O médico e o mamão

02-02-2011 21:51

    Depois de seis anos de ausência, cheguei á Diamantina, formado em medicina. Vinte dias de viagem a cavalo... em burros.

    Recepção coridalissima. Era de esperar.

    Suprindo a descrição da festa. Figure-a o leitor por esta notas: Encontro, por algumas dezenas de cavaleiros, á uma légua de distância, sem falar em alguns que tinham ido de véspera esperar no último pouso; foguetes e bombões a granel, girandola á entrada da cidade filarmônica, o povo nas ruas e senhoras á janela, enquanto desfilava o prestito... Tudo conforme o uso da terra.

    Apeiaram-se todos á porta da casa de meus pais, e seguiu-se logo o jantar, com as abundantes vibrações, os brindes, em prosa e verso, e as canções mais ou menos  "bachicas", cuja letra é, tanto quanto possível, aplicável á pessoa saudada. O repertório é grande, mas não pode compreender todos os casos, circuntstâncias; muitas cantorias exigem soloso e coros. Quanto a saltitar-me ainda agora na mente!

    Passemos adiante, chegamos á sobremesa; doces e mais doces, secos e de calda, pastéis e luminárias, trouxas e cremes, formigões e fartes, caramelos e coscorões, suspiros, babas, bolos e pudins, rosquinhas e broinhas, siricais e manjares, cocadas e queijadinhas, ovo nevados e em fios, cidrões e alfenins, munus, christi, cuspos de moça e orelhas de frade, etc, etc,e tc.

    Era forçoso provar de tudo; caa prato era feito por uma senhora amiga ou parenta da família...

    A situação ia-se tornando insustentável.

    Eis que se apresenta inopinadamente, uma velha mulata, envolta de larga capa de baêta preta e com uma trunfa de lenço de alcobaça na cabeça. E, sem rir-te, nem guar-te, exclama, chorando de alegria:

    - "Ai, meu Deus! É nhônhô mesmo? E feito dotô surjão! Tão menino! Abraça sua velha, nhônhô.... Olha, não esqueci que oncê ia lá em casa comer meus mamão..."

    Assim que eu sube da sua chegada, dependurei este na fumaça; chegou maduro mesmo em tempo. Gente dêca um prato, uma faca e um garfo. Vou partir como oncê gostava, tirando semente e deixando a pelizinha. Oncê ainda gosta de mamão?

    Aqui, talvez causasse reparo essa entrada tão brusca da tia Juvência; ali não. Fora escrava de meus avós, e era um anjo de congidade.

    -Sim, tia Juvência. É uma das melhores frutas, para mim. Muitas vezes tive saudades, no Rio, dos excelentes mamões de Diamantina.

    Boca que tal dizeste!

    Olharam-se os convites e olharam-me. Do princípio ao fim da mesa uma corrente simpática percorreu, de súbito, e uma espécie de sena transmitiu-se aos que estavam mais longe. Estes iam levando a cabeça, e nos rosto desenhavam-se plicas interrogativas, mais ou menos acentuadas, conforme a impressionabilidade de cada um.

    A corrente vinha, voltando-se uns para os outros, e ao gesto ia-se contagiando, até chegar a alguém  que tivesse ouvido minhas palavras. Elas eram repetidas á meia voz, e a corrente ia em sentido inverso. Desfaziam-se as pregas do rosto e um expressivo sorrios envelolo ia-se comunciando aos que ouviam.

    As pessaos que estavam fora de mesa foram-se inteirando do caso. E depois, como um coro silencioso de gestos, fixaram-se em mim todos os olhares.

    Era uma conjuração geral. Só depois compreendi que eu estava perdido!

    Dormi mal. Sentia-me enjoado e perseguido pelo ressaibo do mamão comido sobre posse.

    Apenas sai do quarto, vi sobre a mesa da sala próxima, bandejas e bandejas de enormes mamões. Alguns escondendo-se, com a pefidia da Galatéia de Virgílio, para mais se deixarem ver, cobriam-se com toalhas de croché e crivo, ou com guardanapos de papel repicado. Através dos frutos envolucros, bem se via aquela cor dourada, quase insultante, escarninha.

    Outros ostentavam uma nudez  indiferente, descuidada lazarônica.

    Eram essas as minhas impressões dispepticas.

    De minuto em minuto, surgia no topo da escada, uma negra, uma mulata, um menino, trazendo mamões de todos os feitios fêmeas e machos, compridos esféricos, embrulhados ou nús... Eram presentes das famílias ricas e pobres da cidade, e até de solteirões.

    - Sinhá (ou Sinhô) mandou estas frutas prá dr. Antonio, porque viu dizer que ele gosta muito...

    Não quiz dar o braço a torcer. Nesse dia, havia muitas visitas em casa, provei uma meni dúzia de mamões. E os meninos, que eram muitos, felizmente, comeram os outros.

    Nos dias seguintes, continuou a procissão dos mamões.

    A meninada já recusava; atirei-os ás galinhas.

    Estas acudiam pressurosas ao baque dos mamões esmagadas no terreiro, e os comiam com voracidade. Depois de alguns dias, porém, já não podiam dar visão á enchente. E afinal quando caiam no terreiro os mamões, e o galo anunciava regougando a pitança, acudiam elas, mas apenas se aproximavam do festim, manifestavam por sons guturaes a decepção. Algumas pareciam escarnear; outras possuíram-se de terror e disparavam em precipatada fuga.

    Mas, havia pior.

    Logo no dia seguinte á minha chegada, começaram os chamados dos doentes.

    Em cada casa, apenas acabava de escrever a receita, vinha um prato de talhadas de mamão.

    - Agora, doutor, um pedacinho de sua fruta predileta...

    E eu comia...

    Em outras casas, mal entrava, gritavam:

    - Descasquem o mamão do doutor!

    As vezes, ouvia, da rua, ao chegar a alguma casa: - Ó sinhá, o dr. Antonico aí vem. Olha o mamão!

    Um dia, achava-me em casa de uma família, visitando um doente. Ouvi um recado a escada. Era uma pessoa que pedia uma mamão com urgência, porque precisava mandar chamar o doutor nesse dia...

    E assim, oito a dez vezes por dia, entre o almoço e o jantar, era eu forçado a ingerir entalhadas de mamão!

    Não havia recusar, alegando já ter comido em caa de X ou Y. Ao contrário:

    - Ah! É assim? Lá o senhor come.

    E tomando um tom plangente e nos gestos desconsolados acrescentavam:

    - Mas, quem somos nós para merecer tanta honra...

    O remédio era comer. Comer e não bufar.

    Outros diziam:

    - Sim, já comeu, mas, olhe que este foi posto na fumaça para o senhor. É sabe quem o pôs? Foi Sinhásinha.

    Que fazer?

    Era o suplício de Tantalo ás avessas, mas era quase um martírio.

    Adoeci. Fiquei enervado, dispeptico, hipocondríaco, neurasfênico, melancólico.

    As vezes, a larva de suicídio fosforecia na noite melanomaníaca.

    Resolvi fugir. Um dia, ao alvorecer, selei a beta, e partir a trote largo pela estrada a esmo.

    Acertei tomar a de São João da Chapada. Quando a reconheci, fiquei consolado por duas reflexões: aí morava um bom tio meu e a povoação está situada a mil e quatrocentos metros de acima do nível do mar, em região alpestre. Altitude e terreno impróprios á cultura de mamão.

    Ás nove horas, achava-me a duas e meia léguas da cidade, no Sítio dos Caldeirões. Senti necessidade de alimentos.

    Dirigi-me a única habitação que avistei. Apeei e pedi almoço ao Cornélio, que ali morava como uma anachoreta, nas ruínas da bela chácara histórica do antigo intendente dos diamantes.

    - Oh! Doutor, chegou a tempo. O almoço está na mesa, mas vai passar mal. Felizmente, na cozinha, tenho uma surpresa que você vai apreciar.

    Era o Cornélio emérito caçador. Não podia vir da cozinha outra coisa sinão uma boa codorna ou perdiz...

    Pois bem. Guardemos lugar para a surpresa.

    Tomei apenas dois ovos quentes.

    - Está você nos seus gerais. Parece que o acompanha a fortuna - diz o Cornélio, chegando da cozinha, e trazendo em triunfo... um enorme mamão!

    - Estava na fumaça... Advinhe quem me trouxe isto ontem?

    - Já sei: foi o demônio - fonquei, furioso.

    E, montando na besta, partir como um raio, deixando o Cornélio boquiaberto.

    Chegando a São João da Chapada, fui otimamente recebido. Ninguém esperava.

    No dia seguinte, apenas acordei, veio meu tio avisar-me que a melhor hora de comer mamão era antes do café e imediatamente apresenta-se o copeiro com uma grande salva, em que aspojavam colossais telhadas do terrível, ostentando milhares de sementes negras, aderentes á placenta. Pareceram-me tubérculos milhares crivando o mesenterio de uma cadáver eventrado.

    Era de mais! Repeti a salva.

    - Que é isso? Olhe que é mamão do Inhaí...

    Assim que você apeiou, mandei um portador, que viajou toda a noite, para trazer estes mamões. Sei que você não pode passar sem mamão.

    - Pois, fique sabendo que venho fugindo deles!...

    Meu tio olhou-me hebetado...

    Depois do almoço, saí a passeio. Na entrada do arraial, vinha chegando uma tropa. Três burricos vinham no coice, fungando, soprando nos embomais de taquara, arquejando de cansaço.

    - Coitados! - disse eu ao tropeiro.

    - Pudera não! D. Carlota, do Quartel do Indaiá, arrumou-lhes essa carga, e eu fui tolo de deixar ela por esses dobros.

    - Que é isso?

    - Disse que era para um desejo. Mas, eu pensei que só mulher é que tinha isso. Diz ela que é para um doutor que chegou aqui...

    - Que é isso? - perguntei de novo.

    - É mamão, meu senhor.

    Compreendi que minha sorte era inexorável.

    Nessa noite, tive pesadelos horríveis. Vi espectros medonhos, dançando ao redor de mim... A cada compasse da música, curvaram-se em cadência e mostravam-me os crâneos divididos ao meio e cheios de polpa e sementes de mamão. Depois, apanhavam no chão enormes mamões e atiravam-mos á cara, bombardeiando-me por todos os lados. Eu tinha o corpo todo emplastrado da polpa do fruto esparrinhado. E, como o conde Ugolino, da "Divina Comédia", era obrigado a rachar os crâneos de outros espectros e a comer os miolos féticos, que eram sementes apodrecidas...

    E fui me atolando em uma lama amarela de mamão. Pernas, tronco, pescoço, íam descendo, e a lutulenta vai-se subindo. Resfolegava, sentindo o fétido, e já o rosto era invadido quando acordei banhado em suor frio.

    Resolvi reagir. Voltei a cidade e fiz constar, quase por edital, que "eu não gostava mais de mamão".

    Passei dez anos sem poder comê-lo; depois, reatei relações com ele, mas sem familiaridade.

    Vinte anos depois, tive uma grande compensação da neurastênia causada pelo abuso do mamão: foi a minha descoberta da peptona, obtida pela leite da preciosa papaya...

Silvério, Padre, Quarenta Contos, 1918.