Origem da marujada
Marujada do Rio Preto
Que dê doces recordações senti ao ouvir, nas ruas de minha terra, o som festivo dos pandeiros da marujada! todo o meu saudossimo passado, nítido e rápido, se reproduziu na minha retina, com aquela emotividade de quem, de novo, risonho e satisfeito, recebe o calor dos pátrios lares, depois de oito longos anos de ausência!
Os marujos metidos nos seus policromos uniformes, levando pelos séculos a dentro a tradição recebida de seus antepassados, constituem o centro de irradiação de fulgores das festividades das ruas. Onde quer que eles estejam, aí está toda uma grande massa humana de admiradores, composta de centenas de pessoas rudes, procedentes dos mais longinquos e desertos recantos. Cantando sem cessar, sem desfalecimento, durante três dias, os marujos dão prova de sua formidável resistência, física, sustentada pela intensidade de sua fé religiosa e boa vontade.
Neles, não se sabe o que mais admirar: si a berrante variedade de cores de seus interessantes uniformes, resultante de uma calça branca, blusa de cor, capacete de papelãocoberto de papel de seda e encimado por galhos de flores artificiais, fitas voando ao sabor do ventoe dezenas de pequeninos espelhos pelos troncoespalhados; si a cadência de suas danças ou o barulho ensurdecedor dos sons emitidos por inúmeros pandeiros; si a rigorosa disciplina dos seus componentes ou a excentricidade de seus trabalhos e rituais que, até hoje, parecem conservar o primitivo sabor.
As suas cantigas, posto que não tenham mais sentido, pelo baralhamento de ideias e palavras, sofrida pela rudeza de quem canta, deixam, com tudo, no espírito da gente uma lembrança eterna. Parece que as suas canções foram a fiel reprodução dos feitos gloriosos dos marujos. Mas, no decorrer dos anos, vindo de geração a geração, pelo esforço sem igual de um punhado de gente inculta, mas cheia de boa vontade eespírito religioso, á conquista da imortalidade, o que foi conseguido; foram sofrendo bruscas amputações, inevitáveis adulterações para chegarem até nós contaminadas de erros, enviadas de graves imperfeições, sem rimas, sem nexo vazias sentido.
Segundo a tradição, conversando com o velho marujo, José Nascimento, contou-me ele, resumidamente, alguma coisa da marujada. De seus dizeres, tirei a seguinte conclusão.
Há cerca de muitos séculos passados, caiu do céu, em alto mar, uma barca, ficando paralizada onde caiu, por motivos não explicados. Nela viajava Nossa Senhora do Rosário. Remavam-na centenas de anjinhos. Logo depois, correu vertiginosamente, a notícia de que a barca de Nossa Senhora só sairia do mar, se alguém, com suas danças e cantigas, conseguisse demovê-la de seu intento, aplacando o furor das ondas. E para lá se dirigiram os caboclinhos, os congados, os catopês e vários outros grupos, os quais tiveram de passar pela grande decepção de voltar, deixando a barca na sua natural imobilidade, insensível, não somente ao sentimentalismo de suas canções, como ainda á furia indomável das ondas revoltas. E foi nessa ocasião que um punhado de homens do marse reuniram em grupo e para lá se dirigiram, levando a o desejo de fazer andar a barca. Ao se aproximarem, também cantaram e com tanta religiosidade, que, minutos depois, viram que a barca, singrando impassível e orgulhosa ás águas oceânicas, avançava para eles. Compreendendo, então, que Nossa Senhora do Rosário lhes havia escutado, puseram-se a navegar em busca de terra, seguidos de Nossa Senhora, e cantando:
"Vamos ver a barca nova
Que do céu caiu no mar,
Nossa Senhora vai nela
E os anjos vão a remar.
São Pedro para Piloto
São José para Capitão
São Martinas para arrecostado
Nessa nobre embarcação
São Francisco de Xavier
Santa Maria Imaculada
Estrela do Oriente,
Que alumia em toda mar."
Ao se aproximarem da terra, porque o mar ficasse cada vez mais bravio, os marujos cantaram:
"Ou de lá da proa
Ou mestre piloto,
Sobe o pano a riba
Que o vento é muito,
Nós tamos perdido.
Viemo, viemo, viemo,
Queremos com toda alegria.
Nós viemos festejar
A Virgem Santa Maria"
No momento de pisar em terra, a marujada canta:
"Guerra, guerra, guerra,
Que os mirantes tão na terra."
Durante a viagem, levados pela falta de pagamento do soldo, os marujos tramavam uma conspiração contra o seu comandante, cujo movimento, talvez que pelo silêncio da organização só teve poucas adesões.
Ao pisar em terra firme, um dos calafates, talvez o mais mexiriqueiro, tendo ouvido os insultos do contra-mestre contra o patrão, canta:
"Senhor patrão, eu quero lhe contá
O contra mestre me disse que lhe dá...
A Estrela Polar, A marujada do Rio Preto, pág. 4, Hermes Pires Leão, Diamantina, 28 de agosto de 1938, número 35.