Os Primeiros Hospitais em Diamantina

23-03-2017 07:58

  HISTÓRIA DA MEDICINA

Hospital do contrato Diamantino, Santa Casa de Diamantina e Hospício da Diamantina

Hospital do Contrato Diamantino, Santa Casa de Diamantina and Hospício da Diamantina

Sebastião Silva Gusmão1; Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani2; Silvio Pereira Ramos Júnior3

1. Professor Titular de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais -UFMG. Chefe do Serviço de Neurocirurgia do Hospital das Clínicas da UFMG. Belo Horizonte, MG- Brasil
2. Professora de Filosofia, Antropologia e História da Arte da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Diamantina, MG - Brasil
3. Diretor Clínico da Santa Casa de Caridade de Diamantina; Chefe do Serviço de Neurocirurgia da Santa Casa de Caridade de Diamantina. Diamantina, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Sebastião Gusmão
E-mail: sebastiaogusmao@gmail.com

Recebido em: 23/11/2011 
Aprovado em: 12/06/2012

Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil.

RESUMO

Descrevem-se a origem e a evolução de três hospitais da cidade de Diamantina. O Hospital do Contrato Diamantino, a Santa Casa de Caridade de Diamantina e o Hospício da Diamantina foram, por ordem cronológica, um dos primeiros hospitais, a terceira santa casa, o primeiro hospital psiquiátrico do estado de Minas Gerais, respectivamente. Para se compreender o surgimento e a evolução das três casas de saúde, é feita revisão da história socioeconômica da cidade de Diamantina.

Palavras-chave: História da Medicina; Hospitais/história.

 

INTRODUÇÃO

Descrevem-se a origem e a evolução de três hospitais do velho Tijuco (ou Tejuco, antigo nome da cidade), posteriormente cidade de Diamantina. O Hospital do Contrato Diamantino, a Santa Casa de Caridade, e o Hospício da Diamantina foram, por ordem cronológica, um dos primeiros hospitais, a terceira santa casa e o primeiro hospital psiquiátrico do estado de Minas Gerais, respectivamente. As fontes da história da santa casa são os arquivos de sua propriedade e a Biblioteca Antônio Torres, administrada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Para se compreender o surgimento e a evolução das três casas de saúde, é necessário conhecer a história da mineração diamantífera no Arraial do Tijuco e na posterior cidade de Diamantina.

 

DIAMANTINA

Diamantina, como as demais cidades históricas de Minas Gerais, é consequência da aventura dos bandeirantes em busca de metais preciosos. Para sustentar o garimpo, atividade econômica principal, foram desenvolvidas diversificadas atividades comerciais paralelas, gerando uma opulência material que possibilitou às vilas desenvolverem manifestações culturais inspiradas nas elites europeias. Essa relação com a Europa e a riqueza advinda da exploração do ouro e do diamante possibilitou o desenvolvimento de uma cultura singular, reproduzindo-se em Minas Gerais uma sofisticada arquitetura colonial, semelhante à edificada na mesma época no continente europeu.

No final do século XVII, bandeirantes e aventureiros encontraram ouro em abundância na margem do córrego Tijuco, no nordeste de Minas Gerais, onde rapidamente se estabeleceu o Arraial do Tijuco. Em 1727 são descobertos os diamantes, cuja existência foi oficializada em 1729, sendo declarados, como todo metal precioso, propriedade da Coroa portuguesa. Em 1731 foi demarcado, na comarca do Serro do Frio (a Capitania de Minas Gerais se dividia em quatro comarcas: Vila Rica, Rio das Mortes, Rio das Velhas e Serro do Frio), o distrito diamantino, com sede no Tijuco. Por essa medida, a Coroa dificultou o acesso às lavras e elevou as taxas de capitação, com o objetivo de exercer rigoroso controle sobre a produção e preço dos diamantes no mercado europeu. Em 1734, com o propósito de se conter o contrabando e eliminar os prejuízos ao erário público, foi criada a Intendência dos Diamantes, proibindo-se a exploração indiscriminada de diamantes por particulares. Em 1739, a exploração dos diamantes passou a ser monopólio particular de um contratante, que comprava da Coroa o direito de extração. Cabia aos contratadores o direito de minerar e cobrar impostos, ficando proibida a qualquer pessoa a manutenção de lavras e garimpos nas terras do distrito diamantino, onde até mesmo a entrada de pessoas passou a não ser permitida sem a autorização das autoridades coloniais, a partir de 1745. No período de 1740 a 1748, foi contratado o Sargento-Mor João Fernandes de Oliveira. De 1748 a 1752 o contrato esteve sob responsabilidade de Felisberto Caldeira Brant. Em 1753, a Coroa converteu em monopólio régio a comercialização dos diamantes. De 1753 a 1770, João Fernandes Oliveira reassumiu o posto de contratador juntamente com seu filho desembargador e homônimo. O ouro da colônia e o diamante do Tijuco extraídos nesse período financiaram o esplendor do império transoceânico de D. João V (1689-1750).1-3

Em 1771, por decisão do Marquês de Pombal, ministro de D. José I (1714-1777), foi extinto o sistema de contratos. Além da comercialização, a extração dos diamantes também passou a ser monopólio da Coroa portuguesa, sob a direção da Real Extração dos Diamantes, com sede no Arraial do Tijuco, composta pelo intendente, três caixas-administradores e um fiscal. Por meio do Regimento Diamantino (apelidado de "livro da capa verde"), o distrito diamantino é submetido à administração específica, subordinada diretamente ao intendente e ao governador. O Regimento foi constituído por meio da compilação de vários decretos mais antigos, continuamente reiterados e nunca efetivamente implementados no distrito. O sistema da Real Extração continuou durante o reinado (1777-1792) de D. Maria I (1734-1816) e durante a regência (1792-1816) e o reinado (1816-1826) de seu filho D. João VI (1767-1826).1-3

O Tijuco, localizado na comarca do Serro Frio e centro administrativo da Demarcação Diamantina, ficou reduzido no período colonial a arraial, apesar da população significativa para a época. Somente depois de 1821, com a reforma do código, os tijucanos puderam se libertar da forte opressão imposta pela Real Coroa por meio do Regimento Diamantino. Em 1831, o arraial foi desmembrado do Serro e elevado à categoria de cidade em 1838 com o nome de Diamantina.1,2

A extração de diamantes em Diamantina no século IX apresenta fases de crises e recuperações que podem ser periodizadas: 1808-1832, primeira crise; 1832-1870, apogeu da atividade garimpeira; 1870-1897, segunda crise; 1897-1930, reanimação da atividade mineradora.4

A crise do período 1808-1832 corresponde à derrocada final da Real Extração desencadeada pela crise portuguesa do início do século XIX (guerras napoleônicas e invasão francesa de Portugal), que culminou com a vinda da Corte para a colônia em 1808, seguida da independência em 1822. Entre 1832 e 1870 ocorreu acentuado impulso na mineração provocado pela liberdade de garimpar consequente à independência do país e pela descoberta de novas lavras. Foi época de maior extração de diamantes no Alto Jequitinhonha. Em 1870, iniciou-se intensa crise, consequência direta da descoberta dos diamantes da África do Sul, determinando verdadeira depressão econômica na região de Diamantina. A partir de 1890, ocorreu reanimação da atividade mineradora pela instalação de companhias no Rio Jequitinhonha.4

Quando ocorreu a decadência da mineração em Minas, a solução económica foi a agricultura. Em consequência à infertilidade do solo de Diamantina, o então Bispo Dom João António do Santos, para enfrentar a grave crise económica, liderou em 1874 projeto de desenvolvimento formulado pelos seu dois irmãos (António e Joaquim Felício dos Santos) e por Pedro da Mata Machado. Esse projeto resultou na fundação de três fábricas de tecidos (Biribiri, São Roberto e Santa Bárbara), o que era um complexo industrial de magnitude considerável para a época. A mitra diocesana foi a grande incentivadora desse processo, seja como proprietária das fábricas de tecidos, seja como emissora de bónus impressos (borrusquês) na década de 1890, quando da escassez de moedas no período de consolidação da República. A partir da metade do século XX, a indústria têxtil de Diamantina entrou em franca decadência e a extração de diamante decaiu progressivamente.4

Em consequência à crise económica e ao isolamento no sertão mineiro, o processo de desenvolvimento de Diamantina no século XX foi tardio, vindo a ocorrer somente no contexto da ascendência política de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Sua ação foi no sentido da preservação do centro urbano e ligação do município por meio de estradas à comunidade estadual. Liderou a construção de estradas para ligar Diamantina aos municípios das regiões norte e sul. Com o objetivo de preservar o casario colonial, conseguiu o tombamento do centro histórico da cidade no ano de 1938. O efeito imediato desse tombamento foi a restauração de vários edifícios do século XIX9, em plena ruína.5

No final do século XX, a cidade foi elevada pela UNESCO à condição de património cultural da humanidade e tornou-se sede da Universidade do Vale do Jequitinhonha e Mucuri. Progressivamente sua economia se reestrutura com base no turismo e na educação e saúde.

 

HOSPITAL DO CONTRATO DIAMANTINO

No século XVIII, a Medicina em Portugal e suas colónias dividia-se em dois ramos: um erudito, exercido por médicos formados (também denominados físicos); outro mais prático, sob responsabilidade de cirurgiões. Antes das reformas da Universidade de Coimbra, determinadas pelo Marquês de Pombal, os cirurgiões gozavam de estatuto social inferior ao dos médicos. Diferentemente destes, cujo aprendizado girava em torno dos clássicos da Antiguidade e seus comentadores árabes, os cirurgiões tinham aprendizado mais empírico, que era realizado no Hospital de Todos os Santos em Lisboa e na Universidade de Coimbra.3 Após a habilitação eles recebiam carta de licenciamento do Cirurgião-Mor do Reino e então se intitulavam "cirurgiões-aprovados". No Brasil, ao tempo da Colónia, essa atribuição cabia ao delegado do cirurgião-mor. Além do médico e do cirurgião, existiam ainda dois outros profissionais da área da saúde, o cirurgião-barbeiro e o barbeiro. O cirurgião-barbeiro simplesmente acompanhava a prática de um já habilitado e, depois de aprovado em exame, recebia a carta de cirurgião-barbeiro, com direitos semelhantes aos dos cirurgiões. O barbeiro, o último na hierarquia de valores das artes médicas, não tinha qualquer aprendizado formal. Geralmente, aqueles habilidosos na arte de tosquiar e barbear passavam também a fazer sangrias, aplicar ventosas e sanguessugas e realizar clisteres.6

Em decorrência da escassez de médicos no Brasil do século XVIII, os limites entre o exercício dos médicos e dos cirurgiões eram tênues, exercendo os últimos, na prática, todos os procedimentos terapêuticos, mesmo aqueles que eram reservados apenas aos médicos. Formalmente, a estes últimos cabia o tratamento das chamadas doenças internas, enquanto aos cirurgiões cabia o exercício de funções mais simples como as sangrias, o tratamento de feridas, a extração de corpos estranhos, a aplicação de ventosas e sanguessugas e cirurgias em geral; ou seja, uma série de procedimentos dependentes da habilidade manual. O ofício de barbeiro no Brasil era também exercido pelos negros, como mostram as gravuras de Debret.

A colónia não apresentava grandes atrativos para os renomados doutores formados em Coimbra, mas era para os cirurgiões uma possibilidade de ascensão social e económica, além de ampliar os limites de suas atividades numa região carente de médicos. Prova dessa ascensão social é o fato de que a totalidade dos manuais de Medicina escritos no período colonial é de autoria de cirurgiões e não de médicos.

Nas vilas fundadas no Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII, como em todos os domínios portugueses, a primeira casa de saúde fundada era uma santa casa, seguindo o modelo da Santa Casa de Lisboa. Nos centros de extração de ouro e diamantes da Capitania de Minas Gerais, em decorrência do extraordinário número de escravos e militares para extrair e proteger a riqueza, ocorreu de primeiro ser construído hospital para militares em Vila Rica e na Vila do Príncipe e hospital para escravos no Tijuco.

A população do Tijuco, como no restante da capitania, era composta de grande número de escravos, seguida de homens livres e pobres, geralmente pardos, e finalmente uma pequena classe dominante branca. Em 1738, existia na comarca do Serro do Frio 9.681 habitantes, sendo 1.744 brancos, 1.744 pardos e 7.937 negros. Em 1772 a população do Tijuco era de 4.600 habitantes, sendo 3.610 negros. Em decorrência das condições de trabalho esses escravos padeciam de várias doenças e sofriam frequentes acidentes nas minas.7 Como no período dos contratos os escravos trabalhavam de forma concentrada para um só senhor (o contratador de diamantes, que os alugava de seus donos), surgiu a necessidade de um centro de saúde para preservar a força da mão-de-obra do plantel usado na mineração.

No arraial do Tijuco, quando os contratos foram estabelecidos, foi fundado o Hospital do Contrato Diamantino ou Hospital do Real Contrato dos Diamantes para dar assistência aos escravos da extração de diamante. Sua denominação devia-se ao fato de, na época da extração por meio de contratos, os gastos com o hospital e o pagamento do médico serem de responsabilidade do contratador. Em 1771, como a extração dos diamantes também se tornou privativa da Coroa portuguesa, esses custos passaram a ser arcados pela Real Intendência dos Diamantes. Segundo documentos, vários escravos de Chica da Silva (ela foi proprietária de pelo menos 104 cativos) morreram após terem sido internados no Hospital do Contrato Diamantino. Presume-se que o hospital contava também com um capelão, pois em alguns documentos constava que o escravo "morreu confessado e ungido no hospital".8,9

Não se sabe a data de abertura desse hospital nem o nome de todos os profissionais que nele trabalharam. É de conhecimento o nome de um médico (José Vieira Couto) e de dois cirurgiões (José Ferreira Gomes e José Antônio Mendes), pelo fato de os cirurgiões estarem relacionados aos dois mais importantes livros médicos escritos na capitania durante o século XVIII e o médico ser notório intelectual e escritor.

A primeira notícia que se tem desse hospital é do final da década de 1740, quando para o distrito diamantino se dirigiu o cirurgião José Gomes Ferreira. Seu tio, o cirurgião Luís Gomes Ferreira, chegou ao Brasil em 1708 para a extração de ouro. Mas porque "não chegam médicos, nem ainda cirurgiões que professem a cirurgia, por cuja causa padecem os povos grandes necessidades"10 levou-o a continuar seu ofício, mesclando a arte da Medicina com a exploração aurífera. Fez sua formação no Hospital de Todos os Santos, em Lisboa. Foi cirurgião em várias expedições para a Índia, instalando-se em Minas Gerais, onde permaneceu de 1710 a 1731.3,10 Em 1735 publicou, em Lisboa, o "Erário Mineral", onde relata sua experiência médica. Esse é o quinto livro médico escrito no Brasil e, até o final do século XVIII, era o mais importante compêndio médico escrito na colônia.11

Luis Gomes Ferreira tratou de vários homens importantes locais e de seus escravos. Um deles foi o Sargento-Mor João Fernandes de Oliveira, que tinha fazenda e lavras de mineração na Vila do Ribeirão do Carmo (atual Mariana). A amizade estabelecida com o mesmo foi o provável determinante de seu sobrinho, José Gomes Ferreira, cirurgião formado no Hospital Real de São José de Lisboa, exercer o ofício de cirurgião no Hospital do Contrato Diamantino, a partir do final da década de 1740, quando o Sargento-Mor João Fernandes de Oliveira tornou-se o primeiro contratador dos diamantes (1739-1747 e 1753-1770). José Gomes Ferreira teve longa relação com sua escrava, Maria Gomes, amiga e comadre de Chica da Silva, que lhe deu quatro filhos. Era padrinho de batismo de Simão Pires Sardinha, filho de Chica da Silva e de seu proprietário, o médico Manuel Pires Sardinha. Mais uma demonstração de tal amizade é esse médico e sua antiga escrava Chica da Silva serem padrinhos de batismo de uma das filhas de Maria Gomes e José Gomes Ferreira. Outra filha desse casal teve como padrinho o Desembargador João Fernandes Oliveira.3,8

Outro cirurgião do Hospital do Contrato Diamantino foi José Antônio Mendes, originário de São Vicente do Chão, no Minho. Formou-se no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, onde obteve a carta de cirurgião em 1739. Atuou, como relata no prefácio de seu livro, por mais de 30 anos como médico do Hospital do Contrato Diamantino e no Hospital dos Dragões da Guarnição de Minas Gerais, localizados, respectivamente, no Tijuco e na Vila do Príncipe. Apresentava-se como "cirurgião e anatômico aprovado e seu comissário geral em toda a América". Publicou, em 1770, o "Governo de Mineiros", guia prático destinado aos pobres sem recursos para contratar os serviços dos cirurgiões e, sobretudo, aos senhores de escravos12. O termo "governo" do título significa uso, como na expressão: "para seu governo, informo [...]". Sua prática médica era principalmente com os escravos e seu livro tornou-se a principal fonte para se conhecerem os hábitos de vida, as condições de trabalho e as doenças dos escravos durante o século XVIII. Descreve, em 15 capítulos, as causas, os sintomas e os métodos curativos das doenças mais frequentes na comarca do Serro do Frio, especialmente entre os escravos.3,9

Era contratador na época o Desembargador João Fernandes Oliveira (1720-1779), que assumiu o contrato (1753-1770) após a mudança de seu pai e homônimo para Lisboa. Era o homem mais rico do reino e governava como soberano ao lado de sua concubina Francisca da Silva Oliveira (conhecida como Chica da Silva; por volta de 1732-1796), que ele comprou do médico Manuel Pires Sardinha e com a qual teve 13 filhos. Seu contrato coincidiu com o período áureo da história do Tijuco, quando ocorreu representativo aumento da população, expandiu-se o comércio e construíram-se grandes edifícios e os principais templos. José Antônio Mendes relata em seu livro que curou vários doentes de cancro ulcerado "no Hospital do Contrato Diamantino e nos pobres que pelo amor de Deus mandava curar o Desembargador João Fernandes de Oliveira, que alguns sararam com grande admiração do mesmo, que os via quando os mandava aceitar, e quando eles lhe iam render as graças já sãos." Retornou a Portugal e, em recompensa por seus serviços relevantes ao estado, foi promovido a comissário do cirurgião-mor do reino em toda a América.3,9

José Vieira Couto (1752-1827), médico, mineralogista e escritor, formado na Universidade de Coimbra, trabalhou no Hospital do Contrato Diamantino. Em 1798, ele fora encarregado pela Rainha D. Maria I de fazer observações e exames mineralógicos e metalúrgicos em toda a comarca do Serro Frio. O intendente João Inácio do Amaral Silveira impediu-o de realizar o trabalho e o governador, em carta à Corte, "afigurava o Dr. Couto como uma vítima de seu despotismo, que, por ódio particular, fora demitido do emprego, que exercia de médico do hospital da administração." Uma ordem do Príncipe Regente, D. João, de 1799, repreendeu o intendente e determinou que tudo deveria ser feito para permitir o trabalho do Dr. José Vieira Couto. O intendente acabou sendo suspenso do cargo por ordem real. O hospital da administração refere-se ao Hospital do Contrato Diamantino.1

Outro conhecido médico e minerador do Tijuco, Manoel Pires Sardinha, pode ter possivelmente trabalhado no Hospital do Contrato Diamantino, embora nenhum documento comprove tal possibilidade. Foi o primeiro senhor e pai do primeiro filho de Chica da Silva, escrava que depois vendeu ao Desembargador João Fernandes de Oliveira. Era amigo do desembargador e foi padrinho de uma de suas filhas com a referida escrava.3

Não sabemos a data de fechamento do Hospital do Contrato Diamantino. Registro no livro de razão da Administração Geral de Diamantina de 1772 (folha 29), que se acha no Museu do Ouro em Sabará, afirma ainda o seu funcionamento no Tijuco2. E como a carta enviada pelo Governador Bernardo José de Lorena à Corte, em 1779, informa que João Inácio do Amaral Silveira, intendente de 1795 a 1801, demitira José Vieira Couto do hospital, conclui-se que durante a administração do referido intendente aquele hospital ainda existia.

 

SANTA CASA DE DIAMANTINA

Origem das Santas Casas

A Santa Casa de Misericórdia de Lisboa foi criada, em 15 de agosto de 1498, pela Rainha D. Leonor de Lancastre (1458-1525), viúva de D. João II (1455-1495) e que regia o trono de seu irmão, D. Manuel (1469-1521), tendo por finalidade ajudar a resolver os graves problemas de assistência e saúde existentes em Lisboa. Assim, no ano do apogeu do império português, quando Vasco da Gama (1469-1524) realizava a epopeia do descobrimento do caminho para a Índia, cantada nos Lusíadas de Camões (1524-1580), não menos relevante para a humanidade foi o ato discreto da benemérita regente, na Capela de Nossa Senhora da Piedade, instituindo a Irmandade da Misericórdia. Era regida por um "Compromisso", confirmado pelo Papa Alexandre VI em 1499, estabelecendo 14 obras de misericórdia a serem praticadas pelos irmãos, o qual serviu de modelo a centenas de outras misericórdias, posteriormente criadas em Portugal e em todo o império português.13,14

Eram atribuições das misericórdias conceder: casa e tratamento aos enfermos desvalidos; acolhimento e educação aos órfãos; oração e sepultura aos que morriam na indigência; amparo à viúvas pobres; guarida e ajuda aos peregrinos necessitados; sustento nas cadeias, defesa nos tribunais e súplicas aos pés do trono aos presos miseráveis; conforto religioso no oratório e no trânsito para o patíbulo. Para muitas misericórdias, o encargo de administrar e cuidar dos hospitais coincidiu com seu alvará de fundação.

A Santa Casa de Misericórdia de Lisboa cresceu rapidamente e, em 1542, da pequena capela do claustro da Sé de Lisboa, onde estava sediada, foi transferida para instalações na zona ribeirinha. O terremoto de 1755 e o fogo que se seguiu destruíram as suas instalações, obrigando à dispersão dos serviços. Em 1768, o Rei D. José (1714-1777) fez doação à Santa Casa do edifício da Casa Professa de S. Roque, que até então pertencera à Companhia de Jesus, onde se encontra até hoje sediada. Ao longo dos seus cinco séculos de existência, reuniu vasto patrimônio artístico-cultural, do qual se destaca a Igreja e o Museu de S. Roque e o Arquivo-Histórico.13,14

D. Manuel e seus sucessores incentivaram a criação de outras misericórdias em Portugal e em todas suas colônias. Assim, foram criadas misericórdias na Índia (1542), no Brasil (1543), em Macau (1569), em Angola (1576) e no Japão (1583). Por ocasião da morte de D. Leonor, em 1525, havia cerca de 60 misericórdias em atividade. As notáveis Irmandades de Misericórdia estão entre as mais difundidas e duradouras instituições humanitárias.14

 

SANTAS CASAS NO BRASIL

Em 1532, a expedição colonizadora de Martim Afonso de Souza (c. 1490/1500-1571) trouxe o fidalgo Braz Cubas (1507-1592), neto de Nuno Rodrigues, fundador e mantenedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Braz Cubas, nomeado feitor e fiscal, fundou em 1543, no povoado do porto de São Vicente, posteriormente Vila de Santos, capital da Capitania de São Vicente, a Santa Casa da Misericórdia de Santos, o mais antigo hospital brasileiro, denominando-o Hospital de Todos os Santos, inspirando-se no nome do grande hospital de Lisboa. O povoado original passou a ser chamado Povoado do Porto de Santos, por aquisição do nome do hospital. Entre 1545 e 1547, o Capitão-Mor Braz Cubas elevou o povoado à categoria de vila, com o nome de Vila do Porto de Santos. O primeiro prédio do hospital foi construído no sopé do outeiro de Santa Catarina, em local onde hoje se situa a Rua Visconde do Rio Branco, no centro de Santos. Um segundo prédio foi concluído em 1665, um terceiro em 1836 e o conjunto atual (quarto prédio), único remanescente, foi inaugurado pelo Presidente Getúlio Vargas, em 1945.15,16

Depois da Santa Casa de Santos, logo surgiram a da Bahia (1552) e a do Espírito Santo (entre 1545 e 1551), a de Olinda (1560), a de São Paulo (1560) e a do Rio de Janeiro (1582). Em seguida, centenas de outras foram construídas, servindo a todas as regiões e sendo responsáveis pelo atendimento da maioria da população carente do país.

A primeira Santa Casa de Minas Gerais foi a de Ouro Preto (1735) e as duas seguintes foram de São João del Rei (1783) e Diamantina (1790), ambas fundadas pelo Ermitão Manoel de Jesus Fortes.

Atualmente existem no Brasil quase 300 santas casas.

 

SANTA CASA DE CARIDADE DE DIAMANTINA

Ata de fundação (Figura 1)

 

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Figura 1 - Ata de fundação da Santa Casa de Caridade, do próprio punho do ermitão Manoel de Jesus Fortes.

 

"1790

Neste anno, a 25 de Mayo, dia do Divino Espírito Santo, foi erecto este Hospital pelo devoto ermitão Manoel de Jesus Fortes; sendo governador destas Minas o Exmo Sr. Visconde de Barbacena e Intendente dos Diamantes neste Tijuco o S. Desor. Luiz Beltrão e Fiscal o S. Dr. João Inácio do Amaral Silveira.

Foi erecto em duas casas que se comprarão ao Capam. Manoel Lopes de Souza, por três mil e quinhentos cruzados, os quaes pagarão em igual parte o R. Dr. Carlos da Silva de Oliveira e o Capam. Manoel Roiz de Carvalho e logo gratuitamente se as derão ao sobredito Manoel de Jesus Fortes para o fundar, que nomeou para síndico ao S. M. Manoel Lopes Duarte que com boa vontade faz as vezes de bom procurador. Manoel de Jesus Fortes".

Esta é a ata de fundação (que parece ser redigida e assinada de próprio punho por Manoel de Jesus Fortes), que ainda se encontra nos arquivos da Santa Casa de Caridade de Diamantina. Informa que, em 1790, o Padre Carlos da Silva e Oliveira (cujo sobrenome Rolim é omitido no documento) juntamente com o Capitão Manoel Riz de Carvalho, adquiriram duas casas que foram depois doadas ao ermitão Manoel Jesus Fortes, para que ele pudesse nelas instalar um hospital. É a única Santa Casa de Caridade que se conhece, pois as demais são todas denominadas de Santa Casa de Misericórdia.

Logo depois, foi eleita a primeira diretoria, para reger os destinos da casa, ficando assim constituída:

https://rmmg.org/content/imagebank/imagens/quadrado.jpg presidente: Rafael da Rocha Neves Quintela;

https://rmmg.org/content/imagebank/imagens/quadrado.jpg escrivão: José Joaquim Perpétuo;

https://rmmg.org/content/imagebank/imagens/quadrado.jpg tesoureiro: Manuel Lopes Duarte.

A Santa Casa foi fundada no agitado ambiente político de efervescência das ideias iluministas no final do século XVIII, apenas um ano após a Inconfidência Mineira (1789), quando ocorria o embate entre o desejo de emancipação e mais liberdade dos brasileiros, oposto à exploração da colónia por Portugal. Também nesse período eram evidentes os sinais de decadência da economia do ouro em Minas Gerais e depreciação do preço dos diamantes do Arraial do Tijuco. As razões que, diretamente, determinaram a primeira crise na mineração de diamantes foram o esgotamento das lavras antigas somado à proibição da abertura de novas lavras no distrito diamantino, a desorganização ocorrida no mercado consumidor europeu, a descoberta de novas lavras em outras regiões de Minas, ou seja, Abaeté, Idaiá, Itacambira, Rio Pardo e Grão Mogol, além da crise terminal da Real Extração.17

O médico José Vieira Couto descreve, na época, um distrito diamantino decadente, em ruínas e por onde alastrava a pobreza e a miséria, com falta de trabalho para escravos e homens livres. O quadro era agravado pelas graves exigências do Regimento Diamantino.18 Essas condições exigiam um hospital para cuidar da grande maioria da população pobre e escrava.

As autoridades que constam na ata de fundação estão inseridas nesse agitado clima político da Capitania de Minas Gerais, como se mostra a seguir.

O Visconde de Barbacena (1754-1830), D. Luís António Furtado de Mendonça, foi governador de Minas Gerais (1788 - 1797) no período da Inconfidência Mineira, sendo nomeado pelo Marquês de Pombal com a finalidade de aumentar o ouro enviado para Portugal. Foi o responsável pela repressão ao movimento libertário.1

Luiz Beltrão de Gouveia, Intendente dos Diamantes (1789 - 1795), foi magistrado humano e imparcial, mas célebre pela sua vida devassa e dissoluta. Procurou aplicar de forma branda o rígido e odiado Regimento Diamantino para amenizar a situação da população.1

João Inácio do Amaral Silveira, fiscal da administração anterior e promovido posteriormente a intendente (1795-1801), foi o mais odiado dos intendentes, por querer executar à risca o Regimento Diamantino para reprimir os extravios de diamantes, o que o indispós com a classe dominante que usufruía das atividades ilegais. Sua administração foi marcada por contínua revolta popular, dirigida pelo médico José Vieira Couto, um dos maiores propugnadores das novas ideias do Iluminismo francês. Decretou o despejo do Tijuco de várias pessoas, inclusive o Padre Carlos José da Silva e Oliveira Rolim, um dos fundadores da Santa Casa, e seus irmãos Alberto e Padre José da Silva e Oliveira Rolim, todos suspeitos de tráfico de diamantes. José Joaquim Vieira Couto, irmão do Dr. José Vieira Couto, foi enviado à Corte pelo povo do Tijuco, em 1799, para pedir a demissão do intendente, mas terminou preso pela Inquisição de Lisboa1. A saída do ermitão Manoel de Jesus Fortes do distrito diamantino, poucos anos após a fundação do hospital, está relacionada a esses fatos, sendo também vítima do intendente.

Carlos da Silva e Oliveira Rolim era padre e diplomado em Coimbra, filho do Sargento-Mor José da Silva e Oliveira Rolim e irmão do padre José da Silva de Oliveira Rolim (1747-1835). O Sargento-Mor José da Silva e Oliveira Rolim, em cuja casa um ano antes ocorriam as reuniões secretas dos Inconfidentes, fazia parte da Junta Administrativa na Intendência dos Diamantes como o principal caixa-administrador. O Padre Rolim foi dos mais importantes personagens da Inconfidência Mineira. Assim, enquanto o Padre Carlos da Silva e Oliveira Rolim participava da fundação da Santa Casa, seu irmão, Padre José da Silva e Oliveira Rolim, encontrava-se preso na fortaleza da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, e já tinha sido submetido a 13 de 15 interrogatórios. Foi condenado e cumpriu a pena em Lisboa, de 1792 a 1803, quando retornou ao Arraial do Tijuco.19,20

O relatório da Santa Casa de Caridade de Diamantina de 1870 informa que, assim que o hospital foi fundado, começou a receber doentes e que o ermitão Manuel de Jesus Fortes, incansável, trabalhava carregando pedras e outros materiais para as obras destinadas à ampliação da casa e ainda esmolando no arraial e nas circunvizinhanças. Afirma ainda o relatório que o intendente João Inácio do Amaral Silveira perseguiu o ermitão pelas suas excursões frequentes e o teria despejado da demarcação como suspeito de contrabando de diamantes.

Manoel de Jesus Fortes (Figura 2) foi personagem singular do século XVIII. Suas origens são ignoradas e ocultas em lendas. Parece ter sido jovem de posses, avesso ao trabalho e dedicado aos prazeres da vida. Após uma experiência mística, mudou-se radicalmente, tornando-se eremita e passou a esmolar donativos para construir um hospital para os pobres, em São João del Rei. Em 1783 concluiu as primitivas instalações da Casa de Caridade, com duas enfermarias num total de 30 leitos, anexas a uma capela sob a invocação de São João de Deus. Em 1817 a Casa da Caridade passou à designação de Santa Casa da Misericórdia, nome que conserva até os dias presentes. Nela encontra-se a pintura a óleo, datada de 1860, executada pelo pintor são-joanense Venâncio José do Espírito Santo, com a legenda Manoel de Jesus Fortes. Em data não precisa, retirou-se da Vila de São João del Rei e foi fundar uma capela em Ouro Preto e outra Casa da Caridade no Arraial do Tijuco (segundo Saint-Hilaire, ele se encontrava no Tijuco em 1787). 21

 

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Figura 2 - Ermitão Manoel de Jesus Fortes.

 

Há duas citações sobre Manuel de Jesus Fortes no Inventário dos Manuscritos Avulsos Relativos a Minas Gerais existentes no Arquivo Histórico Ultramarino - Lisboa. No primeiro, anterior a 1785, consta: "Requerimento de Manuel de Jesus Fortes, morador na Vila de São João del Rei, solicitando à D. Maria I a mercê de o autorizar a erigir Casa de Misericórdia e estabelecer irmandade com o compromisso, estatutos e demais privilégios na referida vila". No segundo, de 1785, consta: "Aviso de Martinho de Melo e Castro, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, para o Conde da Cunha, Antônio Álvares da Cunha, presidente do Conselho Ultramarino, ordenando se consultasse o pedido de Manuel de Jesus Fortes". 22

Assim, dois dos principais fundadores da Santa Casa (Padre Carlos da Silva e Oliveira Rolim e ermitão Manoel de Jesus Fortes) foram expulsos do distrito diamantino logo após a fundação e o Dr. José Vieira Couto, provável médico da instituição, foi duramente perseguido pelo intendente. As dificuldades financeiras, sempre presentes na fundação das santas casas, foram agravadas no Tijuco pelo conturbado quadro político do final do século XVIII.

O hospital era mantido por esmolas e donativos e pequena receita proveniente do tratamento de escravos e soldados da Extração Diamantina. Como informa o relatório de 1870, em consequência às dificuldades financeiras e políticas, foi fechado de 1810 a 1838, o que está de acordo com o relato de Saint-Hilaire, quando passou pelo Tijuco em 1817.23

Depois da ata de fundação, a primeira referência que se tem da Santa Casa de Diamantina é do cientista e explorador francês Saint-Hilaire (1778-1853). Ele chegou ao Arraial do Tijuco em 29 de setembro de 1817 e, segundo sua própria informação, o arraial tinha cerca de 6.000 pessoas e 800 casas. Foi hóspede do intendente dos diamantes Manuel Ferreira da Câmara Bitencourt e Sá (1762-835), o primeiro intendente brasileiro, cargo que exerceu de 1807 a 1823, quando foi tomar assento na Assembleia Constituinte. Como Saint-Hilaire, era também homem de ciências e humanista, tendo sido condiscípulo de José Bonifácio de Andrada e Silva na Universidade de Coimbra e em outras universidades europeias.23

Saint-Hilaire relata: "Aí por 1787 um eremita, tendo excitado a caridade dos fiéis, reuniu esmolas muito abundantes para fundar um hospital. Ele adquiriu uma casa em um local muito arejado e dotou o estabelecimento dos objetos necessários. O eremita esmolava; ele estimulava o orgulho dos habitantes e o hospital durou enquanto seu fundador permaneceu no Tijuco. Mas esse útil cidadão, tendo-se aborrecido com certos atos das autoridades locais, retirou-se; as esmolas tornaram-se menos abundantes e o hospital foi abandonado".23

O eremita a que se refere é Manoel de Jesus Fortes e, pela data referida (1787), evidencia-se que ele despendera longo tempo na arrecadação dos fundos necessários, pois a Santa Casa só foi fundada em 1790. Os aborrecimentos do eremita com as autoridades parecem estar ligados ao já relatado ambiente de terrorismo implantado pelo intendente João Inácio do Amaral, que resultou no despejo de várias pessoas do distrito diamantino.

O sábio francês traça o quadro epidemiológico da época, informando os principais problemas de saúde: "O calor moderado que faz em Tijuco torna raras a lepra e a elefantíase, enquanto que a inconstância da temperatura multiplica as gripes e bronquites. Outras afecções mórbidas são comuns no distrito dos diamantes; mas não é ao clima que devemos atribuí-las; elas são oriundas dos vícios e costumes dos moradores da região. Assim, em Tijuco, como em todas as partes da Província, a hidropisia, frequente entre as pessoas de cor, é resultado da sua paixão pela aguardente de cana. O uso prematuro dos prazeres do amor e uma vida muito sedentária são as principais causas das moléstias nervosas que, muito frequentemente, atingem os homens livres. Enfim, o grande número de doenças venéreas que ocorrem aqui, como no resto do Brasil, explica-se pela libertinagem a que todas as classes da sociedade se entregam exageradamente".23

Saint-Hilaire foi vítima de queda de cavalo a duas léguas e meia do Tijuco e a uma de Rio Manso (hoje Couto de Magalhães de Minas), sofrendo traumatismo cranioencefálico com perda de consciência e hemorragia na região frontal e órbita esquerda. Foi levado ao Rio Manso, onde foi submetido à sangria e, dois dias após, foi conduzido ao Tijuco em rede carregada por escravos. Foi tratado pelo "Sr. Barros, o melhor cirurgião do Tijuco". Acrescenta, ainda: "Conheci também, durante o tempo em que estive doente, os dois médicos que clinicavam em Tijuco. Um deles, o Dr. Couto, tinha percorrido toda a Europa e era dotado de vasta cultura. O outro, o Sr. Teixeira, sem ter viajado tanto, estudara muito e adquirira grande experiência". Saint-Hilaire deixou o Tijuco em 30 de outubro de 1817.23

Desse relato presume-se que no Arraial do Tijuco da época existia mais de um cirurgião e dois médicos. O Dr. Couto a que se refere Saint-Hilaire é José Vieira Couto (1752-1827), médico e naturalista brasileiro, formado pela Universidade de Coimbra em 1777, da qual foi lente e onde teve por colega José de Bonifácio, seu companheiro nas viagens de estudo e de ideias de liberdade e independência. Segundo Sílvio Romero, foi "dos sábios de seu tempo, um dos que mais escreveram e em melhor estilo", tendo publicado várias obras, entre as quais a "Memória sobre as minas da Capitania de Minas Gerais, seu território, clima e produções metálicas". Nessa memória relata seu trabalho de investigação dos recursos minerais de Minas, tarefa designada pela Rainha D. Maria I.18,24

Essa Memória e as obras de sua biblioteca evidenciam sua intimidade com as ideias iluministas. Possuía 228 obras em 601 volumes, o que era extraordinário nos sertões das Minas setecentistas. A maior biblioteca em Minas pertencia ao cónego Luiz Vieira da Silva, um dos principais ativistas da Inconfidência Mineira, que contava com 276 obras em 563 volumes. Algumas das obras de José Vieira Couto lhe foram enviadas de Portugal por Simão Pires Sardinha, primeiro filho de Chica da Silva e sábio naturalista que se envolveu na Inconfidência Mineira.8,25

José Vieira Couto foi médico do Hospital do Contrato Diamantino, sendo provável que tenha trabalhado na Santa Casa. Nos documentos da fase inicial da Santa Casa não consta o nome dos médicos, o que torna impossível certificar-se de que nela trabalhou o referido médico.

As mudanças ocorridas no país no início do século XIX, com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808, e a independência, em 1822, possibilitaram o fim do odiado e repressor Regimento Diamantino (1821), o desmembramento do arraial da cidade do Serro e sua elevação a vila (1831) e de vila à condição de cidade em 1838, com o nome de Diamantina. A cidade tornou-se progressivamente o centro económico e cultural da região do Vale do Jequitinhonha.

Como exposto, o hospital permaneceu fechado de 1810 a 1838. Essas mudanças referidas tornavam imperiosa a necessidade de um hospital na recém-emancipada vila. Em 1832 foi criada a irmandade de Santa Isabel e estabelecidos seus estatutos, com a finalidade de arrecadar fundos para a reabertura do hospital. Essa irmandade era formada por um grupo de pessoas que contribuía periodicamente com donativos previamente estipulados em favor da Santa Casa e nas decisões da mesa administrativa tinham direito à voz e voto. Com os fundos levantados o hospital foi reaberto em 4 de julho de 1838, justamente no ano de elevação da vila à condição de cidade.

A manutenção do hospital, a partir da reabertura, não pode mais contar exclusivamente com o espírito de caridade do povo. Ocorreram aquisição de apólices da dívida pública, a construção de um teatro, a concessão de loterias provinciais e pequena subvenção do cofre provincial.

Foi construído no Largo do Rosário o Teatro Santa Isabel, inaugurado em 1838, justamente no ano de reabertura da Santa Casa. Foi centro de espetáculos, reuniões sociais e políticas durante o século XIX. A partir de 1907 passou a funcionar também como cinema. No entanto, com a crise econômica do início do século XX, a manutenção do teatro tornou-se dispendiosa para a Santa Casa. Por esse motivo, foi vendido ao Estado, sendo fechado em 1912 e demolido para dar lugar à construção da cadeia pública. Em contrapartida, o poder público municipal doou à Santa Casa um lote na rua Direita, onde outro teatro foi erguido com os recursos financeiros recebidos do Estado e o acervo que pôde ser aproveitado da demolição. O novo teatro foi inaugurado em 1914, sendo absorvido pelo Cine Trianon, ao final da década de 1920. Quanto à antiga cadeia, foi recentemente recuperada e inaugurada como novo Teatro Santa Isabel.

Os relatórios de receitas e despesas da Santa Casa registram que os médicos, até a década de 1890, faziam trabalho voluntário, enquanto as irmãs de caridade e o capelão, encarregado de celebrar missas todos os dias e administrar os últimos sacramentos aos enfermos, eram mantidos pela administração.

A abertura do Brasil aos estrangeiros após a independência e o início da industrialização fez com que muitos europeus se instalassem no país. Dois ingleses, John Dayrell e John Rose, que se instalaram em Diamantina tiveram estreita relação com a Santa Casa.

John Dayrell (1808-1884) nasceu e viveu em Barbados até 1820, quando a família retornou à Inglaterra. Segundo o testemunho do explorador inglês Richard Burton (que foi seu hóspede em 1867), ele se formou em Medicina em Londres, com 22 anos, casou-se por lá e veio para o Brasil em 1830.26 Passou a trabalhar na Santa Casa em 1838, justamente no ano de reabertura desta. Morreu em 1884 e, por sua condição de protestante, não pôde ser enterrado no interior das igrejas, como era o costume na época, tendo sido sepultado em frente à Santa Casa de Caridade, como relata sua neta Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant; 1880-1970), no livro "Minha Vida de Menina" (transformado no filme Vida de Menina, da diretora Helena Solberg, em 2004)27:

"[...] Meu avô não foi enterrado na igreja porque era protestante; foi na porta da Casa de Caridade (Santa Casa) e até hoje se fala nisso em Diamantina. Quando ele estava muito mal, os padres, as irmãs de caridade e até o Senhor Bispo, que gostavam muito dele, pelejaram para ele se batizar e confessar, para poder ser enterrado no sagrado. Ele respondia: " Toda terra que Deus fez é sagrada. O vigário não quis deixar dobrar os sinos, mas os homens principais de Diamantina foram às igrejas e fizeram dobrar os sinos da cidade o dia inteiro. Ele era muito caridoso e estimado. Quando o doente não podia, ele mandava os remédios, a galinha e ainda dinheiro. A cidade inteira acompanhou o enterro. Quando ele morreu eu era muito pequena e até hoje se fala em Diamantina na caridade do Doutor Inglês, como todos o chamavam. Um homem assim pode estar no inferno? [...]"

Na rua, em frente à porta da Santa Casa, encontra-se o texto identificando a lápide de sua tumba: "Aqui jaz o médico desta Santa Casa John Dayrell, o Doutor Inglês. Barbados, Reino Unido, 1808 - Diamantina Brasil, 1884".

Na segunda metade do século XIX, com a cidade de Diamantina elevada à condição de centro econômico, cultural e religioso (o bispado foi criado em 1864) do Vale do Jequitinhonha, a Santa Casa transformou-se no centro médico da região, com expressivo aumento da demanda e necessidade de expansão de suas limitadas instalações. Diversas reformas e construções foram realizadas entre os anos de 1866 e 1873, que corresponde ao período de grande acumulação de riqueza provocada pelo boom de extração de diamantes. À frente de tal empreitada estiveram o provedor Dr. Manoel Alves Ferreira Prado e o tesoureiro Comendador Herculano Carlos de Magalhães e Castro (diretoria de 1864 a 1870). Em 1º de janeiro de 1867 ocorreu a inauguração da capela Santa Isabel pelo Bispo D. João Antônio dos Santos e posteriormente foram concluídas as obras do prédio que persiste até hoje (Figuras 3 e 4).

 

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Figura 3 - Santa Casa de Caridade de Diamantina.

 

 

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Figura 4 - Capela Santa Isabel da Santa Casa de Caridade de Diamantina.

 

A reforma da Santa Casa está ligada ao nome do inglês John Rose (1805-1888), arquiteto e construtor. Trabalhou nas minas de ouro da Saint John D'El Rey Mining Company, hoje Mineração de Morro Velho, de Nova Lima. Mais tarde mudou-se para Diamantina, sendo o responsável pelas grandes obras de arquitetura da cidade, entre elas a construção do novo prédio da Santa Casa com a capela anexa, o Passadiço da Casa da Glória, a fábrica têxtil em Biribiri, o seminário velho e a Basílica do Sagrado Coração de Jesus. Participou também ativamente da implantação da primeira usina hidroelétrica do Brasil, instalada no Ribeirão do Inferno, afluente do Rio Jequitinhonha, em 1883.28

Dom João António dos Santos (1818-1905), primeiro bispo de Diamantina (1864 - 1905), além de seu relevante papel como prelado, educador, líder abolicionista e responsável pela implantação da indústria têxtil local, foi também grande sustentáculo da Santa Casa, como mostram suas doações anuais nos livros de receitas da tesouraria e sua distinção registrada nos relatórios como "Protetor da Santa Casa". Era irmão de António Felício dos Santos (diretor da fábrica de Biribiri) e Joaquim Felício dos Santos (1824-1895; político, advogado, jornalista, professor, escritor, jurisconsulto), seus colaboradores na implantação da indústria têxtil em Diamantina.

Outro membro da família também de nome António Felício dos Santos (1843-1931), diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1863, veio exercer Medicina na Santa Casa de Diamantina. Posteriormente, ingressou na carreira política, elegendo-se para a Câmara dos Deputados. Ao longo da década de 80 atua no movimento pela proclamação da República. Participou do primeiro governo republicano, presidindo o Banco do Brasil a convite de Rui Barbosa, então Ministro da Fazenda.

O mais antigo relatório da administração da Santa Casa existente refere-se aos anos de 1870 a 1871 e 1871 a 1872, todos assinados pelo provedor Sr. Tenente Coronel José Ferreira de Andrade Brant (posteriormente comendador), o mesmo que viria a construir o hospício de alienados e que foi provedor de 1870 a 1897. Por meio deles é possível seguir as tentativas de modernização do hospital e a construção do Hospício da Diamantina, o primeiro hospital psiquiátrico de Minas Gerais.

No século XX, em consequência à falta de incentivo público comum às várias instituições filantrópicas do país e à decadência económica local (diminuição progressiva da extração de diamante e crise da indústria têxtil local), a Santa Casa de Caridade de Diamantina funcionou com dificuldade, como suas congêneres no país, mas cumpriu seu papel como centro regional de saúde.

Na segunda metade do século XX, três médicos representaram os pilares da Santa Casa, além de terem exercido importante papel na vida social e política de Diamantina: Lomelino Ramos Couto, João Antunes de Oliveira e José Aristeu de Andrade.

Lomelino Ramos Couto (3/3/1895 - 12/7/1990) formou-se em Medicina em 1918 na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Exerceu a Medicina em Bocaiuva até 1926, quando retornou à Diamantina, sua terra natal, onde se dedicou integralmente à Santa Casa (onde seu pai, Cosme Alves do Couto, foi provedor por mais de 50 anos), prestando assistência à população pobre do Vale do Jequitinhonha. Foi prefeito de Diamantina no período de 1951 a 1954, tendo se candidatado a esse cargo para atender a apelo pessoal do Governador Juscelino Kubitschek. Foi cofundador e professor do Ginásio Diamantina, onde lecionou por mais de 30 anos a cátedra de Ciências Naturais. Exerceu a Medicina até os 88 anos de idade. Dele ficou a imagem do clínico competente, do médico bondoso e do cidadão exemplar.

João Antunes de Oliveira (20/10/1918 - 28/12/2002), nascido em Turmalina, estudou o curso básico em Diamantina e graduou-se pela Faculdade de Medicina da UFMG em 1946. Instalou-se em Diamantina, onde exerceu as atividades de clínico e cirurgião na Santa Casa, sendo seu provedor por vários anos. Os avanços obtidos na infraestrutura desse hospital na segunda metade do século passado foram resultados de seu trabalho e relações políticas. Foi professor por mais de três décadas e diretor da Faculdade de Odontologia de Diamantina, embrião da atual Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Como prefeito por três mandatos foi responsável por várias realizações nas áreas de saúde, educação, saneamento, cultura e turismo. Com seu trabalho obstinado, empreendeu ações que deram continuidade à campanha deflagrada em 1993 por Ivo Pereira da Silva (na época presidente da Fundação Cultural e Artística de Diamantina - FUNCARDI), cujo esforço conjunto com o trabalho de vários diamantinenses de reconhecida expressão resultou na concessão, pela UNESCO, em 1999, do título de Patrimônio Cultural da Humanidade para Diamantina. Sua vida foi marcada pelo espírito de servir ao próximo e pela dedicação às causas públicas e sociais. Era figura carismática, respeitada e amada pela população. Sua fama de médico competente, bondoso e de atitudes simples levava toda a população do Vale do Jequitinhonha a procurar a Santa Casa. O atual surto de desenvolvimento de Diamantina, que após a decadência da extração do diamante encontrou sua moderna vocação no turismo e no ensino, é em grande parte obra de João Antunes.29

José Aristeu de Andrade (28/10/1923) formou-se pela UFMG em 1949 e realizou residência médica em Ginecologia e Obstetrícia na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Iniciou sua atividade profissional na Santa Casa de Diamantina em 1951, como clínico, ginecologista e obstetra. Foi por vários anos professor do Colégio Diamantinense e da cadeira de Fisiologia da Faculdade Federal de Odontologia de Diamantina. Em 2001 foi admitido como membro titular da Academia Mineira de Medicina. Há mais de 60 anos exerce a atividade de obstetra e médico de família e presta apaixonada dedicação à Santa Casa, tendo sido por mais de uma vez seu diretor clínico e provedor. Ainda hoje exerce trabalho diário e voluntário naquele nosocômio, sendo por todos respeitado e considerado a consciência da Medicina de Diamantina.

Na última década, a Santa Casa passou por processo de modernização da infraestrutura com implantação de serviços de alta complexidade nas várias especialidades médicas e de um centro de tratamento intensivo. É o hospital de referência do Sistema Único de Saúde para a região do Vale do Jequitinhonha.

 

HOSPÍCIO DA DIAMANTINA

Em Minas Gerais, no século XIX, como no restante do país, os loucos vagavam pelas ruas à mercê da caridade privada, das agressões da população e da ação da polícia no caso dos agressivos. Foi prática na época das santas casas terem um reduzido espaço para a internação desses pacientes. Essas divisões eram chamadas quartos fortes, casas fortes ou, ainda, casinhas de doidos. Eram dispositivos de contenção de furiosos que mais se assemelhavam a prisões e precederam à construção dos hospícios como hospitais de alienados.

Na metade do século XIX, iniciou-se no Brasil a necessidade de adaptar-se aos avanços da Medicina no tratamento dos alienados ocorridos especialmente na França com o surgimento do manicômio como local de cura. A Santa Casa de São João del Rei foi o primeiro hospital geral no Brasil a possuir unidades psiquiátricas30. O primeiro hospício do país, o Hospício Pedro II, foi criado em 1852 como um anexo da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. O primeiro hospício de alienados de Minas Gerais foi o Hospício da Diamantina, cuja pedra fundamental foi colocada em 1888.

Foi no contexto desse discurso de medicalização dos loucos que a mesa administrativa da Santa Casa de Diamantina decidiu erigir um edifício apropriado para hospício de alienados. No relatório do ano compromissório de 1883 a 1884, o provedor José Felício dos Santos, pela primeira vez, faz referência à necessidade de construção do hospício em decorrência do número significativo de alienados admitidos na Santa Casa. Nos relatórios seguintes são reforçadas essa necessidade e a dificuldade de se obterem os recursos para a construção. O estado concede auxílio no início, que depois é paulatinamente reduzido até sua retirada completa.31

Apesar da retirada da ajuda governamental, o Comendador José Ferreira de Andrade Brant, provedor da Santa Casa de 1870 a 1904, decide realizar a construção e assim descreve a decisão: "Convencido da palpitante necessidade de que se ressentia o norte de Minas de um estabelecimento, onde os enfermos da razão encontrassem o tratamento apropriado para o seu estado, como já sabeis, deliberei erigir nesta cidade, e como dependência da Santa Casa, um Hospício de Alienados, em cuja construção tenho persistentemente trabalhado desde 1888 [...]".31

O Hospício da Diamantina foi construído e administrado pela Santa Casa de Caridade de Diamantina e funcionou de 1889 a 1906. O grande batalhador e responsável por sua construção foi o Comendador José Ferreira de Andrade Brant.

Idealizado e realizado no bojo do processo modernizador que ocorreu em Diamantina ao final do século XIX, implicava retirar da rua os alienados e ressaltava o desejo médico de tratar esses doentes mediante os conceitos da ciência da época, importados da França, que transformava o louco em paciente. Nos documentos da época (relatórios da Santa Casa e jornais) nota-se o discurso político de institucionalização da Medicina mental para dar ao louco um lugar social e humano.31

Existe na biblioteca do IPHAN, em Diamantina, documento intitulado "Apontamentos sobre o Hospício de Alienados", que detalha o projeto da construção do hospício feito pelo engenheiro Catão Gomes Jardim. Esse documento evidencia a magnitude do projeto e sua adequação aos conceitos da época relativos ao tratamento das doenças mentais. A edificação, em si própria, seria a representação da caridade, o lema fundamental das santas casas. Para completar a trilogia fé, esperança e caridade, dois canteiros foram inseridos no jardim em frente ao hospício. O canteiro em forma de cruz representa a fé e o canteiro em forma de âncora representa a esperança, duas virtudes teologais.31

O edifício ocupa, então, área de 646 metros, compondo-se de um prédio principal de dois andares, com duas alas laterais contíguas e um pátio ajardinado entre elas. Na frente do edifício um átrio e terrenos arborizados e ajardinados de 728 metros quadrados. Contíguo à parte direita do jardim encontra-se área de 40X60 metros para o pomar. No projeto são especificados os pormenores técnicos para a aeração e claridade solar e farta distribuição de banheiros e latrinas. O pavimento superior compõe-se de antessala, salão, quartos para convalescentes e water closets. As duas alas laterais têm 10 células cada uma, latrinas independentes e corredores para a comunicação com os jardins laterais. Cada célula mede 3 X 2,5 metros e a altura é de 4,5 metros. Cada célula possui latrina. No pavimento superior existem duas alas com 11 células cada uma. No pavimento inferior do corpo do edifício encontram-se a cozinha, o refeitório, despensa e quarto para cozinheiros. No primeiro andar, cinco quartos e latrinas para convalescentes. Segundo o relatório, "o edifício é dotado de perfeito sistema de esgoto" com abundante fornecimento de água para os banheiros, duchas e as quatro bocas de incêndio colocadas nos quatro ângulos do edifício. Em determinado ponto do relatório o engenheiro faz análise pormenorizada da temperatura e dos ventos anuais de Diamantina, concluindo que "oferece o edifício as condições higiênicas desejáveis; e, dotado como será, de todos os modernos melhoramentos, é de se esperar que a cura das enfermidades mentais atinja 50%" (Figura 5).

 

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Figura 5 - Hospício da Diamantina.

 

Trata-se de construção grandiosa para a época e projetada de acordo com as modernas concepções médicas. Leva em consideração a necessidade de ventos frescos e puros e a circulação do ar, preconizada pela concepção miasmática, de limpeza (existência de banhos e duchas), que remete ao higienismo, além do tratamento moral proposto por Pinel e Esquirol.

Os relatórios mostram que, durante seu funcionamento, atendeu pacientes de várias cidades do Vale do Jequitinhonha com diferentes diagnósticos de distúrbio mental. Apesar do grande interesse da diretoria da Santa Casa, o hospício foi inviabilizado em decorrência da retirada progressiva da ajuda do poder público.31

Diamantina não teve representação política e económica suficientemente forte para manter as verbas estaduais de custeio destinadas ao hospício de alienados no princípio do século XX. Privilegiou-se a cidade de Barbacena como a sede de um hospital psiquiátrico, criado em 1903 com o intuito de, por um lado, centralizar os recursos que eram destinados a várias Santas Casas e ao Hospício da Diamantina e, por outro lado, de acordo com a política descentralizadora da República, fazer com que os estados arcassem com seus próprios problemas sanitários.32 O Hospício da Diamantina foi fechado em 1906 em decorrência da retirada dos recursos públicos que até então lhe eram destinados, pondo fim ao projeto de um centro de Medicina mental que durou menos de 20 anos. Os pacientes aí internados foram transferidos para o hospício de Barbacena. Posteriormente, o prédio foi utilizado para outras funções, até que, em meados da década de 1970, foi completamente abandonado.

O prédio principal no alto da rua da Caridade, logo acima da Santa Casa, ainda se mantém de pé, tendo desaparecido as duas alas laterais31 (Figura 6). Depois de tantos anos sendo progressivamente consumido pela ação do tempo, parecia que o velho Hospício da Diamantina estava definitivamente condenado a desaparecer, levando consigo, além de uma importante página da história da Medicina mineira e brasileira, também um testemunho histórico da revolução médica ocorrida na segunda metade do século XIX em relação à doença mental. Felizmente, a atual diretoria da Santa Casa de Caridade de Diamantina decidiu recuperar a dignidade e imponência do velho Hospício da Diamantina. Os trabalhos de restauração encontram-se em plena atividade. Trata-se de grande serviço não só ao patrimônio arquitetônico mineiro, mas também à história de Diamantina e da Medicina mineira.

 

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Figura 6 - Foto atual do prédio principal do Hospício da Diamantina, em ruína.

 

Diamantina conta atualmente com dois hospitais, a Santa Casa de Caridade e o Hospital de Nossa Senhora da Saúde. Este foi fundado por Antônio Moreira da Costa (Barão de Paraúna; 1823-1889), rico minerador de diamante e que, em testamento, doou a fortuna para a construção do hospital, que foi inaugurado em 1901.2

Traçamos a origem e trajetória de três hospitais da cidade de Diamantina; o hospital para escravos e o hospital para alienados desapareceram, ficando apenas na memória e nas cicatrizes sociais consequentes às duas condições que lhes deram origem. A Santa Casa de Caridade de Diamantina continua imponente e, desde 1790, evoluindo para se adequar às transformações da sociedade na sua secular missão de dar assistência de saúde à população do Vale do Jequitinhonha. Atualmente, ela é moderno centro hospitalar com todas as especialidades médicas e referência para a região do Vale do Jequitinhonha. Com a implantação, em 2005, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, seu próximo passo é tornar-se hospital universitário da Faculdade de Medicina da UFVJM, que se encontra em fase de implantação.

 

RERERÊNCIAS

1. Santos JF. Memórias do Distrito Diamantino. Belo Horizonte: Itatiaia; 1976.

2. Machado Filho AM. Arraial do Tijuco - Cidade de Diamantina. Belo Horizonte: Itatiaia; 1985.

3. Furtado JF. Arte e segredo: o licenciado Luís Gomes Ferreira e seu caleidoscópio de imagens. In Ferreira, LG. Erário mineral. Organização Júnia Ferreira Furtado. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz; 2002, v1,p. 3-30.

4. Martins ML. A Crise dos negócios do diamante e as respostas dos homens de fortuna no Alto Jequitinhonha, décadas de 1870-1890. Est Econ. 2008;38:611-38.

5. Oliveira JK. Meu caminho para Brasília.Rio de Janeiro: Bloch; 1974.

6. Salles P. História da Medicina no Brasil. Belo Horizonte: Ed. G. Holman; 1971.

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