Levante dos negros no Serro e Diamantina

13-09-2011 18:25

Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SPUNICAMP.
Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.
“O levante da “rapaziada sujeita” do Serro: identidade, cultura escrava e
conexões atlânticas em Minas Gerais (século XIX)”
Isadora Moura Mota
UNICAMP
“Os rapazes da Fazenda Sesmaria, estavam para
fazer um alevante (sic) em favor da Liberdade,
segundo as notícias que liam nas Folhas”.
Adão cabra, escravo indiciado por participação na
insurreição do Serro1
Insurreições escravas constituíram ameaça constante nas mais diversas
províncias do Brasil, ao longo de todo o século XIX. Combinando diferentes
motivações e conjunturas históricas, ganharam corpo não apenas como confrontos
abertos, mas também na forma de rumores difundidos pelos campos e cidades
oitocentistas. Vividos ou imaginados, os levantes estavam imbricados num jogo
complexo de expectativas escravas e senhoriais, estas últimas sempre perpassadas
pelo medo de uma elite branca cuja dominação assentava-se na busca do equilíbrio
perfeito entre disciplina racial e controle social de uma enorme população de cor. Não
muito longe da autoridade vigilante, embora muitas vezes cega às percepções
escravas, os cativos elaboraram projetos de liberdade profundamente arraigados nas
comunidades e culturas negras que formaram na confluência de experiências
históricas através do Atlântico. Na partilha de vivências nos mundos da escravidão,
tanto africanos reinventados na diáspora, quanto seus descendentes crioulos
esboçaram novos sentidos identitários, partindo de processos não raro surpreendentes
de organização social de suas diferenças culturais.
Encaradas sob a perspectiva de seus protagonistas, as rebeliões podem ser
tomadas como janelas para a compreensão da vida social e dos significados a ela
conferidos por homens e mulheres escravos, libertos e livres. Situando-as
historicamente para além da díade de relações entre senhores e escravos, é possível
enveredar por experiências da escravidão que, embora forjadas na esfera das
interações sociais locais, transcendiam seus limites para abarcar apropriações
originais dos cenários políticos regionais, nacionais e atlânticos.
1 Terceiro interrogatório de Adão pardo (21/11/1864). Arquivo Nacional: Corte de Apelação - Processo crime de
insurreição: José Cabrinha (escravo), Serro (1865), cx. 3700, maço 5014, fl 75.
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A proposta deste texto é ensaiar tal percurso a partir da análise da insurreição
do Serro, movimento que reuniu mais de quinhentos cativos em luta pela liberdade no
final do ano de 1864, na província de Minas Gerais2. Inspirado pela circulação de
notícias sobre a Guerra de Secessão nos EUA e o encaminhamento de projetos
abolicionistas no Brasil, um grupo rebelde majoritariamente crioulo e parcialmente
letrado liderou a conflagração das lavras de diamante, cidades e fazendas dos
municípios de Serro e Diamantina, contando com a vigorosa coadjuvação de forros e
quilombolas do norte mineiro. Comecemos, então, por uma incursão pelos
acontecimentos que abalaram a comarca do Serro em 1864, buscando encontrar nas
suas entrelinhas indícios sobre a cultura escrava singular que ali estava sendo
gestada no encontro entre uma já envelhecida geração africana e seus descendentes
no Brasil.
***
Em princípios do mês de maio de 1864, nos arrabaldes da cidade do Serro, a
cerca de 80 quilômetros de Diamantina, escravos das duas cidades combinavam uma
fuga coletiva em direção ao sertão de Minas, plano sempre obstado pelo temor que
nutriam alguns deles de serem mortos no caminho. Certo dia, indo trabalhar em suas
obras de ferreiro, o cabra Nuno resolveu convidar para a fuga alguns “parceiros” da
fazenda Sesmaria. Num encontro marcado no quarto da escola da propriedade, ele
falou aos demais sobre seus planos, declarando ainda que dos jornais vinham notícias
a respeito da ocorrência de uma guerra para a liberdade dos cativos em outro país.
Disse-lhes também que havia chegado ordem para a liberdade dos escravos no Brasil,
mas que os brancos estavam a ocultá-la. Atentos a tudo, o pedreiro José Cabrinha e
seu companheiro Demétrio hesitaram, mas logo responderam ter coisa ainda melhor
do que a fuga, já que “pela leitura que tinham das folhas, viam que os Liberais
tratavam da liberdade dos escravos, e que por isso deviam estes tratar de havê-la
imediatamente por suas mãos”3.
Em pouco tempo, tais conversações deram lugar à articulação de um plano de
insurreição com grandes proporções. O momento era mesmo dos mais favoráveis. De
uma forma geral, o consenso entre a sociedade escravista se quebrava no compasso
da crítica ao cativeiro ensaiada nas diferentes margens do Atlântico. No plano local, o
poder dos proprietários estava sendo desafiado por sangrentos combates travados
pela população despossuída da comarca do Serro em busca do direito de exploração
das lavras diamantinas. Pelas vozes e mesmo cartas dos escravos das fazendas de
2 Este texto é inspirado no primeiro capítulo de nossa dissertação de mestrado atualmente em fase de redação, como
parte do programa de pós-graduação em História Social da Unicamp.
3 Primeiro interrogatório de José Cabrinha (24/10/1864). Idem, fl. 24.
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aguardente, as idéias da “guerra contra os brancos” chegaram rapidamente às lavras
e aos improvisados núcleos urbanos do Serro e Diamantina. Um contingente cada vez
maior de escravos crioulos, cabras e pardos, com ofícios especializados, aderia ao
movimento: eram alfaiates, pedreiros, carpinteiros, ferreiros, tropeiros, marcineiros e
garimpeiros que encontravam-se aos domingos de folga nas senzalas e vendas dos
arraias de mineração da região.
As previsões dos rebeldes confluíam para a reunião final no último domingo do
mês de outubro de 1864, no alto do morro do Rosário, região central da cidade do
Serro. Deviam estar munidos de feixes de capim cabeçudo seco, espadas e das
armas que conseguissem juntar. A ordem era provocar um incêndio nas casas dos
negociantes de diamante mais abastados do lugar, dentre eles, o tenente-coronel que
guardava todo o armamento da Guarda Nacional. Ao toque da confusão, roubariam
este arsenal com o qual esperavam tornar-se invencíveis e deslanchariam a matança
dos brancos, iniciando pelos mais poderosos. Da ação dos rebeldes não escapariam
nem mesmo aqueles escravos que se recusassem a aderir. Diziam os líderes que, se
eram cativos, por força que deviam ajudar sob pena de serem considerados “falsos”4.
Contavam ainda com a certeza da coadjuvação da “rapaziada sujeita das mattas”, dos
forros já avisados e de alguns “homens de gravata”5.
A data escolhida procurava conciliar os interesses de todos. Os escravos de
Diamantina queriam romper antes, mas os do Serro pediram o adiamento para o fim
de outubro. Naquele município, o núcleo da revolta localizaria-se na lavra do Barro, em
São João da Chapada, onde mais de quatrocentos escravos silenciosamente juntavam
armas e dinheiro. De lá partiram os convites para os quilombolas dos subúrbios de
Diamantina, convencidos a aderir pela perspectiva “de que ficariam ricos e os brancos
pobres”. No dia 9 de outubro, porém, o silêncio seria rompido pela trêmula voz do
carpinteiro Vicente. Convidado duas vezes a tomar parte na rebelião, ele finalmente
resolvera denunciá-la a seu senhor por conhecer “as tristes conseqüências disto”6.
Sendo meticulosamente interrogado na presença de alguns “cidadãos notáveis” do
Serro, o escravo fez revelações que horrorizaram a todos, detalhando o conteúdo do
plano de insurreição, apontando seus prováveis cabeças e os pontos de reunião. Os
próximos dois meses seriam dedicados à combater o “medonho drama” que se
anunciava.
José Joaquim Ferreira Rabello, deputado provincial a pouco eleito, não
demorou em comunicar por carta ao presidente da província de Minas Gerais, Pedro
4 Interrogatório de Adão, escravo de Marcos Vaz Moura (28/10/1864). Idem, ibidem, fl. 33.
5 Primeiro interrogatório de José Cabrinha (24/10/1864). Idem, ibidem, fl. 24.
6 Depoimento do escravo Vicente (24/10/1864). Idem, ibidem, fl. 18.
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de Alcântara Cerqueira Leite, a terrível trama que estava a colocar os municípios do
Serro e Diamantina “em um estado da mais mortificante e ansiosa expectativa”7. Certo
de que os cativos não estavam sozinhos, o futuro barão do Serro elegeu de imediato
os inimigos a combater e passou a reconsiderar as evidências que os proprietários
não haviam sabido tomar como alerta:
“Temos dados para acreditar que esta manifestação é aconselhada por
homens de cor, da ínfima classe da sociedade, que talvez guiados pela
horrível esperança nos saques e latrocínios não se temam de afogarem-se
no sangue de seus concidadãos. Infelizmente várias circunstâncias, que
passaram desapercebidas no meio da tranqüilidade e sossego em que
vivíamos tornam-se hoje indícios veementes. Tais são, instrução de alguns
escravos que lendo as ocorrências da guerra civil nos Estados Unidos as
transmitem aos que não sabem ler, compras de armas de fogo feitas por
alguns mais audaciosos, certo estado de agitação entre eles, ajuntamentos
e grupos de quatro mais indivíduos, conversações figuradas e enigmáticas.
Poucos ou nenhuns (sic) meios de detê-la temos”8.
De fato, a guerra civil norte-americana fazia parte há algum tempo das
conversas e do noticiário local. Nas páginas do jornal O Jequitinhonha, único periódico
regional publicado na comarca do Serro no início da década de 1860, o conflito vinha
ganhando ampla cobertura desde 1861, na interpretação de liberais como Joaquim
Felício dos Santos. Além do acompanhamento direto da guerra feito através do
contato com os paquetes que aportavam no Rio de Janeiro, o jornal publicou diversos
artigos centrados na discussão das conseqüências da abolição nos EUA para o
regime escravista brasileiro. A guerra civil misturava-se com os projetos parlamentares
tendentes a atenuar os rigores do cativeiro na argumentação a favor do
encaminhamento gradual da emancipação dos escravos no Brasil. Nos editoriais de
primeira página figuravam elogios principalmente ao senador Silveira da Motta,
destacando-se o imperativo urgente de passar a “considerar o escravo como
homem”9. Uma apropriação não muito distante daquela realizada pelos rapazes da
fazenda Sesmaria, para quem a guerra e as idéias dos políticos liberais tornaram-se
em 1864 sinônimos de liberdade.
7 Carta enviada por José Joaquim Ferreira Rabello ao presidente da província de Minas, Pedro de Alcântara Cerqueira
Leite (11/10/1864). ANRJ - Ofícios de Presidentes de Província (MG), IJ1, maço 628 (1864).
8 Idem.
9 O Jequitinhonha (Diamantina), 30/11/1861, p. 1.
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As autoridades do Serro e Diamantina logo descobriram que o plano de
insurreição havia sido elaborado pelos cabras José Cabrinha, Nuno e Adão, estando
convidados para o levante geral todos os cativos dos fazendeiros e mineiros dos
distritos do Serro, Itambé, Milho Verde, São Sebastião das Correntes e Rio do Peixe,
além das ramificações nas cidades. Tentou-se provar o envolvimento do forro
Herculano Manoel de Barros na conspiração contra os brancos, mas nada foi
encontrado para incriminá-lo além da proximidade com o alfaiate Adão, cabeça do
movimento na cidade do Serro, de quem provavelmente era irmão. Outros libertos
chegaram a ser interrogados, mas não foi possível pronunciar nenhum dos “homens
de cor da ínfima classe da sociedade” temidos pelo deputado Rabello. Não havia
como classificar de delito a longa experiência de trabalho conjunto e convivência social
que talvez estivesse borrando fronteiras entre escravidão e liberdade, fazendo da
relação entre forros e escravos uma espécie de curto-circuito permanente.
No rastro do medo, grande parte da força repressiva da província de Minas foi
mobilizada. Os “cidadãos” da região empenharam-se pessoalmente no combate aos
revoltosos, que já contava com mais de 100 praças da Guarda Nacional e tropas
vindas de Ouro Preto. Sufocada no Serro, a rebelião permaneceu viva na conflagração
das lavras mais ricas de Diamantina, especialmente no “vulcão do Barro”, onde mais
de quatrocentos escravos reunidos numa circunferência de apenas vinte mil braças
desafiaram as autoridades por mais de dois meses. Reprimido tenazmente, o
movimento deixou um rastro de fugas escravas das fazendas, rumores de invasão das
cidades e enfrentamentos com os quilombolas da comarca do Serro. Ainda em 1865,
temia-se o “respirar de ódio” dos escravos do norte mineiro e a possibilidade de novo
levante agora sob o impacto da Guerra do Paraguai.
Concluído o processo criminal que arrolou mais de vinte escravos como réus,
somente nove deles foram pronunciados e julgados, sem que houvesse recurso à
pena de morte. Considerado o cabeça da revolta, José Cabrinha acabou sentenciado
com a pena de galés por vinte anos e outros seis escravos punidos com penas de
açoites que variaram de 900 a 200 chibatadas, combinadas com o uso de ferro no
pescoço por períodos de três meses a um ano. O cabra Alexandre e o tropeiro
Faustino, este o único africano indiciado por participação na conspiração de 1864,
foram absolvidos. Curiosamente, nenhum cativo de Diamantina foi condenado por
envolvimento no levante.
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As dezenas de interrogatórios colhidos em 1864, quase sempre sob a coação
dos açoites e palmatórias, mostraram que a insurreição estava ramificada numa
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comunidade escrava bastante peculiar, formada a partir da integração dos principais
municípios do norte mineiro. A antiga comarca do Serro Frio, situada no nordeste de
Minas Gerais, reunia sob sua jurisdição os termos do Serro, Conceição e Diamantina.
Incrustada na Serra do Espinhaço, nas proximidades das fronteiras com o Espírito
Santo e a Bahia, a região fora constituída no encontro da pecuária extensiva, da
agricultura de subsistência e da mineração de ouro e diamantes. Na segunda metade
do século XIX, a comarca do Serro abarcava uma vasta zona agrícola e pastoril que
alimentava sobretudo a população dedicada à mineração diamantina com derivados
da cana-de-açúcar, milho, feijão e outros grãos.
As fazendas de cultura espalhavam-se por todo lugar, enquanto as lavras
estendiam-se principalmente pelos leitos fluviais e dorsos das elevações ribeirinhas,
nos arredores de Diamantina. Os serviços de mineração, entregues nas mãos de
particulares desde a década de 1830, prosperavam nas jazidas próximas ao
Jequitinhonha, nas quais o diamante ainda era encontrado nos cascalhos do rio ou
sob a forma de massa, mais difícil de lavrar. O ouro tornara-se escasso e não
justificava mais grandes inversões de capital e mão-de-obra. Na esteira de uma
atividade mineradora que passara a fazer poucas fortunas, o Serro seria rasgado por
conflitos em torno da exploração de suas riquezas minerais e pela agitação de uma
considerável massa de escravos, empregada tanto nas atividades exportadoras,
quanto naquelas voltadas para a subsistência.
Na década de 1860, Diamantina figurava como o principal centro urbano do
norte mineiro. Em 1856, reunia em torno de 17 mil habitantes10, número bastante
superior aos 10.584 moradores do Serro11. Embora não haja números precisos para o
período em que ocorre a rebelião, o recenseamento geral de 1872 mostrou que, nesta
época, a população escrava representava ainda cerca de 39% dos habitantes em
Diamantina e 18% no vizinho Serro, sendo constituída principalmente por escravos
nascidos no Brasil12. O segmento crioulo era especialmente numeroso no Serro, onde
correspondia à 60% dos cativos do distrito da cidade desde a década de 1840, uma
tendência geral para a província de Minas13. A maior concentração escrava em
10 Estimativa do Vigário da Paróquia a pedido da Câmara Municipal de Diamantina. Citado em: SOUZA, José Moreira
de. Cidade: momentos e processos. Serro e Diamantina na formação do norte mineiro no século XIX São Paulo:
ANPOCS/Marco Zero, 1993, p. 116.
11 “Mapa das Freguesias, Distritos, Fogos, Populações parciais e geral do Município do Serro” (janeiro de 1856),
elaborado pelo delegado de polícia Bento Carneiro. APM: Seção Provincial - Presidência da Província, caixa 50,
documento 24.
12 Anuário Estatístico de Minas Gerais. Belo Horizonte: 1921, Ano I, vol. 2, p. 16 e 25.
13 LIBBY, Douglas Cole. “Protoindustrialização em uma Sociedade Escravista: o caso de Minas Gerais”. In:
SZMRECSÁNYI, Tamás e LAPA, José Roberto do Amaral (orgs). História econômica da Independência e do Império.
São Paulo: Hucitec/Edusp/Imprensa Oficial, 2002, p. 249.
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Diamantina pode ser explicada pelo dinamismo da economia dos diamantes que,
sobretudo nas décadas de 1830 e 1840, sustentou a importação de significativos
contingentes de africanos para as lavras do município. Provenientes especialmente da
África centro-ocidental, estes escravos permaneceram em Minas mesmo após a
extinção do tráfico atlântico, não havendo nenhuma transferência maciça para outras
províncias ou uma realocação interna radical.
Diante deste cenário, é possível supor que, em outubro de 1864, estejemos
diante de uma conspiração escrava predominantemente crioula, mas que contava,
sem dúvida, com o apoio de muitos africanos, presentes sobretudo nas lavras e
quilombos de Diamantina. A leitura dos autos criminais gerados pela rebelião revela a
existência de uma liderança exercida por escravos nascidos em Minas, residentes há
bastante tempo nas propriedades citadas em 1864. Dos 40 escravos citados no
processo de insurreição, 21 podem ser identificados segundo sua naturalidade. Deste
total, 16 são nascidos em distritos da própria comarca do Serro, 4 surgem
denominados genericamente como “crioulos” e um é africano. Dentre eles, havia
também diferentes cores: dos 20 escravos com alguma referência a respeito, há 8
cabras, 8 crioulos, 3 pardos e 1 preto, mais especificamente, o africano Faustino.
Somente duas mulheres foram avisadas do levante, entre as quais Vitória da Costa,
quilombola presa e interrogada separadamente pelo delegado de Diamantina, é a
única rebelde que pode com certeza ser arrolada como africana.
Como vimos, a maioria dos cativos envolvidos na rebelião do Serro
desempenhava atividades especializadas ou domésticas, seja nas fazendas, lavras
diamantinas ou cidades. A predominância deles entre os rebeldes pode estar ligada a
diversos fatores. Certamente, estes trabalhadores forjaram laços de fidelidade no
ambiente de trabalho, já que circulavam entre diversas propriedades, sendo
freqüentemente alugados para o desempenho de serviços entre o Serro e Diamantina.
Escolhidos pelos senhores entre os crioulos, tinham ainda mais elementos em comum
a facilitar a ampliação de suas redes de relações. Muitas famílias senhoriais tinham
posses nas duas cidades e, entre seus membros, tornara-se corrente a venda ou
partilha por herança de escravos naturais da região. É precisamente esta
complementaridade que aparece expressa no momento do levante, seja nos cenários
cruzados de atuação dos rebeldes, seja no comando exercido pelos escravos
pertencentes aos Fonseca.
Bastante preocupadas com a correspondência trocada entre eles, as
autoridades acabaram por descobrir que diversas cartas haviam de fato sido enviadas
nos meses de setembro e outubro de 1864. Elas provinham sobretudo do núcleo
letrado constituído pelos cativos da Sesmaria, fazenda produtora de aguardente no
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Serro que encontrava-se nas mãos de diferentes membros da família Fonseca.
Durante o correr do processo, Demétrio, José Cabrinha e David declararam saber ler e
escrever, assinando por conseguinte todos os depoimentos que prestaram. Sebastião
disse “ler muito mau a letra redonda”14 e é certo que Adão e Nuno também lidavam
de alguma forma com a língua escrita, tendo este último pelo menos a habilidade de
ler. Além dos escravos, Herculano Manoel de Barros foi único liberto indiciado a
declarar “saber ler e escrever mal”15.
Congregando um numeroso grupo de escravos crioulos na segunda metade do
século XIX, a rebelião do Serro não estava apartada, no entanto, da influência
africana. Uma vez denunciada, seu principal centro acabou sendo a lavra do Barro, em
Diamantina, onde os garimpeiros africanos continuavam numerosos durante a década
de 1860 e ajudaram a traçar alianças duradouras entre as senzalas e quilombos da
região. Mesmo no Serro, é preciso ter em conta que a geração crioula de 1864 era em
grande parte descendente dos africanos centro-ocidentais chegados à Minas nas
décadas de 1830 e 1840 e que estes estavam presentes, ainda que em minoria, nos
plantéis envolvidos no levante. Mais do que solidariedades pontuais, portanto,
consideramos que as ações políticas que possibilitaram a revolta estavam alicerçadas
na gestação de uma identidade entre os escravos urbanos, rurais e mineiros da
comarca do Serro. Argumentamos que os fundamentos desta identidade escrava
devam ser buscados tanto numa aliança conjuntural, construída no âmbito dos
desdobramentos sobre a comunidade cativa das rupturas ocorridas na conjuntura
sócio-econômica, quanto e, talvez, especialmente, na existência de um substrato
cultural comum, formado pela interação de tradições africanas sob a experiência do
cativeiro no norte de Minas.
Nosso projeto e mestrado ora em andamento caminha justamente no sentido
de investigar as fronteiras da comunidade negra da comarca do Serro e os matizes
culturais do projeto de liberdade elaborado em 1864. Situando a análise no âmbito do
cotidiano politizado de senhores, cativos, libertos, homens e mulheres livres de cor,
esperamos nos aproximar da cultura política dissonante na qual, apesar de todos os
constrangimentos, as práticas abertas e anônimas de protesto escravo surgiram e
ganharam sentido.
14 Interrogatório ao réu Sebastião (23/11/1864). Idem, ibidem, fl. 98.
15 Auto de Qualificação do réu Herculano Manoel de Barros (21/10/1864). Idem, ibidem, fl. 7.