O Laport

18-05-2011 22:22

    Não me lembro bem quando o vi pela primeiva vez. Entretanto, recordo-me perfeitamente do Laport.

    Alto e magro, andar macio e requebrado, moreno, com a cara pintada de escorbuto, cabelos anelados, abundantemente contornados pelas grandes abas de seu velho chapéu preto, cachimbo ao canto da boca, mãos para trás, a passear no pedral do seu simpático sobradinho da rua do Bonfim, era uma figura de aspecto singular que a todos fazia rir.

    Bonachã, pilhérico, de uma jovialidade própria das crianças, o velho mestre Laport, filosóficamente, sem uma queixa, sem um protesto assistia embora contristado, ao desmoronamento dos nossos provincianos e puros costumes, á derrocada de tudo aquilo que devíamos avaramente conservar.

    Quando se falou na demolição do velho Teatro Santa Isabel, Laport, com a voz trêmula, quis protestar contra esse atentado ás nossas tradições.

    Responderam-lhe: "É o progresso!..."

    - Amaldiçoados seja esse progresso, retrucou zangado, que faz desaparecer, que consome, derruba e esfacela, toda nossa documentação histórica!...

    E Laport não assistiu á obra dos progressistas que derrubaram o velho Teatro Santa Isabel, construído nos tempos dos diamantes, quando a Diamantina surgiu na floração estupenda dos seus dias áureos!

    Amaldiçoado o progresso, pois seja esse brado também, que mutilou o velho roble, a legendária gameleira da Cavalhada, ali perto do secular teatro, testemunha ocular e muda dos feitos dos contratadores de diamantes, pousada dos bandeirantes , dos caçadores de esmeraldas!...

    A alma vibrátil de Laport, artista nato, humilde, modesto, que nunca teve escola, apaixonado cultor das relíquias do passado, talvez não suportasse atos tão extravagantes do modernismo impiedoso, cruel e mau!...

    Apaixonado cultor da pintura, predominou no velho pintor diamantinense a idéia artística, deixando sempre transparecer nas suas telas selvagens, criadas pela sua fecunda imaginação, a pureza de sua alma sensível e boa, a majestade de nossas paisagens.

    Pintava figuras para presépios e fazia epitáfios além de desempenhar no palco com muita naturalidade, impecavelmente, o papel cômico ao lado do Cosme, Assis Moreira, Vicente Tôrres e outros que cultivavam a arte dramática.

    Tinha, por isso, muita razão o saudoso mestre Laport quando chamava contra a demolição do velho Teatro Santa Isabel, onde tantas vezes principalmente nos "Sinos de Cornevile", ou no "Fantasma Branco" sua alma de delicado artista experimentava as doces comoções dos aplausos partidos das mais fidalgas mãos das damas do Tejuco, depois que, ao lado do "Paraguai", vinha chorar nos sons de sua flauta - a sua predileta valsa "Saudades de Diamantina!"
    E , mais do que artista, Laport era um bairrista excessivo, de tal modo que não compreendia a vida fora de Diamantina, a que chamava "pedaço do céu".

    Tanto é assim que em certa ocasião, a muito custo, foi levado pelo Vicente Tôrres ao Mendanha, distante três léguas de Diamantina, onde se celebrava com arrojo a festa do Divino.

    Gemia a viola nos ranchos, africanos dançavam o samba e marujos tilintavam os pandeiros, fervilhando o povo por toda a parte, na expansão fervorosa dos dias de festa.

    Laport, tristonho, sem assento, ora aqui, ora ali, era a única pessoa que tinha no semblante um ar de grande contrariedade, não querendo a ninguém confiar o mistério do seu abatimento que a todos incomodava. E, só se foi saber que ele estava era morrendo de saudades de Diamantina, depois que, de volta, ao chegar no alto do campo dos "Cristais", e avistar cá em baixo esse "grupozinho de casas alvas como cordeirinhos que se banharam na fonte" não pode conter suas lágrimas ao mesmo tempo que com uma satisfação indefinida, numa enorme sensação de gozo exclamara três vez: "Diamantina!"

    Por tudo isso foi Laport uma figura muito popular em Diamantina onde morreu, sem ter ouvido o arquejar do cavalo de fogo do Governo, nem ouvido a grossa barulhenta de uma Jazz Band, que por certo não trocaria pela serenidade de uma valsa, dançada á antiga, isto é, a meio metro de distância do corpo da dama.

    Quanta maldição não preferiria hoje o Laport, quando visse tanta cabeça sureca, no exagero da moda cujas cabeleiras no seu tempo só se cortavam em cumprimento de uma promessa para as Santas das Igrejas!...

    Quantos soluços não brotariam do seu peito quando contemplasse, no lugar do teatro, em doloroso contraste, a casa dos suplícios, a cadao do inferno!...

    Qua se saiba, pois, ao menos acatar com saudades, a memória desse velho professor que tanto dignificou a sua terra, que tanto a amava e que a queria pura, elevada a sempre altiva!...

Fernandes, Augusto, Tipos Populares de Diamantina, Editora São Vicente.