e sede do município que deverão se compor com o templo preexistente”. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 41 A natureza de sítio de exploração e comercialização de diamantes, ao invés de acelerar o desenvolvimento do arraial, acabou interpondo obstáculos à sua elevação à condição de vila, na medida em que a uma maior autonomia em rela- ção a Portugal poderia corresponder uma menor arrecadação de tributos. O aumento da cobiça, no entanto, foi acompanhado pelo incremento às restrições impostas pela Coroa portuguesa visando garantir, primeiro, o recolhimento dos tributos devidos e, segundo, a exploração direta dos diamantes em território brasileiro. O núcleo diamantino viveu, então, sob a égide de uma organização administrativa peculiar que resultou em uma configuração urbana também particular: De fato, a mineração de diamante determinou uma ordem administrativa especial para o território, com a Demarcação Diamantina, definida em 1731, que incluía o arraial do Tijuco e outros pequenos povoados. A organização administrativa com representação e atuação local foi estabelecida em 1734, com a criação da Intendência dos Diamantes, situada no Arraial do Tijuco. Dessa maneira, a política administrativa portuguesa estabeleceu os responsáveis diretos pelo cumprimento de suas ordens na área de Demarcação, que eram representados, principalmente, pelo Intendente e o Governador da Capitania. Assim, a Intendência foi atuando, durante longo período, conforme as variadas decisões da Metrópole, sobre a forma de extração e comercialização do diamante. Inicialmente, se utilizou a forma de contrato7, determinada em 1739, quando a exploração era monopólio particular. Depois foi instalada a Real Extração do Diamante, estabelecida de 1771 a 1845, com o monopólio régio, definido pelo Regimento Diamantino (PESTANA, 2001, p. 580). Sylvio de Vasconcellos (1975) e Aires da Mata Machado Filho (1980) defendem a tese de que os rigores da administração da Coroa portuguesa teriam influenciado o desenho do arraial do Tijuco, restringindo sua ampliação e moldando seu crescimento dentro de limites mais contidos8. Essa ideia encontra eco em D’Assumpção (1995), segundo a qual a maneira encontrada para viabilizar a fiscalização com poucos soldados e para manter os moradores sob vigilância foi por meio da contenção da expansão do núcleo urbano, conforme atestaria o trecho da carta da Diretoria de Lisboa, dirigida à Junta Diamantina, em 13 de julho de 1789: “... nem finalmente consentirão na edificação de novas casas afastadas do meio da povoação, por serem as mais adequadas aos ladrões de diamantes e contrabandistas” (SANTOS, 1976 apud D’ASSUMPÇÃO, 1995, p. 84). Segundo os estudos de Sylvio de Vasconcellos, Diamantina teria se originado da polarização de pequenos núcleos isolados, cuja confluência dos caminhos de ligação teria delimitado uma área triangular, com centro de gravidade no arraial do 7.O Sistema de Contrato foi, segundo Cairo e Pessôa (2007), adotado em função da dificuldade de se adotar o mesmo sistema de cobrança de impostos do ouro – o quinto, no qual a quinta parte das pedras extraídas seria da Coroa –, pois as pedras eram muito diversas entre si e se encontravam em área específica. Nesse novo sistema, o contratador “recebia a concessão da exploração da extração por um período determinado e por determinadas áreas, com um nú- mero limitado de escravos (esta era a cláusula menos respeitada), em troca do pagamento de uma taxa fixa. A extração do ouro era proibida”. (Ibid., p. 83). 8. Sylvio de Vasconcellos considerou a população do Arraial do Tijuco escassa durante o século 18: “Enquanto a maioria das povoações mineiras se constitu- íra espontânea e livremente em torno do comércio interessado no abastecimento local, no Tejuco o Arraial se conteve, limitado por acidentes geográficos e pelo controle administrativo, dependendo do comércio de distribuição. [...] No Tejuco, [...] as oscilações da produção diamantífera pouco reflexo produziram na dinâmica urbana. [...] Contido por vários meios e modos, não se modificou muito o arraial em seu primeiro século. Só a partir de 1831, elevado a Vila Diamantina, é que adquiriu liberdade e autonomia indispensáveis ao seu progresso” (1975 apud FURTADO, 2008, p. 38). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 42 Tijuco, vértice no arraial de Baixo e base junto desenhada ao curso do córrego Tijuco. Os agrupamentos periféricos iniciais seriam três: o arraial de Baixo, surgido das lavras, a sudeste; o arraial de Cima, surgido da mineração nas grupiaras e no alto da Serra, a sudoeste; e o arraial do Rio Grande ou Tijuco, a nordeste, na saída para Minas Novas, que surgiu a partir da exploração do ouro no vale do mesmo rio e se tornaria o mais populoso, acabando por determinar a denominação de todo o núcleo diamantino quando os povoados, finalmente, ligaram-se entre si9. Haveria ainda um quarto arraial, que se organiza posteriormente, denominado arraial dos Forros ou Macau, junto ao córrego da Caridade, no lado noroeste, que daria, enfim, a conformação quadrangular em cujas bases, efetivamente, se desenvolveria o arraial do Tijuco, futura cidade de Diamantina10. O desenvolvimento do arraial teria se dado em três etapas principais, sendo “a primeira, de 1700 a 1720, relativa ao povoamento esparso, em vários arraiais, de limitação indeterminada; a segunda de formação polarizada, de 1720 a 1750, quando se organizou em reticulado sua parte urbana propriamente dita; a terceira, de 1750 em diante” (VASCONCELLOS, 1975, p. 112), quando se consolidou e se realizou a expansão do núcleo urbano. A primeira fase – ainda anterior à descoberta do diamante – teria se caracterizado pelo povoamento restrito a cada arraial de forma isolada, ausente de qualquer preocupação com 9.Cf. D’Assumpção (1995, p. 97); Ávila (1979, p. 479) e Vasconcellos (1975, p. 106- 107). 10.Mais uma vez, a escassez de fontes documentais gera divergências entre os pesquisadores. D’Assumpção (1995, p. 98) resume da seguinte forma: “Ao que parece, somente dois dos aglomerados primitivos são comuns às diferentes interpretações: o Arraial do Rio Grande – posteriormente ‘Tijuco’ – antiga formação começada no Burgalhau, e o Arraial de Baixo. [Joaquim Felício dos] Santos não chega a mencionar este último, mas refere-se à igreja local, Nossa Senhora do Rosário. O terceiro Arraial (‘de Cima’), mencionado por Vasconcellos, não é considerado nem por Santos nem por Machado Filho. Ambos referem-se apenas aos currais de gado antigamente existentes na grande esplanada (‘Largo do Curral’, hoje ‘Largo D. João’), na saída para o sertão baiano”. arruamentos ou construções definitivas. A definição dos caminhos de ligação entre os quatro arraiais principais, o surgimento de novas ruas e becos, e a polarização do povoamento em uma área central – o arraial do Tijuco – marcariam a segunda fase. À terceira fase correspondeu o apogeu da economia do diamante, quando sua produção atingiu os maiores índices, por meio da exploração pelo sistema de contrato. Nesse perí- odo ergueram-se as principais igrejas e o casario residencial e público de maior porte. É interessante cotejar dois importantes núcleos mineiros do período, a antiga Vila Rica e o arraial do Tijuco. Segundo Sylvio de Vasconcellos, em Vila Rica “cada mina, nos morros, originava uma construção residencial, multiplicando os arruamentos” (1975, p. 103), expandindo-se, assim, o conjunto urbano “linearmente ao longo das estradas” (Ibid., p. 101), por meio da consolidação das ligações entre os diversos arraiais –; diferentemente, no arraial do Tijuco, as minerações ou extrações eram localizadas na periferia do núcleo urbano, tendo sido sua interferência muito mais no sentido de limitar do que ampliar sua configuração inicial, daí a característica de sua solução quase quadrangular, concentrada (Figura 1). Somado a isto, as barreiras naturais – como o curso de rios e as formações montanhosas do entorno –, bem como os propósitos da Coroa portuguesa teriam contribuído para inibir sua expansão, estimulando o seu adensamento dentro de contornos contidos. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 43 Figura 1: Arraial do Tijuco, primitivos caminhos de ligação entre os assentamentos. Esquema da autora baseado em D’Assumpção (1995). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 44 Consolidação e expansão do Arraial do Tijuco: uma leitura a partir da cartografia da segunda metade do século 18 Os primeiros assentamentos, segundo Joaquim Felício dos Santos (1976), teriam se fixado na margem direita do córrego Tijuco, afluente do Rio Grande, e originado a localidade denominada Burgalhau11. Com o surgimento de outros pequenos núcleos de extração do ouro, iniciou-se o processo de “conurbação”. O arraial situado junto ao Tijuco tornou-se o pólo de atração para o desenvolvimento dos burgos isolados ao longo dos principais caminhos de comunicação entre essas remotas paragens e outras regiões, como o Arraial de Baixo, na área de mineração a sudeste; o arraial do Rio Grande, ligado à exploração do vale do rio Grande; e o arraial de Cima, junto às jazidas auríferas do sudoeste. O arraial do Tijuco possuía melhores condições de desenvolvimento, graças a sua posição central e à topografia privilegiada (CAIRO e PESSÔA, 2007, p. 84). Com o tempo, o adensamento foi se tornando mais significativo em torno do arraial do Tijuco, e a região do arraial do Rio Grande – onde, primitivamente, o povoado havia surgido – se conformaria em uma área de ocupação mais rarefeita. Não chegando a constituir um tra- çado com reticulado inteiramente uniforme, o núcleo combinava situações de arruamentos retificados, compostos com outros mais irregulares nas áreas mais periféricas. Essa configuração mais ordenada correspondia ao centro do arraial, delimitado pelas ruas do Rosário, do Contrato e Direita, onde a topografia permitiu o desenvolvimento de caminhos ao longo das curvas de nível da encosta, entrecortados, perpendicularmente, por ruas paralelas. Ligando o arraial de Baixo ao Tijuco, formaram-se as rotas que, mais tarde, configurariam as ruas do Carmo, da Quitanda e do Bonfim, conectando as duas igrejas mais antigas: a de Santo Antô- nio e a de Nossa Senhora do Rosário. Além do traçado não seguir uma trama reticulada (Figura 2) – na medida em que seguia a topografia irregular diamantina –, o alinhamento das vias também não era constante, pois as travessas e becos, e mesmo os percursos principais configuravam espaços sinuosos, ora alargando-se ou estreitando-se, conforme o avanço ou recuo das testadas dos lotes. Os largos que se formavam nos espaços mais amplos, no entanto, não chegavam a constituir praças, fato que chamou a atenção de Saint- -Hilaire, que registrou: “Há diversas praças públicas em Tijuco, mas são tão pequenas e irregulares que apenas merecem o nome de encruzilhadas” (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 29). Faziam parte do cenário urbano as “diversas chácaras com áreas cultivadas, terrenos de pastos e currais mais ou menos alargados que se desdobravam em campos e vias de acesso a outros 11.Cairo e Pessôa sugerem que a configuração desse pequeno povoado pudesse ser semelhante à encontrada hoje nos arraiais ainda existentes na região, como Sopa, Guinda, Extração e Inhaí, onde se observa “um grupo de casas formando um pequeno terreiro em torno de uma capela, [...], ou mesmo um caminho que se alarga em determinados trechos, como podemos ver hoje em Extração e como supomos que era o primitivo Tijuco pela representação da área do Burgalhau, Beata e Espírito Santo na planta setecentista existente no Arquivo Histó- rico do Exército, no Rio de Janeiro” (2007, p. 84). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 45 povoados”, além das “faixas verdes formadas pelas hortas e pomares atrás das casas” (PESTANA, 2002, p. 157), onde era comum encontrar vá- rias espécies de árvores frutíferas, como laranjeiras, bananeiras, pessegueiros, jabuticabeiras e figueiras, bem como verduras e ervas medicinais. 12.Igrejas de Santo Antônio, N. S. do Rosário (erguida em 1731 e ampliada a partir de 1772), N. S. do Carmo (1758 a 1775), N. S. do Amparo (1773 a 1766), N. S. das Mercês (1778 a 1784), N. S. do Bonfim (anterior a 1771), São Francisco (1762 a 1766) e a capela a Santa Quitéria, erigida junto à residência do intendente João Fernandes de Oliveira, em 1771 e demolida em época desconhecida. Cf. Pestana (2002, p. 166; 2001, p. 586). Nessa ocasião, segundo Reis Filho (2000, p. 380), a vila já estaria plenamente desenvolvida, sendo que a matriz de Santo Antônio era a construção de maior porte do núcleo urbano – que já contava com um total de oito templos religiosos12. Do ponto de vista urbanístico, chama a atenção, a integração das constru- ções religiosas ao casario. À exceção da matriz Figura 2: Arraial do Tijuco em 1784. Fonte: Reis Filho (2000). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 46 de Santo Antônio e da igreja do Rosário – que aparecem de forma isolada –, os templos já construídos até o final do século 18 estavam implantados de forma contínua ao conjunto de casas, geralmente apresentando um pequeno adro e uma escala modesta (Figuras 3 a 7), especialmente, quando comparados às demais cidades mineiras, onde, “seguindo as normas Figuras 3, 4 e 5: Igrejas de N. S. das Mercês, do Amparo e de N. S. do Rosário. s/data. Fonte: Centro de Memória / Fevale. Acervo Chichico Alkmim. Figuras 6 e 7: À esquerda, ao fundo, igreja de Santo Antô- nio, e à direita, igreja de São Francisco com sua escadaria frontal. Fonte: CDI/13ª SR-IPHAN/MG eclesiásticas, as igrejas se destacam na paisagem com a primazia e predomínio absoluto, afastadas e isoladas das casas particulares (PESTANA, 2001, p. 586). Na verdade, à simplicidade de seus espaços externos e às singelas dimensões que a técnica construtiva possibilitava13, sobrepunha-se, na 13.O sistema construtivo predominante é a taipa de sebe, ou pau-a-pique, apoiado em fundações em pedra. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 47 maior parte dos edifícios religiosos dessa época, uma excepcional riqueza de detalhes na decora- ção dos interiores: Os altares principais apresentam a maior concentração decorativa, variando entre os estilos barroco-rococó, rococó ou de estrutura neoclássica. Os altares colaterais em posição oblíqua à nave seguem o mesmo tratamento plástico, proporcionando unidade estilística ao conjunto. Quase todos os altares apresentam talha simples, sem decoração escultórica, mas com a singular solução da composição filigranada de folha de ouro. Completando a decoração, diversas imagens portuguesas barrocas do século XVIII em madeira com douramento e policromia e interessantes imagens de roca. A decoração exuberante das igrejas está destacada, especialmente na pintura ilusionista dos forros, policromia e douramento dos altares realizados pelo guarda-mor português José Soares de Araújo (PESTANA, 2002, p. 167). Relativamente ao casario e à configuração dos lotes há uma segunda planta (Figura 8) que nos dá pistas sobre as divisões das unidades residenciais. É possível observar a sequência contínua de casas que nas ruas mais centrais se dispõem, lado a lado, sem guardar espaço entre as unidades, com lotes não muito regulares; porém, seguindo a lógica do terreno contíguo, formando sempre uma cadência, em vez de uma ruptura. Na medida em que o olhar se afasta do núcleo central – o Tijuco –, esse ritmo constante, dado pelas fileiras de casas quase ininterruptas, ao longo das vias a becos principais, vai sendo entrecortado por vazios até novamente encontrar a paisagem natural e a barreira da serra, a qual tinha que ser vencida pelos viajantes estrangeiros que, no século 19, visitariam e se surpreenderiam com o arraial do Tijuco. Figura 8: Arraial do Tijuco [178414]. Fonte: Pessôa (2007). 14.A informação no canto do desenho indica a data de 1784, apesar dos autores indicarem a data de 1772. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 48 Impressões de viajantes: arquitetura e paisagem do século 19 Se no século 18 são escassas as fontes documentais a respeito da dinâmica urbana da futura Diamantina e da sua configuração espacial, a partir do 19 os relatos de viajantes estrangeiros que visitaram o local vêm preencher um pouco essa lacuna, trazendo valiosas referências sobre aspectos urbanos e da vida social. Entre os que visitaram o local e deixaram seus escritos estão o francês Auguste de Saint-Hilaire, Richard Burton, Spix e Martius, John Mawe e João Maurício Rugendas. No período posterior a 1808, dois viajantes – John Mawe15 e Saint-Hilaire – apresentam detalhadas e contrastantes descrições do arraial do Tijuco. Enquanto Mawe registrou: Por estar situado em distrito estéril, que nada produz para a alimentação de seus habitantes, em número de seis mil, o Tejuco se abastece em fazendas afastadas várias léguas. O pão era aí extremamente caro. O milho, com que ele é feito, custava de 5s. 6d. a 6s. o alqueire. O feijão e outros legumes vendiam-se na mesma proporção. A carne de vaca era má, devido à estiagem; o porco e a caça abundavam. Não me recordo de ter visto em outro lugar tantos pobres, sobretudo mulheres. Cento e cinquenta desses infelizes vinham todas as semanas receber a farinha que o intendente lhes dava. São manufaturas para lhes dar trabalho; poderiam, entretanto, ser as mesmas introduzidas nesse lugar, se os habitantes fossem dotados da atividade necessária. A terra produziria sem muita dificuldade colheitas excelentes, desde que fizessem quaisquer cercados. Em verdade, é empresa árdua, mas não tão prodigiosa que não se tenha a esperança de vê-la executada. Para as manufaturas, há o algodão de Minas Novas, de sessenta a cem milhas de distância. Ele passa deste lugar para a capital (MAWE, 1944, p. 221-222). Mais adiante, complementando seu olhar estrangeiro, seguiu relatando como vivia o outro extremo da sociedade diamantina: Apesar da preguiça de seus habitantes, o Tejuco pode ser chamado de lugar florescente, por causa da circulação resultante da exploração de diamantes. As somas pagas pelo governo pelo aluguel dos negros, o salário dos oficiais e diferentes artigos, tais como o nitro e o ferro, sobem a 35.000 libras; isso e mais a despesa dos habitantes da cidade e das vizinhanças movimentam grande comércio. As lojas estão abarrotadas de mercadorias de fábricas inglesas, assim como presuntos, queijo, manteiga, cerveja e outros produtos de consumo. Animais carregados deles chegam muitas vezes da 15.A primeira edição inglesa Bahia e do Rio de Janeiro. (MAWE, 1944, p.222) data de 1812. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 49 O francês Saint-Hilaire complementa e, ao mesmo tempo, discorda da visão de Mawe, comparando o Tijuco com outras localidades visitadas por ele no mesmo período: Encontrei nesta localidade mais instrução que em todo o resto do Brasil, mais gosto pela literatura e um desejo mais vivo de se instruir. Vá- rios moços (1818), cheios de nobre entusiasmo, aprenderam o francês, sem terem mestres [...]. Os habitantes do Tijuco são principalmente notáveis na arte caligráfica e podem a esse respeito rivalizar com os mais hábeis ingleses. Tanto quanto pude julgar eles não são menos hábeis na arte musical que os outros habitantes da Província, e uma missa cantada que assisti na Igreja de S. Antonio não me pareceu inferior à que assisti alguns meses antes na Vila do Príncipe. [...] aí reina um ar de abastança que não havia observado em nenhuma parte da Província. [...] É falso entretanto que haja em Tijuco, como pretende John Mawe, mais mendigos que em outras povoações, e pode- -se mesmo dizer que aí se encontram indiví- duos andrajosos mais raramente que em Vila Rica e Vila do Príncipe. Os homens de nossa raça acham meios de se empregarem na extra- ção dos diamantes como feitores, ou nas lojas como caixeiros, e as pessoas de cor exercem os outros vários serviços (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 33). Também Spix e Martius, que viajaram pelo Brasil entre 1817 e 1820, descreveram o arraial o Tijuco como um dos mais florescentes do país, com “casas [...] de dois pavimentos, asseadas e cômodas; [...] lojas [...] bem abastecidas com artigos de toda a espécie; e [...] muito bom o calçamento das ruas, o qual prossegue, [...], na via principal, por meia hora fora do arraial” (SPIX e MARTIUS, 1976, p. 24, apud D’ASSUMPÇÃO, op.cit., p. 86). Saint- -Hilaire, apesar de concordar sobre os caminhos que levavam ao arraial, dizendo terem sido reparados em época recente16, descreveu as ruas do Tijuco em 1817 como sendo “largas, muito limpas, mas muito mal calçadas; quase todas são em rampa; o que é consequência do modo em que a aldeia foi colocada”, e seguiu dizendo que: As casas construídas umas em barro e madeira, outras com adobes, são cobertas de telhas, brancas por fora e geralmente bem cuidadas. A cercadura das portas e das janelas é pintada de diferentes cores, segundo o gosto dos proprietários e, em muitas casas as janelas têm vidraças17. As rótulas que tornam tão tristes as casas de Vila Rica são muito raras em Tijuco, e os telhados aqui não fazem abas tão grandes para fora das paredes. Quando fiz minhas visitas de despedida, tive ocasião de entrar nas principais casas de Tijuco e elas pareceram- -me de extrema limpeza. As paredes das peças onde fui recebido estavam caiadas, os lambris e os rodapés pintados à imitação de mármore. 16.Segundo Affonso Ávila, a maior preocupação, relativa à conservação das vias no arraial do Tijuco, consistia no “[...] empedramento de trechos de caminhos, urbanos ou de ligação entre os diferentes núcleos de povoamento, mais afetados pela erosão ou atoleiros, de modo a tornar mais permanente o trânsito de pedestres, cavaleiros e tropas. Só mais tarde se cuidaria do revestimento propriamente dito das vias públicas no núcleo do arraial. O uso de pedras irregulares ou seixos rolados, único material de que ali à época se dispunha, sem grandes exigências de técnica ou mão-de-obra, fazia às vezes penoso o trânsito por esses caminhos e ruas, daí as observações de alguns viajantes estrangeiros sobre o ”mau calçamento” do Tijuco. O problema perduraria até fins do século XIX, quando, depois de 1877, se introduziram os passeios centrais de lajes mais regulares a que o povo denominou ‘capistranas’, por dever-se a iniciativa do novo calçamento ao então presidente da província João Capistrano Bandeira de Melo. [...]” (ÁVILA, 1979, p. 480). 17.Segundo Pestana, os vãos podiam ser encimados por vergas retas ou curvas, ou, em alguns casos, em ponta; e, no caso das janelas, apresentavam os mais variados tipos de aberturas: “de guilhotina com caixilho; janelas de treliça e bandeiras de balaústres torneados, compondo uma feição mais fechada à edificação; e janelas de sacada com postigos e caixilhos sobrepostos” (2001, p. 585). Havia ainda, como cita Saint-Hilaire, os muxarabis, segundo Corona e Lemos: “nome que de uma maneira geral se dá ao anteparo perfurado colocado na frente de uma janela ou na extremidade de uma saliência abalcoada, com o fito de se obter sombra e de se poder olhar para o exterior sem se observado. Na quase totalidade das vezes tais anteparos perfurados eram constituídos de um xadrez de fasquias de madeira, que nos caixilhos de janelas recebeu o nome de rótulas”. Definição do Dicionário da Arquitetura Brasileira (1972, p. 330). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 50 Quanto aos móveis, eram sempre em pequeno número, sendo em geral tamboretes cobertos de couro cru, cadeiras de grande espaldar, bancos e mesas. Os jardins são muito numerosos e cada casa tem, por assim dizer, o seu. Neles vêem-se laranjeiras, bananeiras, pessegueiros, jabuticabeiras, algumas figueiras, um pequeno número de pinheiros (Araucária brasiliensis) e alguns marmeleiros. Cultivam-se também couves, alfaces, chicórea, batata, algumas ervas medicinais e flores, entre as quais o cravo é a espé- cie favorita. Os jardins de Tijuco pareceram-me geralmente melhor cuidados que os que havia visto em outros lugares; entretanto eles são dispostos sem ordem e sem simetria. De qualquer modo resultam perspectivas muito agradáveis dessa mistura de casas e jardins dispostos irregularmente sobre um plano inclinado. (SAINT- -HILAIRE, 1974 apud D’ASSUMPÇÃO, 1995, p. 87. Grifos nossos) Rugendas confirma essas impressões, pois, passando pelo Tijuco por volta de 1825, documentou: Tijuco é florescente e conta de 7 a 8000 habitantes. O panorama é agradável, as casas têm em geral dois andares e são as mais limpas e mais bem construídas do que no resto da Província. Há em Tijuco muitos funcionários e negociantes, o que dá maior encanto às relações sociais. O comércio é grande, principalmente de artigos de luxo e modas de Paris. No entanto, Tijuco não é uma cidade, mas apenas um arraial, embora mereça muito mais do que Vila do Príncipe, que é a sede da comarca, ser chamado cidade ou vila.18 O inglês George Gardner, por sua vez, em sua visita à cidade, em 1836, referiu-se às suas ruas como muito irregulares, estreitas e mal calçadas, opinião de que compartilhava John Mawe, que registrou em seus apontamentos: “O Tejuco, pela sua posição, no declive de uma montanha, é irregularmente construído. As ruas são desiguais...”19. Richard Burton, que visitou Diamantina em 186720, notou que a povoação “mudou muito, depois de 1801, quando era o ‘Arraial do Tijuco’ e só contava com casas de pau-a-pique” e, diferentemente de Saint-Hilaire, descreveu as edificações como “um lençol de casas pintadas de muitas cores, cor-de-rosa, branco e amarelo”. Apesar de elogiar o cal- çamento de algumas ruas da cidade, julgou-a demasiadamente íngreme, tornando “... impossível a utilização da carroça e o rodar de uma carruagem; aqui como em São João del Rei, a liteira é o único recurso, e é vista no saguão de todas as casas ricas”21. Além de comprovar a situação do calçamento e da topografia, a iconografia resgatada traz mais informações sobre o núcleo urbano do século 18.RUGENDAS, João Maurício. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Martins, Ed. da Universidade de São Paulo, 1972 apud D’Assumpção (1995, p. 90). 19.Mawe (1944, p. 222). 20.Cf. D’Assumpção (1995, p. 92). 21. BURTON, Richard. Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977 apud D’Assumpção (1995, p. 88). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 51 19 e seu casario. A primeira delas diz respeito à variedade de testadas dos lotes e de gabaritos encontrados, ou seja, de como conviviam, nesse momento, predominantemente, a casa térrea e o sobrado, de dois e até três pavimentos. Não fugindo à regra, em Diamantina, os comerciantes mais prósperos e os altos funcionários da Real Extração fixariam residência nos sobrados mais requintados das ruas centrais do núcleo urbano, como a Rua Direita (Figura 9). Ainda sobre o aspecto exterior das construções, podemos confirmar o que a observação da cartografia do século 18 nos revelou: a implantação das edificações, na Rua Direita, em sequências contínuas, sem guardar espaços entre as unidades – influência do modo de construir tradicional aos portugueses –, o que iria, inevitavelmente, moldar as características de seus espaços internos. A típica casa urbana em Diamantina seguia o mesmo padrão das demais cidades coloniais brasileiras22. Nos sobrados, o partido mais comum apresentava corredor central, interligando a rua ao quintal e distribuindo os cômodos, e nas casas térreas, geralmente de pequenas dimensões, o corredor, central ou lateral, distribuía os cômodos, do mesmo modo, em sucessão longitudinal. Os sobrados geralmente apresentavam um programa misto, com funções bem distintas, separando as áreas de convívio íntimo, reservadas à família, daquelas restritas ao uso comercial. Pestana complementa: O térreo era a área do comércio, negócios e trabalho, [...]. A escada de acesso ao primeiro andar não apresentava nenhum tratamento especial, sendo quase sempre transversal, podendo desdobrar-se em dois ou três lances. Nos sobrados de maiores dimensões encontramos um vestíbulo com escada, geralmente transversal, em dois lances. O pátio, de um modo geral, era Figura 9: Rua Direita, fotografada por Augusto Riedel (ca. 1868).Fonte: Lago (2005). 22.Cf. Vasconcellos (1977, p. 145); D’Assumpção (1995, p. 103); Pestana (2001, p. 583). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 52 fechado por um muro e servia para abrigo dos animais, confecção e tratamento de algumas mercadorias. Apresentam alpendre ao longo de um ou de mais lados da edificação, projetando-se em balanço do corpo do prédio, e eram destinados a aumentar a comodidade, aproveitar a luz e o ar, recebendo um tratamento especial no guarda-corpo formado de balaústre de madeira recortada. Já as casas de chácaras23 estavam situadas na periferia do centro urbano e de um modo geral abrangiam o seguinte programa: casa, senzala, jardim, horta, pomar, mina de água, galinheiro, chiqueiro, moinho e a criação de diversos tipos de animais domésticos. Pertenciam a pessoas abastadas, que se beneficiavam da proximidade com o centro da cidade para participar das atividades da economia urbana (2001, p. 584). Em Diamantina, assim como em outros núcleos das proximidades, a topografia irregular, conformando ora terrenos em declive, ora em aclive em relação ao desenho dos lotes, garantia distintas situações de apropriação: casas térreas no nível da via pública, com mais um pavimento no trecho posterior, junto ao quintal; em outro arranjo, casas apresentando dois pavimentos na frente e apenas um, ao fundo; ou ainda, com o aproveitamento dos desníveis de terrenos transversalmente inclinados, gerando os partidos semi-assobradados a exigir escadas de acesso, denominados pedrais24. Mas se o programa residencial, sua conformação no lote e o arranjo do casario, ao longo das vias, não diferiam muito do encontrado em outros núcleos surgidos no mesmo período, Diamantina apresentava particularidades que a destacavam do conjunto de cidades mineiras. No caso da solução formal das fachadas, destaca-se o tratamento dado ao acabamento das coberturas, em telhas de barro, guarnecidas por beirais em cimalha de madeira com cachorros trabalhados, que chamaram a atenção de José Washt Rodrigues, que classificou os beirais de “verdadeiras obras-primas de carpintaria”, e os descreveu como elementos formados por “largas molduras de madeira, de que saem os cachorros intercalados com as pontas grossas das linhas, todos recortados em perfis caprichosos” (1981, p. 314 apud PESTANA, 2001, p. 584). Fez menção ainda à “ornamentação exterior das casas em cores vivas e com desenhos caprichosos; rústicos ou ingênuos, mas sempre interessantes no imprevisto de sua originalidade, na escolha das cores ou nos próprios motivos – por vezes estranhos” (RODRIGUES, 1979, p. 158), em texto que acompanha um de seus registros mais ricamente coloridos (Figura 10). E, continuava, o autor, destacando as peculiaridades encontradas em Diamantina, que a singularizam frente a outros conjuntos urbanos por ele documentados: Mais notável ainda é o colorido alegre, variado e harmonioso, que cobre não só paredes, como 23 Til Pestana (2001, p. 584) lembra que destas, talvez, a mais notória tenha sido, de fato, a casa de Chica da Silva, conforme Machado Filho (1980., p. 265-67), estaria localizada nas proximidades do Junta-Junta e da Palha, no subúrbio de Diamantina, próximo à confluência dos rios Grande e Piruruca. 24.Sylvio de Vasconcellos (1977, p. 81) explica o termo: “Havendo desacordo entre a rua e os pisos das casas, ficam estas em parte soterradas ou elevadas, como ainda hoje se mostram, só sendo mantidos os seus patamares quando a retirada destes compromete a estabilidade de determinada construção. Neste caso, reduzidos à largura do passeio, ou ainda menores, arrimam-se em cortinas de alvenaria, com escadas para o trânsito. Estes pedrais, frequentes em outras regiões do Estado, como no arraial do Tijuco, cidade de Diamantina, são, todavia, raros, em Vila Rica, [...]”. Ainda conforme Ávila, Gontijo e Machado, pedral significa: “cortina de alvenaria de pedra, usada para correção de nível, à maneira de arrimo em patamar, completado por escada de acesso, entre a rua e a entrada de uma edificação” (1996, p. 71). usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 53 molduras, beirais e janelas, de suas casas e igrejas: marmorizados dos batentes, festões de flores nos frisos ou ornatos extravagantes, tudo isto pintado em verde, ocre, azul e vermelho, em variados tons, bizarramente dispostos. O mesmo ocorre nas sacadas de rótulas ou de torneados, onde cada uma das partes é pintada em cor diferente (RODRIGUES, 1981, p. 314 apud PESTANA, 2001, p. 584). Essa profusão de cores está intrinsecamente ligada ao sistema construtivo, pois era favorecida pela presença da madeira, inclusive nos cunhais, ao contrário de outras cidades, onde a presen- ça de cantaria, tanto junto aos vãos como nos cunhais, não permitiria a aplicação de pintura. A pedra, em Diamantina, era utilizada apenas nos alicerces ou, em pequenas dimensões, misturada ao barro nas vedações – a chamada “taipa de formigão25, um processo com características próprias [...] onde as pedras eram recolhidas no próprio local da construção – o cascalho que, na região, tem o nome de ‘cristal podre’ ou ‘piruruca’” (ÁVILA, 1979, p. 474). Além da taipa, eram sistemas comumente encontrados, nas vedações, o pau-a-pique e também os adobes. Outro registro fotográfico, mostrando a igreja do Carmo com extenso muro em adobe com cobertura vegetal, delimitando o provável pomar do palácio episcopal, torna evidente a presença marcante da serra, conformando uma moldura indissociável do contexto urbano ali implantado (Figura 11). A data dos registros fotográficos de Riedel assinala o início de um período de relativa estagnação do crescimento da cidade. Afinal, desde 1845 havia sido extinto o sistema de Real Extração, passando a ser livre o arrendamento das jazidas, então sob a fiscalização da Inspetoria dos Terrenos Diamantinos até 1906. Os servi- ços de lapidação de diamantes e a instalação de companhias estrangeiras de mineração mecanizada representaram esforços para dinamização Figura 10: Estampa de número 76 que ilustra o exemplar Documentário Arquitetônico de Wasth Rodrigues, representando os beirais pintados em Diamantina. Fonte: Rodrigues (1979). 25. D’Assumpção (1995, p. 103-104) informa que, em Diamantina, na década de 1980, ainda podiam ser vistos muros de divisas de terreno utilizando a técnica de formigão ou cangicado, em que, ao barro eram agregadas pequenas pedras de variadas granulometrias. As paredes de pedra, por sua vez, estariam praticamente ausentes da cidade. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 54 Figura 11: Palácio do Bispo com Igreja do Carmo ao fundo [Augusto Riedel, ca.1868]. Fonte: Lago (2005). da atividade. Essas tentativas foram, no entanto, duramente afetadas com a descoberta de diamantes na África do Sul, em 1867. Os trabalhos de extração eram cada vez mais difíceis, os trabalhadores emigravam para a lavoura cafeeira e junto com estes, também o capital (MACHADO FILHO, 1980, p. 192). Praticamente não seriam realizados grandes investimentos em melhoramentos urbanos e o núcleo central permaneceria quase inalterado ao longo de todo o século 19. Dentro do quadro das edificações mais expressivas que foram, então, construídas, poder-se-ia destacar a capela de Nossa Senhora da Luz, de princí- pios do século 19 – em torno da qual se desenvolveu o bairro da Glória –; o teatro Santa Isabel, iniciado em 1841 e demolido em 1912 para, em seu lugar, ser construído o edifício da cadeia pública. No final do século 19, tentativas foram feitas para dinamizar a economia da região: em 1876, teve início a industrializa- usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 55 Figuras 12 e 13: Mercado municipal e conjunto do seminário e igreja Sagrado Coração de Jesus, século 20. Fonte: CDI/13ª SR-IPHAN/MG [fig. 23]; Acervo Centro de Memória Fevale. Foto Chichico Alkimim. ção local, com a inauguração de uma fábrica de tecidos em Biribiri, nas proximidades de Diamantina; um ano depois, foi fundada nova fá- brica em Gouveia, a dois quilômetros, além da Companhia de Fiação e Tecidos Santa Bárbara, criada em 1886, no vizinho município de Buenó- polis. Em Diamantina também foram incentivadas pequenas indústrias, como as de lapidação de diamantes e de produção de vinho. Foram construídos nessa época o prédio do mercado do mercado municipal, de 1889, no largo da Cavalhada Nova, e o seminário e a igreja do Sagrado Coração de Jesus, em torno dos quais teve origem o bairro Venda Nova (Figuras 12 e 13)26. Século 20: alterações e permanências na estrutura consolidada Muito embora o desenvolvimento das indústrias têxteis na região e a consolidação de centro regional que a cidade de Diamantina assumiu já pudessem sinalizar as transforma- ções que se processariam em sua configura- ção urbana, o traçado da área central permaneceu praticamente intacto, ao menos até a primeira década do século 20. O ano de 1914 assinalou, no entanto, com a chegada da ferrovia27 e da estação ferroviária, construída nos padrões das estações inglesas, o surgimento 26.Ávila (1979, p. 479-480); Cairo e Pessôa (2007, p. 84-85). 27.A chegada do trem à Diamantina permitiria, dez anos mais tarde, em 1924, que se realizasse a viagem do arquiteto Lucio Costa à cidade. O próprio Lucio registraria, em relato, suas primeiras impressões, antecipando, em dois anos, a data da viagem: “Em 1922, comissionado pela Sociedade Brasileira de Belas Artes, conheci Diamantina. Foram trinta e tantas horas de trem com baldeação em Corintho. [...] Lá chegando caí em cheio no passado, no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi uma revelação: casas, igrejas, pousadas dos tropeiros, era tudo de pau-a-pique, ou seja, fortes arcabouços de madeira – esteios, baldrames, frechais – enquadrando paredes de trama barreada, a chamada taipa de mão, ou de sebe, ao contrário de São Paulo, onde a taipa de pilão imperava. [...] No último dia, já tarde, subi ao campanário para me despedir da cidade e lá fiquei, olhando os telhados, até escurecer”. Cf. Costa, 1995, p. 27-28. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 56 de um novo eixo de expansão28. A partir de então, a cidade assumiria, definitivamente, a posição de polo aglutinador das funções administrativas e econômicas da microrregião do vale do Alto Jequitinhonha, e mudanças mais significativas começariam a se manifestar na área central e em seu entorno imediato. A primeira expressão desse novo momento foi marcante e deu-se, justamente, em um dos locais mais significativos de seu conjunto urbano – a Rua Direita –, por meio da demolição da igreja de Santo Antônio, em 1932, e o início da construção da catedral metropolitana, cujas obras, executadas pela firma Duarte & Irmão e, a partir de 1935, pelo construtor Celso T. Werneck Machado, perdurariam até 1938, e cujos esforços para angariar recursos teriam ampla divulgação no suplemento A Catedral, do jornal A Estrela Polar. Curiosamente, a construção em estilo neobarroco que deu lugar à antiga Sé foi executada a partir de um risco do desenhista e estudioso da arquitetura do período colonial José Wasth Rodrigues29. A demolição do antigo templo é emblemática sob variados aspectos, mas especialmente do ponto de vista histórico, arquitetônico e urbanístico. Historica e arquitetonicamente, sublinhamos que se tratava de uma das construções religiosas mais antigas da cidade30, cuja linguagem formal estabelecia relações de proporção, escala e de materiais com as construções civis que se apresentavam ao redor. Estilisticamente, a proposta da nova construção, em seu conjunto, em quase nada se assemelha às construções do entorno, apesar de ter se apropriado de fragmentos de seu repertório básico. Mas isso não diferia muito das regras compositivas do ecletismo que já se verificava desde fins do século 19, ainda que em construções esparsas na cidade. Urbanisticamente, o impacto que causou a nova estrutura foi ainda maior. Anteriormente, a existência da antiga matriz de Santo Antônio parecia garantir ao conjunto uma harmonia: a implantação dava-se no alinhamento da Rua Direita – como as igrejas do Amparo, do Bonfim e do Carmo –, e sua escala não ultrapassava em demasia as dimensões do casario, garantindo ainda a existência de um largo fronteiro ao antigo sobrado da Intendência. A nova catedral rompeu, propositalmente, com as velhas proporções. O projeto da nova catedral não deixa de ser coerente com o desejo de renovação do espaço urbano, desejo este que vem acompanhado de um incessante movimento pendular, que oscila entre o apego às tradições e o apelo às “modernizações”31, e que se concretiza, neste caso, com o arrasamento do existente e a construção do novo. (Figuras 14 e 15) É nesse momento também que se realiza o tombamento do conjunto urbano de Diamanti- 28.Nas zonas de expansão, Cairo e Pessôa destacam os bairros: Vila Romana, que cresceria no entorno da via férrea, as novas áreas de habitação no Alto do Bom Jesus e nas vilas Operária e Santo Antônio, anteriormente a 1955, e, mais tarde, os bairros de Fá- tima, Presidente e Bela Vista (2007, p. 479-480). 29. É provável que os desenhos para o projeto da catedral tenham sido realizados durante sua visita realizada entre 1919 e 1930, para documentação dos detalhes e da arquitetura, cujos registros encontram-se na publicação Documentário Arquitetônico relativo à antiga construção civil no Brasil. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979. 5ª ed. As informações acima sobre a demolição da igreja de Santo Antônio, e construção da catedral metropolitana foram extraídas de Pestana (2001, p. 3), e Cairo e Pessôa (2007, p. 85). 30.Apesar de não se tratar da capela primitiva consagrada a Santo Antônio, localizada no Burgalhau e construída no iní- cio do século 18 – então já há muito demolida –, mas, sim, do edifício erigido em 1750, constitui, junto com a capela- -mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, um dos remanescentes religiosos mais antigos do núcleo diamantino. 31. Chuva (1998, p. 76-77) explica que o termo “modernidade” foi sendo apropriado pelo movimento modernista e pelas frações de classe que o patrocinaram, nos anos 1920, e que “num esforço sistemá- tico pela instauração de um padrão de identidade, no qual a época colonial passava a ser valorizada e concebida como as raízes autenticamente brasileiras, em desprezo ao europeísmo, cujas expressões artísticas modernas, até então, constituíam os símbolos de modernidade e atualização”. No campo da arquitetura, o movimento da “arquitetura neocolonial”, que mantinha relações com a Sociedade Brasileira de Belas Artes, propagava a ideia de valorização da arquitetura colonial e da herança artística luso-brasileira na produ- ção arquitetônica. As duas representações – em torno do “moderno” e do “nacional” – passaram a travar franca disputa. Os arquitetos modernistas, embora valorizando também um resgate das tradições construtivas coloniais, criticavam a tanto a reprodução do “estilo colonial” quanto os estilos importados. Para eles, isso não se justificava frente aos avanços tecnológicos obtidos – meios através dos quais se poderia realizar formas contemporâ- neas de expressão. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 57 na, apenas um ano após a criação do SPHAN, em 1937. Os arquitetos modernistas que faziam parte do quadro técnico do órgão irão, a partir de então, influir, de maneira decisiva na cidade que irá se desenhar nos próximos anos. É interessante resgatar o relato de Luiz Gonzaga dos Santos, carpinteiro, nascido em Diamantina em 1898, que vivenciou a cidade nesse período de intensas transformações: Em Diamantina, para os anos de 1939, 1940 e 1941 já se notava um elevado grau de desenvolvimento, já tinha um bom serviço de água, realização do prefeito nosso conterrâneo Juscelino Demerval da Fonseca, em colaboração com a E. F. Central do Brasil, um dos maiores benefícios que fizeram à nossa cidade. Depois as suas ruas principais calçadas de lajes, desaparecendo parte dos inconvenientes “pés-de-moleques” que ainda se vêem em alguns becos e ruas mais afastados do centro da cidade. Serviços esses realizados e iniciados em grande parte na gestão do prefeito Sr. Cosme Alves do Couto. A Avenida Três de Maio, Largo D. João e a Grupiara toda arborizada, [...]. [...] Nessa época, já tinham sido retiradas quase todas as repartições públicas dos prédios particulares para os próprios do Governo, como Quartel do 3º Batalhão, os Grupos Escolares, o Fórum, as Coletorias e Cartórios em um só pré- dio, o Departamento dos Correios e Telégrafos em um majestoso prédio na Praça Dr. Prado. Foi também ali construído um prédio para a Cadeia Pública, sendo esta um pouco mais higiê- nica e confortável. Já funcionavam alguns estabelecimentos de crédito (Bancos), um grande hotel e assim já se notava o princípio de grande desenvolvimento da cidade. Passa a nossa cidade juntamente com outras em todo o Brasil para o patrimônio histórico nacional, sendo aqui criado um departamento. Agora já não se podia fazer nenhum melhoramento por pequeno que fosse sem ordem e direção do Patrimônio, o que tirava um pouco o seu progresso, mas em compensação acabou a dor de cabeça dos católicos para efetuarem os consertos de que tanto necessitavam as nossas igrejas, algumas ainda do tempo do Tijuco. O Patrimônio tomou a seus cuidados a reconstrução das seguintes igrejas: Carmo, São Francisco, Mercês, Rosário, Luz, Bonfim, enfim, de todas aquelas que fazem parte do perímetro pertencente ao referido Patrimônio, da mesma maneira em alguns prédios particulares como o Colégio de Nossa Senhora das Dores e os Hospitais etc. A política estava forte e trazendo grandes vantagens para Diamantina, pois começava a elevar-se nosso conterrâneo e grande amigo de sua terra natal, o então deputado Juscelino Kubitschek de Oliveira. A nossa cidade começou a progredir assustadoramente e obtinha tudo com facilidade (SANTOS, 1963, p. 77-78, grifo nosso). Figuras 14 e 15: Antiga igreja de Santo Antônio e inserção da nova Sé na paisagem diamantina.Fonte: ACI/RJ-SI. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 58 Aos técnicos do SPHAN, uma vez que todo o conjunto era tombado, competia zelar pela “proteção” daquele bem tornado “patrimônio nacional”. A tarefa geraria situações de extrema complexidade e de tensões. Na verdade, os esforços do SPHAN se inseriam na tentativa de moldar um novo perfil de Nação, em que a história seria recontada por meio de bens minuciosamente selecionados, e onde as cidades mineiras se ofereciam como prova mais palpável de um passado que se queria mitificar32. Referências Bibliográficas ÁVILA, Affonso. “Circuito do Diamante – IV. Atlas do monumento histórico e artístico de Minas Gerais. Diamantina: Patrimônio Cultural”. Revista Fundação JP, v.9. n.7, julho 1979. Belo Horizonte: Minas Gráfica editora, 1979. p.464-538. ÁVILA, Affonso; GONTJO, João Marcos Machado; MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco Mineiro: glossário de arquitetura e ornamentação. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996. CAIRO, Cristina; PESSÔA, José. “Diamantina, MG”. In: PÊSSOA, José; PICCINATO, Giorgio (orgs.). Atlas de centros históricos do Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. p. 82-89. CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 30 e 40). Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós- -Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 1998. D’ASSUMPÇÃO, Livia Romanelli. Preservação Urbana em Diamantina: Aspectos teóricos e a prática institucional, 1938-1970. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Arquitetura da UFBA, 1995. FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ______. O livro da capa verde: O regimento diamantino de 1771 e a vida no distrito diamantino no período da Real Extração. São Paulo: AnnaBlume; Belo Horizonte: PPGH, UFMG, 2008. LAGO, Bia Corrêa do. Os Fotógrafos do Império: a fotografia brasileira no Século XIX. Rio de Janeiro: Capivara, 2005. MACHADO FILHO, Aires da Mata. Arraial do Tijuco, cidade Diamantina. 3.ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. MARX, Murillo. Cidade no Brasil terra de quem? São Paulo: EDUSP-Nobel, 1991. 32.Márcia Chuva (1998, p. 185, grifo do autor) complementa: “A Nação torna-se palpável, palmeável, além de visível. A crença na ‘causa’ deu suporte à concepção de uma história ‘comprovada’ pela materialidade dos objetos-testemunhos. A seleção de bens que representassem uma história ‘remota’ e originária’, possibilitou a omissão dos conflitos na história da Nação, que se fundou pela possibilidade de, ao distanciar-se do presente, construir heróis nacionais e uma origem ‘pura’, que deveriam informar as ações no futuro e conter as diferenças no presente. O mesmo pode ser dito, quando se identificou a arquitetura moderna com a do período colonial. Negava- -se [sic] as produções contemporâneas diferentes, que não se enquadrassem nesse padrão, desqualificando-as para o confronto”. usjt • arq.urb • número 8 | segundo semestre de 2012 Cristiane Souza Gonçalves | Diamantina: breve relato de sua formação 59 MAWE, John. Viagem ao interior do Brasil, principalmente aos Distritos do Ouro e do Diamante. Rio de Janeiro: Ed. Zélio Valverde, 1944. p. 211-227. PESTANA, Til. Diamantina. In: Actas do Colóquio Internacional Universo Urbanístico Português – 1415-1822. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, p. 579-592. ______. Diamantina. In: “Patrimônio Cultural e Natural”. Barcelona: Editora Laia, 2002, p. 154-179. REIS, Nestor Goulart. Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil (1500/1720). São Paulo: Pioneira, 1968. ______. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: FAPESP, 2000. RODRIGUES, José Wasth. “A casa de moradia no Brasil antigo”. Arquitetura civil I. São Paulo: FAUUSP, MEC/IPHAN, 1975, p. 283-318. ______. Documentário Arquitetônico relativo à antiga construção civil no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade, 1979. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1974. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. 4.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. SANTOS, Luiz Gonzaga dos. Memórias de um carpinteiro. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares, 1963. VASCONCELLOS, Sylvio de. Arquitetura no Brasil: Sistemas Construtivos. Universidade Federal de Minas Gerais. 5ª ed. Revista. Belo Horizonte: 1979. ______.Vila Rica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977. ______. “Formação urbana do Arraial do Tejuco”. Arquitetura Civil II. São Paulo: FAUUSP, MEC- -IPHAN, 1975, pp.99-114.