Igreja Matriz de Nossa Senhora da
Conceição, de Antônio Dias, Ouro Preto.
Igreja Matriz do Pilar, Ouro Preto
*Antonio de Paiva Moura
1- Introdução
Em 1918, o estudioso mineiro Lindolfo Gomes, publicou o primeiro livro que tratava objetivamente do conto popular, em edição da Melhoramentos. O precioso livro, na sua 3ª edição recebeu o título de "Contos Populares Brasileiros", onde procurou uma classificação metódica das lendas, na forma de ciclos temáticos. Um trabalho merecedor do maior respeito, de vez que foi elaborado no momento em que a disciplina folclore, no Brasil, encontrava-se, ainda na sua fase embrionária, enquanto Lindolfo Gomes já apontava uma perspectiva metodológica para o estudo do conto folclórico.(MELO, V, 1976) Atualmente, em Minas, os estudiosos Saul Alves Martins e Oliveira Mello vêm recolhendo, anotando e publicando narrações lendárias e míticas, oferecendo-nos a oportunidade de observar as que já se declinaram em resíduos e as que ainda permanecem plenas de funções.
Do ponto de vista do erudito, a lenda é a narrativa de um fato real, com conotação fantasiosa, e num pólo oposto, o mito é uma exposição fantástica da imaginação. Como documento vivo, as lendas traduzem informações históricas, etnográficas, sociológicas e jurídicas, denunciando costumes, idéias e mentalidades.
C. G, Jung, na tentativa de demonstrar a realidade das raízes motoras dos conflitos psíquicos, procurou separar o que é de responsabilidade pessoal do que é de responsabilidade impessoal, na justificativa da predominância do inconsciente coletivo sobre o indivíduo.
Sem ser seu objetivo, Jung mostrou-nos um grande caminho do significado dos mitos na tradução da psicologia social e mais uma pista para a tarefa do folclorista. Sua contribuição reside no argumento de que as coisas nunca foram separadas na consciência individual do homem não erudito, porque os deuses e os demônios não são compreendidos por ele como projeção da alma no conteúdo do inconsciente, mas como realidades indiscutíveis. (JUNG, C. G. 1978) E, portanto, esta realidade que buscamos, no estado "in natura" da vivência do conto folclórico, para estudar e propor a sua projeção na configuração da nossa cultura.
As lendas persistem por tempos indefinidos, correndo de boca em boca, em um determinado local ou expandindo por meio de suas variáveis. As formas de exposições das lendas vão sofrendo transformações ao longo do tempo. Uma lenda só persiste quando tem uma função e a modificação dessa é que determina a alteração da forma de exposição, sendo um meio pelo qual o povo expressa a sua ideologia diante de rígidas estruturas econômicas, políticas e sociais. Sendo, para o expositor da lenda, a injustiça, a pobreza e a vaidade próprias da humanidade; na ausência de perspectivas diante das ordens estabelecidas, essa re-questiona os problemas sociais e as ordens estabelecidas.
Desta forma as lendas vão mudando na medida em que os sistemas de produção e
distribuição das riquezas vão mudando. Essas mudanças não se fazem por acaso, nem pela fantasia individual de cada um. Resultam de transformações operadas pela dinâmica social, e nas condições históricas em que vivem os indivíduos e nas quais suas lendas são contadas.
A lenda pode ser bela pelo seu conteúdo histórico e por sua forma literária,mas não é formosa ou bonitinha , como querem os enredos das escolas de samba.
Embora nossa tarefa, nesta obra, não seja a de formular um questionamento e um debate metodológico, estamos propondo uma seqüência cíclica para a lenda mineira, de acordo com a problemática ao longo de sua história e de seu envolvimento no processo sócio-econômico. Se no século XVIII, Minas Gerais foi predominantemente mineradora, seu lendário deveria Ter uma conotação coerente com a vida social focalizada. Passado o ciclo da mineração, veio o pastoril, onde os animais selvagens e domésticos, bem como vaqueiros, fazendeiros, lavradores e pescadores passariam a figurar como personagens principais das histórias populares.
2 - DESCOBERTA DAS MINAS E POVOAMENTO
2.1- Lendas
a) "A Acaiaca"
Próximo ao arraial do Tejuco havia uma poderosa tribo de índios que viviam em constante luta com os tejuquenses, que de vez em quando invadiam o arraial.
Perto da taba indígena, numa pequena elevação, havia um belo e frondoso cedro que os índios, na sua língua, chamavam "acaiaca".
Contavam eles que, no começo do mundo, o rio Jequitinhonha e seus afluentes encheram-se tanto que transbordaram, inundando a terra. Os montes e as árvores mais altas ficaram cobertos e todos os índios morreram.
Somente um casal escapou, subindo na Acaiaca. Quando as águas baixaram, eles desceram e começaram a povoar a terra de novo.
Os índios tinham, portanto, muita veneração por essa árvore. Acreditavam mesmo, que se ela desaparecesse, a tribo também desaparecia.
Os portugueses que habitavam o arraial, conhecedores daquela crença, esperavam uma oportunidade para derrubar a Acaiaca. No dia do casamento da bela Cajubi, filha do cacique da tribo com o valente guerreiro Iepipo, enquanto os índios dançavam em comemoração, os portugueses derrubavam a árvore a golpe de machado.
Quando os índios viram por terra a árvore sagrada ficaram aterrorizados e prorromperam em grandes lamentações, pois, conforme acreditavam, o fim da tribo estava próximo.
Pouco tempo depois da morte da Acaiaca surgiu grande desavença entre o cacique da tribo e os principais guerreiros. A desarmonia entre eles terminou em uma luta tremanda que durou a noite inteira, ficando o chão coberto de cadáveres: ninguém escapou.
Nesta noite fatal, uma horrível tempestade caiu sobre o arraial do tejuco, arrancando árvores, rochedos e casas.
No dia seguinte, os tejuquenses, assombrados, não encontraram o menor sinal da Acaiaca.
Dizem que foi a partir dessa noite que os garimpeiros começaram a encontrar as pedrinhas brancas, os diamantes, que surgiram dos carvões e das cinzas daquela árvore sagrada.
Cajubi ficou encantada em uma onça. Aparecia andando ereta com a cabeça de uma onça. Tentava impedir os garimpeiros de coletar os diamantes.
b) "Caminhos subterrâneos"
Segundo uma lenda a Igreja de Nossa Senhora do Pilar de Ouro
Preto foi construída sobre um rico veio de ouro. Conta-se que existia um caminho subterrâneo que ia da Igreja até o local da antiga Casa da Câmara e da Cadeia, atual Museu da Inconfidência.
Conta-se também que existia um túnel que levava até o Morro da Queimada, e, através deste, os escravos de Pascoal da Silva Guimarães tentaram salvar o ouro do seu senhor, na Revolta de Felipe dos Santos, quando por ordem do Governador, o morro inteiro foi queimado.
Acrescenta ainda que muitos dos escravos morreram lá embaixo, em consequência de desabamentos, e dizem que ainda é possível ouvir, de vez em quando, suspiros profundos das almas danadas dos mortos.
c) "Imagem no lombo do burro"
Sobre a imagem de Senhor dos Passos que fica no altar, à direita, na Igreja do Pilar de Ouro Preto, conta-se que em 1927, foi transportada no lombo de burro , do Rio de Janeiro até a atual Praça Tiradentes.
Ninguém sabia se a imagem pertencia à Igreja de Nossa Senhora do Pilar, dos portugueses ou à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, dos Paulistas.
Para que não surgissem mais disputas entre as duas partes de Vila Rica, ficou decidido que a sorte resolveria a qual destas a imagem viria a pertencer.
A imagem foi novamente amarrada no lombo do burro, e ficou combinado que, se o burro saísse na direção da Igreja de N.S. da Conceição, iria pertencer à sua paróquia, mas caso o burro tomasse a direção da Igreja de N.S. do Pilar, caberia à paróquia desta.
O burro tomou o caminho da Igreja de N.S. do Pilar e a partir daquele momento, a imagem ficou pertencendo a esta.
Atualmente a imagem vai em procissão até a Igreja de N. Senhora da Conceição, mas os devotos até hoje temem que a imagem possa ser reconquistada pela matriz que a encomendou.
d) "O sumiço da cabeça de Tiradentes"
Após a execução de Tiradentes, seu corpo foi esquartejado e sua cabeça colocada em uma gaiola, presa a um mastro, na atual Praça Tiradentes. Ali deveria permanecer até ser aniquilada pelo tempo. Em pouco tempo, a cabeça exposta desapareceu do seu lugar.
Uma variável explica que alguns amigos de Tiradentes resolveram roubar a gaiola com a cabeça. Conferenciou-se quanto à melhor maneira de enganar a vigilância portuguesa. A primeira reunião, segundo se diz, teria sido no prédio onde existe hoje o Hotel Pousada Ouro Preto.
Numa noite fria e nevoenta, o guarda foi assaltado por dois homens mascarados. Enquanto um, a sangue frio, estrangulou o soldado português, outro aproveitou para desaparecer com a gaiola e o seu terrível conteúdo.
A cabeça de Tiradentes foi cuidadosamente embalsamada, antes de ser colocada numa urna de pedra, hermeticamente fechada, depois de todas as cavidades do crânio e os demais vãos da urna terem sido preenchidos com ouro em pó.
2.2- Mito
a) "Mãe- do-Ouro "
O mito característico deste grupo é a Mãe-do-Ouro. Conforme estudo de Câmara Cascudo a Mãe-do-Ouro é indicadora de jazidas de ouro, madrinha dos veeiros, padroeira dos filões. Aparece em forma de chama ou meteorito. Os relâmpagos indicam a sua direção e os trovões revelam a sua cólera. (CASCUDO, L. C.) Manoel Ambrósio poeticamente: "Quando uma dessas bagas coruscantes tombam d'além, ouve-se ainda um fremito ingênuo que a civilização ainda não pode extinguir: - é ela ... é ela... a zelação, serpente Mãe-de-Ouro encantado, a cobra de cristas de fogo a zunir, mudando, afundando-se nas solidões das montanhas."
2.3 - Aspectos sócio-históricos
"A Acaiaca ", lenda maior de Minas Gerais.
Após a restauração do trono português das mãos dos espanhóis, os bandeirantes receberam a incumbência de ampliar o território e descobrir riquezas minerais. Receberam para isto, todos os poderes. Descobertos o ouro e o diamante, uma nova ordem se instituiu na Região das Minas. Cabia explorá-la com o maior proveito para a coroa portuguesa. O indígena não poderia, a curto prazo, ser empregado no trabalho da mineração e por isso foi afastado do processo civilizatório. A lenda Acaiaca é bastante significativa e ilustra a história. A árvore de cedro que sintetizava a potência da população indígena foi cortada. O português já não precisa de pau-brasil, não precisava da riqueza vegetal, tão importante ao indígena. Cortando a árvore, cairia com ela o indígena, e em seu lugar surgiria o mais cobiçado dos minerais: o diamante. A lenda, na forma que apresenta, foi recomposta por Joaquim Felício dos santos para demonstrar as origens do despotismo e da usurpação total do português sobre o Distrito Diamantino. Henriqueta Lisboa sintetiza a Acaiaca com o seguinte poema: - Aso olhos úmidos dos puris - Brasas e carvões da fogueira - rolam os flancos da colina - transmudados em frias pedras - duras, amargas diamantinas. (CUNHA, A.E. P. In: SANTOS: J F. 1956)
Em torno da disputa pela posse da imensa riqueza proporcionada pelso fartos depósitos auríferos no século XVIII, paulistas e portugueses conflitaram-se em cruenta guerra. Vitoriosos e derrotados conviveram-se na mesma urbe, no meio das revoltas, das intrigas e das divergências. Vila Rica foi dividida entre a frequesia dos portugueses e a dos paulistas. As lendas "Caminhos Subterrâneos de Ouro Preto" e "A Imagem no Lombo do Burro", nos levam aos climas de desconfianças, rivalidades, segredos, discriminações social e racial, sedimentados na cultura mineira. A cabeça de Tiradentes não poderia ter o tratamento que os portugueses determinaram. Foi roubada e tratada com ouro em pó.
Por todas as regiões dotadas de riquezas naturais e quando descobertas, provocaram o rápido povoamento e competitivas explorações, com vantagem para os forasteiros e estrangeiros. Em Minas os portugueses foram considerados forasteiros de vez que os paulistas foram os pioneiros descobridores e os mineiros descobridores e os mineiros os seus herdeiros e continuadores. Diante de forasteiros poderosos e dominadores só restou a clandestinidade. Se os portugueses guardaram segredo de seus planos e jogaram o bote sobre os mineiros a todo instante, a estes não restou mais nada senão desconfiar de tudo e de todos: As histórias foram transformadas em lendas e os projetos em conjecturas.
Esta é a razão das notícias de existência de caminhos subterrâneos em todas as cidades históricas de Minas, por onde escoou riquezas fabulosas e que ninguém ficou sabendo para onde foram e não se sabe quem as levou. Segundo Leonardo Álvares da Silva Campos, muita gente até hoje procura as 50 arrobas de ouro, escondidas em uma gruta, pelos escravos de Manoel Nunes Viana, na Guerra dos Emboabas.
3 - MINERAÇÃO: ALMAS PENADAS E TESOUROS ENTERRADOS
3.1 - Lendas
a) " Tesouro da Fazenda do Retiro "
A Fazenda do Retiro , em Mariana , era conhecida como assombrada . Altas horas da noite arrastavam, pela casa, correntes de ferro pesadas e ouviam-se os lamentos dos escravos torturados pela flagelação que dilacerava os corpos dos escravos.
Um dos últimos moradores do velho solar, Antônio Fernandes Ribeiro do Carmo, foi o único que teve coragem de dormir na Fazenda, a fim de constatar o fenômeno.
Fumando tranquilamente, em dado momento, ouviu um grito de alarme. Corajosamente entrou pela casa adentro, no escuro, intimando os que o pertubaram, para o devido acerto de contas:
- Venha e diga logo o que deseja, alma de Deus! ...
- Posso sair?
- Sim - respondeu Ribeiro do Carmo.
À sua frente, à luz baça do azeite, caiu um braço humano. Continuou Ribeiro do Carmo:
-Sim, pode cair, mas não à prestação. Venha tudo de uma só vez.
Em cada lugar do quarto caiu uma parte de corpo humano, caindo finalmente a cabeça, que lhe falou tranqüilamente:
- Procure suavizar a pena dos que padecem no outro mundo , porque se negaram a socorrer os necessitados embora acumulando riqueza. Ajuntaram muito ouro que não puderam carregar. Nesta fazenda está oculto um grande tesouro, que a ganância dos condenados escondeu.
Em seguida ruflou suas asas luminosas em busca do além.
No outro dia Ribeiro do Carmo espalhou a notícia assanhando a cobiça de populares. Arrombaram o portão dos fundos e alojaram-se na fazenda. Um gemido forte apontou o lugar exato em que se encontrava centenas de barras de ouro.
b) "Tesouro da Fazenda Assombrada de Carandaí "
Contam que um jovem chamado Otávio resolveu sair pelo mundo.
Caminhando algumas léguas pára em uma fazenda morta, abandonada em face dos constantes assombros ali ocorridos. Do lado de uma senzala, a casa de máquinas no alto e no engenho nos fundos; de onde ouvia-se nítido o soar dos chicotes, vozes resignadas, submissas dos homens de produção colonial, misturadas ao barulho das moendas que como um diapasão suplicam liberdade. A escuridão densa quase impedia sua passagem no assoalho que dá acesso aos fundos, local de muitas mortes misteriosas.
Para improvisar um fogão, colocou duas pedras no sentido longitudinal. Para comburente usou bagaço de cana seco. Logo que acendeu o fogo colocou no espeto a linguiça de porco. O cheiro do delicioso recheio aumentava o apetite do andarilho Otávio. Neste momento apareceu um gato preto e rouba-lhe, num pulo felino, o gostoso assado.
-Ah! Não lhe farei nada, coitado está com fome exclamou Otávio.
Novamente tenta assar a linguiça. Outro salto do gato preto levando-a na boca.
-Ah! Danado! Agora eu o pegarei na próxima!
Repetiu as duas primeiras tentativas. Preparou um laço e quando o pequeno tigre voltou tentando o roubo foi pego e amarrado numa engenhoca dos fundos, sendo possível preparar su alimentação que o fazia tranquilo. Após forrar o estômago, refletiu e preparou-se para dormir. Forrou o chão frio e deitou-se de costas. Muito cansado das andanças diurnas, dormiu imediatamente.
De súbito foi acordado pelo tic tac dos tamancos de uma velha portuguesa, alta e magra que caminhava em sua direção. Estático, aguardou o aproximar da caveira daquela senhora idosa, que o aclamou com as seguintes palavras:
- Fique quieto, meu filho , não sou deste mundo, mas nenhum mal lhe farei. Escute-me! Sempre que venho aqui para pedir ajuda, o demônio disfarçado de gato, vem e mata as pessoas. Mas você foi forte e conseguiu amarrá-lo. Acompanhe-me.
A alma levou Otávio até uma figueira no engenho velho onde lhe disse :
- - Sob esta árvore existem três barris de moedas de ouro. Você deverá escavar até encontrá-los. Fique com a terça parte e distribua o resto aos pobres para que eu possa entrar no céu. Faz dois séculos que morri e estou andando pelo mundo sem salvação por causa dessa riqueza enterrada.
Após cavar muito, Otávio viu o primeiro barril e a alma desapareceu. O gato que se encontrava amarrado deu um estouro. O galo cantou e o dia amanheceu. Otávio voltou para casa e foi cumprir o que a alma penada lhe ordenara. Tornou-se um dos mais ricos de Carandaí.
c) "Tesouro da Fogueira de São João em Conselheiro Lafaiete
Contam que numa noite de São João, um bondoso agricultor, devoto de São João, resolveu fazer uma fogueira, em torno de um toco de árvore existente no terreiro. No douto dia, ao remover as cinzas da fogueira, rebaixadas do nível do solo, deparou-se com os arcos de um barril. Continuou limpando o buraco e encontrou grande quantidade de barras de ouro. Dizem que foi uma dádiva do céu ao fervoroso devoto de São João.
d) "O Tesouro do Isidoro"
Conta Anatólio Alves de Assis que o sargento José de Oliveira Décimo, do 3º Batalhão de Diamantina resolveu procurar o que Isidoro guardou em uma furna naquela serra.
Numa determinada noite de lua cheia, ele e mais dois amigos se abarrancaram e desceram em uma corda até o fundo da lapa. Em seguida José de Oliveira pediu a Isidoro que fizesse sua alma aparecer e mostrasse onde estava o tesouro, pois pretendia distribuí-lo com os pobres de Diamantina.
Súbito toda a lapa começou a tremer. Ruídos estranhos se fizeram ouvir, como se alguém estivesse a arrastar correntes. Também o rumor de açoites está no ar misturado com lamentos e gemidos, como se um infeliz estivesse sendo supliciado com incrível ferocidade.
A voz de Isidoro faz revelações a José de Oliveira. Diz que sua prisão se deu em conseqüência de uma traição, tendo ele sido delatado por parentes de um de seus seguidores; que sua mãe nasceu em 1758, quando o Cometa Halley cruzava os céus do Brasil e que muitos dos de seus descendentes nasceram quando ele passou em 1834 e 1910; que em 1986 o cometa voltará e que naquela oportunidade revelará o lugar certo do tesouro.
3.2 - Mito
a) "A Mulher de Sete Metros"
Onde hoje se localiza o Forúm de Patos de Minas, situou-se o primeiro cemitério da cidade. Dali, segundo a tradição, sai uma mulher de sete metros de altura e vai até perto do monumento do Presidente Olegário Maciel. É a alma penada de Lavi Lopes, fazendeira bastante rica e possuidora de muitos escravos, que viajava muito, indo constantemente ao Rio de Janeiro, onde gozava dos encantos da cidade. Era de grande perversidade, sobretudo para com seus escravos. Jogava gordura fervendo nas negras, queimando-as porque elas não realizavam os trabalhos de acordo com seu exigentíssimo gosto. Isto só para martirizá-las. Umas das escravas tentou jogar a malvada dentro da cisterna. A sua maldade era tão grande que, quando usava sapatos de salto alto, pisava nos braços dos filhos dos escravos
quando estes engatinhavam, quebrando-lhes os braços e não permitia tratamento e nenhum cuidado aos inocentes machucados.
Em razão disso, foi ficando isolada de todos e de tudo. Ninguém desejava a sua companhia, e fugiam dela. Viveu muitos anos, tristemente, morrendo já
bastante idosa, abandonada e pobre. A sua figura, quando morta, inspirava terror, pois não fechou os olhos, nem a boca, ficando com a língua para fora. As crianças tinham pavor dela, e de seu aspecto. Em sua antiga casa, ouviam-se, até há pouco tempo, arrastar de correntes, ganidos e gritos de dor.
3.3 Aspectos sócio-históricos
Na época colonial os mineiros mais abastados guardavam em casa peças e barras de ouro adquiridos na mineração ou no comércio clandestino. A coroa portuguesa estabeleceu o coeficiente de arrecadação em 100 arrobas do quinto do ouro. Não chegando à quantidade estipulada a Administração da colônia confiscava dos produtores o suficiente para completar a carga. O prenúncio do confisco na forma das derramas colocava os produtores em pânico. Muitos enterravam grande quantidade de ouro mantendo absoluto segredo, vindo depois a falecer. Daí que durante muito tempo as notícias sobre este ou aquele tesouro enterrado em determinado lugar foram verdadeiras.
Além da aquisição de metais preciosos os mineiros eram perseguidos por instalações de fábricas clandestinas de moedas de ouro.
Quanto aos diamantes a história registra situações mais drásticas. A coroa portuguesa explorava diretamente por intermédio da Intendência dos Diamantes.
Para assegurar a posse da riqueza dos portugueses usaram a mais terrível força e o mais despótico dos poderes da América. A simples notícia de uma pedrinha fora dos cofres da Intendência custava ao detentor o açoite ou a morte. Daí que os diamantes e outras riquezas eram enterrados em lugares secretos, como atesta o bilhete do padre Brasão, deixado no século XVIII: Sepultei ao pé de uma jabuticabeira o que não me pertencia, sendo duas garrafas de ouro e três chifres de diamantes ". (ESTRELA POLAR, 1972) O tesouro do Padre Brasão nunca foi encontrado. Mas muita gente em Diamantina é testemunha de uma grande quantidade de moedas de ouro encontrada pelos operários da Prefeitura quando consertavam um muro e que foi dividida entre eles.
O inconsciente coletivo é depositário de um extraordinário vigor. É força viva que pulsa na alma da sociedade, tentando responder as questões da vida humana. Repele a injustiça; reivindica a distribuição condigna das riquezas naturais; dimensiona a conceituação popular de gratificação pelo trabalho. Isto parece ficar bem na lenda "O Tesouro da Fazenda do Retiro " , quando o tesouro só foi liberado para uma posse coletiva. Em 1981 encontramos uma variável dessas lendas no Arraial dos Campos, município de Itaúna. Numa noite fria recebemos em nossa homenagem a visita do agricultor Walter Gonçalves. De início falou das dificuldades e pobreza dos agricultores. Melhorando o grau de humor em sua conversa disse-nos: "A solução é encontrar um tesouro enterrado em algum lugar." Dissemos-lhe que não era fácil encontrar tesouros e ele ppprontamente respondeu: "Pode ser difícil mais impossível não é não." Diante de nosso silêncio Walter contou a lenda de um homem muito corajoso que conseguiu enfrentar vozes para desenterrar um tacho cheio de ouro ao pé de uma frondosa árvore de carvalho, bem como a sua destinação social.
O que relata a lenda "Tesouro do Isidoro" é a biografia de um escravo que rompeu com as ordens régias na luta pela libertação de seu povo. A persistência desse conto oral, na boca do soldado José de Oliveira, revela o sentimento do povo nas suas dificuldades para extrair da terra os minerais preciosos, ao contrário dos privilégios e facilidades dos forateiros.
No mito "Mulher de Sete Metros", podemos dimensionar a percepção popular as arbitrariedades e dos abusos no sistema de escravidão. Aponta uma sabedoria do povo em defesa dos direitos humanos.
4- AGRICULTURA E PECUÁRIA
4.1 - Lendas
a) "Fazenda do Sobreira"
Conta - se que um português com o nome de Manoel de Souza Sobreira, conseguiu escapar do Distrito Diamantino, com um grupo de escravos, estabelecendo-se na Fazenda da Palestina, no Município de Bonfim. Apossou-se de imensas terras e riquezas. Seu regime de trabalho era férreo, indo desde a madrugada até tarde da noite, domingos e dias santos.
Numa sexta-feira da paixão, não permitiu que paralisassem as atividades da fazenda. Quando o escravo tentou colocar a canga na junta de bois, um deles falou ao carreiro:
- Nem hoje ! ...
Logo em seguida o engenho começou a movimentar-se sozinho. O carro a cantar parado e o moinho a mover-se sem água.
Sobreira muito assustado, fez uma promessa:
Se o assombro findasse imediatamente, construíria duas igrejas em seus domínios. A de Nosso Senhor do Bonfim e a de Senhora Santana.
b) "O Boi do Capitão Bento"
A família do Capitão Bento criou um boi- O pardinho- desde bezerro, amamentando- o a mamadeira.
O boi ficou apegado à família e esta também gostava muito do boizinho.
O boi ficou grande e o capitão Bento resolveu vendê-lo por 50 mil réis. A família pediu, pediu para que não vendesse, mas o capitão foi duro. Vendeu.
Tempos depois, o boi voltou sozinho para a fazenda do capitão.
Novamente o dono o vendeu. E logo depois o boi reapareceu. Tornou a vender e o boi lá vinha de novo.
O capitão, que era ranzinza, resolveu matar o boi. Matou-o e enterrou-o lá para a mata da fazenda. Mas não adiantou nada. Lá para as horas mortas da noite, a alma do boi Pardinho reaparecia, próximo da casa do capitão Bento e principiava a mugir, a mugir até de madrugada.
Ainda hoje quem mora lá, ouve o mugido, longo e triste, da alma do "Pardinho".
4.2.- Mitos
a) "O carro de Boi Encantado"
Perto de Januária, contam que, dentro do Rio São Francisco existe um carro de boi encantado.
Nas horas mortas da noite, ele canta.
Esse carro, por ordem de sua dona, no tempo dos escravos, trabalhava até aos domingos.
Numa vez, na hora da missa, quando o padre condenava o trabalho em dia de guarda, o carro chegou no povoado e os bois se danaram a correr para dentro d'água desaparecendo.
E ficou encantado.
De noite se ouve o canto do carro de boi.
B) "Vaqueiro Misterioso"
Outro mito característico deste grupo é o Vaqueiro Misterioso. Com a tradição de um vaqueiro sabedor de segredos infalíveis, destro, hábil e invejável cavaleiro. Ninguém sabe qual a sua proced6encia. Aparece quando os vaqueiros estão reunidos. Disputa e vence a todos os outros. Quando recebe o prêmio desaparece. Veste-se mal e monta um cavalo velho. Humilhado pelos outros vaqueiros acaba sendo o herói admirado por todos e desejado pelas mulheres. (CASCUDO, L.C.)
4.3.- Aspectos sócio- históricos
Algumas lendas e mitos tiveram como origem e função a preservação do direito de lazer. São clamores contra o trabalho aos domingos e dias santificados, bem como o excesso na jornada de trabalho. A lenda "Fazenda do Sobreira" o mito "Carro de boi encantado ", falam de paralizações de engenhos e carros de bois, por determinações sobrenaturais. Um agricultor de Santana do Paraopeba, no município de Belo Vale, contou-nos a presente lenda com mais alguns detalhes sobre a personalidade de Sobreira. Procuramos saber se ele acreditava em tudo que a referida lenda dizia. Respondeu-nos que um homem rico e carrasco como Sobreira só resolveria construir duas igrejas quando estivesse ameaçado por coisas do outro mundo.
Na lenda "O boi do Capitão Bento", vamos buscar uma idéia da contradição existente na pecuária extensiva do Médio São Francisco. O vaqueiro, ao mesmo tempo em que procura a sua afirmação na derrota do boi, procura aproximar-se do gado. A conquista carinhosa na base do bom trato, chamando o gado distante para o curral, traduz a ambivalência sensível na alma do vaqueiro. O mau trato e a estima aos animais é uma questão que flutua na exposição da lenda. Ela aponta a crueldade de proprietários e empregados contra os animais que oferecem dificuldades na sua exploração como bem econômico. Para castigar ou compensar a superação do valor estima, somente as forças do além são eficazes na concepção do discurso lendário.
Em palestra com diversos vaqueiros do vale do Jequitinhonha, procuramos saber o que, em suas concepções, significava ser um bom vaqueiro ou vaqueiro ideal. Do que disseram conseguimos extrair os seguintes: Que vaqueiro ideal é aquele que sabe mais que o fazendeiro, tudo que se refere ao gado; que não precisa ser mandado porque conhece todas as obrigações e as cumpre nos momentos exatos; que trabalha em qualquer condição, arriscando a saúde e a vida; que deve ser forte, dedicado e fiel ao fazendeiro. Desta forma o "Vaqueiro Misterioso" é uma herança do ideal do vassalo ou do cavaleiro medieval.
5.1- LENDA
a) "O Pescador Simão Corneta "
Contam que em Manga havia um pescador com o nome de Simão Corneta. Muito pobre, casado e com muitos filhos, que ficavam em casa famintos por muitos dias.
Certo dia saiu para pescar. Em cima do rancho apanhou o remo e as linhas; encheu a cumbuca de isca, benzeu-se ante sde entrar na canoa e remou rio abaixo ouvindo os barulhos das aves. Para espantar as moscas acendeu o seu cachimbo de barro.
Chegando na barra do Rio Verde Grande encontrou outros pescadores que esperavam pegar surubis de 70 quilos para cima. Iam dias, vinham noites e nada de peixes. Depois de quatro dias de tentativas resolveu entrar no rancho de um velho pescador que ele chamava de tio Ciríaco. Deitou-se no banco da sala e adormeceu profundamente. Mais tarde Ciríaco e sua velha mulher passaram a observar o pobre pescador que fingia dormir. A mulher perguntou ao velho qual seria a razão do insucesso de Simão Corneta. Ciríaco respondeu que Simão não conhecia os segredos do Rio São Francisco. A velha pediu a Ciríaco que revelasse ao pobre pescador os segredos o que recusou dizendo ser perigoso para Simão Corneta que sendo jovem e belo não resistiria os tentadores encantos da Mãe-d'água. Revelou apenas que a Mãe d'água gostava de aparecer à meia-noite sobre uma pedra lisa e que era preciso ter coragem, jogar fumo para trás e correr para ela não pegar.
Simão achou que o velho Ciriáco era bem sucedido nas suas pescarias por causa das graças da Mãe-dágua e que já tinha posse do segredo. Acabou com o fingimento de sono e levantou-se. Depois de comer peixe com pirão, despediu-se do casal de velhos e pôs-se a remar rio acima. O velho Ciríaco ficou preocupado vendo Simão Corneta, sem o segredo, cada vez mais distante e a noite cada vez mais próxima.
A lua clareou o rio que parecia uma avenida de prata e era meia-noite; um vento soprou forte; um galo cantou; vozes humanas e rumores de animais aproximavam e Simão nada compreendia. De repente apareceu em cima dágua uma casa branca como o algodão. Seu telhado era de escamas de peixe; as janelas de ouro e as paredes de prata. Daquele palacete saiu a Mãe-dágua. Assentou-se na pedra lisa penteando seus longos cabelos com um pente de ouro.
Simão ficou ali contemplando aquela maravilha até que a Mãe-dágua se adormeceu deixando o pente de lado. Corneta pensou, então, levar o pente com ele e foi como um gato até a pedra lisa. Quando conseguiu colocar a mão no pente a Mãe-dágua deu grito agudo, muito alto e desapareceu levando Simão em seu palacete.
5.2.- Mitos
a) "Cavalo D'água"
Tudo o que a terra tem, o Rio São Francisco também tem. Não é só em terra que há cavalo.
Existe no rio o cavalo d'água.
Há dias em que ele relincha demoradamente.
É sinal de que vai fazer bom tempo.
Conta-se que certos pescadores já montaram no cavalo d'água, mas para esta façanha tem de se submeter a duras provas e pedir licença ao caboclo d'água, que é dono do cavalo d'água.
O cavalo misterioso e aquático do rio São Francisco cavalga quase sempre ao amanhecer e ao cair do sol.
b) "Caboclo D'água"
Registra o professor Saul Martins a crença de pescadores e barqueiros do São Francisco, na existência de homens encantados que habitam o fundo do rio em cidades fantásticas. Contam longos casos de aparições e de ações malfazejas de um ou de outro caboclo d'água.
5.3.- Aspectos sócio-históricos
Diz Afrânio Teixeira Bastos que o São Francisco é um rio de contrastes que parece obrigá-lo a ostentar um absolutismo sobre o vale. Ao mesmo tempo é fator de riqueza e de miséria, de vida e de morte, de progresso e de atraso, de integração e de dissociação políticas. Age como um déspota insatisfeito, apenas interessado numa individual e cruel exibição de força. (SANTOS, A T. 1960) Esta é também a concepção do povo que vive em suas margens. Tudo de bem e de mal é atribuído ao rio. Concordamos que o rio seja uma força natural, mas não concordamos que os males sejam atribuídos a fatores geográficos porque são tipicamente sociais. Esta evidência demonstra a lenda. O pescador Simão Corneta foi vítima do competitismo, antes de sair para pescar, na pobreza de seu rancho, de sua insegura canoa, na falta de provisão e na sua solidão. Foi vítima do competitismo durante o tempo de pescaria, pois não recebeu ajuda e nem solidariedade de outros pescadores; Ciríaco foi hospitaleiro mas não foi solidário com Simão, negando-lhe a necessária orientação.
Os mitos "Cavalos D'água", e "Caboclo D'água, revelam o tipo social do pescador, da região de Januária, na figura do barranqueiro, que vive a tradição da pesca. A sua grande paixão é o rio, do qual tira o sustento e para o qual dedica toda a energia. O cavalo d'água fa z a ligação entre o mundo exterior próximo do barranqueiro e o mundo interior, traduzido no amor pelas coisas do rio. O caboclo d'água representa os perigos escondidos nas águas do grande rio.
Citação Bibliográfica:
BASTOS, Afrânio Teixeira. O Rio São Francisco e sua interpretação. In: Januária na
Comemoração do centenário Belo Horizonte: Imprensa Oficial- 1960- pág.19
CASCUDO, Luis da Câmara. Mitos Brasileiros. Rio de Janeiro: Caderno nº 6 MEC /CDFB
CUNHA, Alexandre Eulálio Pimenta da. A obra menor de Joaquim Felício dos dos Santos. In: SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantinao. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1956
" Estrela Polar " , Diamantina, 23 de janeiro de 1972.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petropólis: Vozes, 1978
MELO, Veríssimo de. O conto folclórico no Brasil. Rio de Janeiro; MEC/CDFB. Caderno nº 11, 1976-.