Tempos Idos

11-10-2011 08:51

Diamantina, Novembro de 1895

    Num domingo, ás onze horas do dia, após o almoço, os dois irmãos José e Adolfo Colen, encontrando-se com Zeca Prado, á porta do Mota, convidaram-no para um passeio no Brazão, onde as jabouticabeiras  já deviam estar carregadas de frutas maduras. Zeca Prado recusou, alegando que ele e os primos Vicente e Júlio Fonseca pretendiam ir, naquele dia, ao Tigre, a fazenda do Leonel, lugar bem mais divertido, com boas comidas, leite, frutas e bonitas moças, amáveis e insinuantes.

    - Vamos então procurar o Teodolindo, (lembrou Adolfo0 que há de apreciar muito esse passeio.

    Teodolindo Antõnio da Silva Pereira, aluno da Escola Normal, natural de Capelinha da Graça, norte de Minas, morava na pensão de B. Bernadina, viúva do chefe político João Raimundo Mourão, á rua da Quitanda. Quando os dois irmãos o convidaram para o passeio, ele perguntou:

    -Brazão? Onde fica este lugar, em que nunca ouvi falar?

    - Pouco distante do córrego do Prata, explicou José. É uma tapera em ruínas, apenas uns restos de muros e muitas jabuticabeiras. Nos tempos coloniais, ao que dizem, morava lá, numa chácara, um padre, de nome Brazão, de onde ficou o nome para o lugar. Diz a tradição que ese sacerdote ali enterrou várias partidas de diamantes, cuja posse era considerada grave crime pelo despotismo do Governo de Portugal. Voce já deve ter ouvido falara no célebre "Livro da Capa Verde", que punia com prisão e degredo para a África os extratores, possuidores e negociantes de diamantes.

    Teodolindo começou a rir:

    - Parabéns, colega. Você é um bicho na história de Diamantina... Onde aprendeu tudo isto?

    - Nas memórias do Distrito Diamantino do Dr. Joaquim Felício, respondeu o outro, lisongeado com o elogio.

    - Isto é: o Dr. Joaquim Felicio não se refere a lenda do Brazão; é uma tradição local.

    Teodolindo aceitou o convite dos Colens, estendo-o ao seu companheiro de pensão, Amadeu Rabelo, que acabava de entrar no quarto. Amadeu recusou, tinha muitas lições a estudar.

    - Nós também temos lições, retrucou Adolfo. Pode-se estudar de noite.

    Insistindo o colega em não ir, sairam os três pelos fundos da casa, no Beco do Mota, pelo qual foram subindo, atravessando depois rua Direita e entrnado na rua das Mercês. Á uma janela desta rua, á esquerda se achavam o Zezé Menezes e sua interessante filha Zenólia, de quinze a dezesseis anos.

    Deram-lhe bons dias e continuaram subindo a rua.

    - Linda menina! comentou Teodolindo.

    -É verdade: muita bonita e simpática, disse José Colen.

    - O pobre Ninico Perpetuo tem uma paixão louca por ela, mas a Zenólia não liga, continuou Adolfo. Vocês tem notada como ele anda triste?

    José Colen declamou para os outros:

    - "Ó vós que sofreis, porque amais! Amai mais ainda! ... Morrer de amor é vive dele!"

    - Brvo, José, você está eloquente! exclamou Teodolindo.

    - É dos "Miseráveis de Vitor Hugo", respondeu o outro. Um trecho do capítulo "Um coração debaixo de uma pedra".

    Foram seguindo até o Largo do Curral desceram a rua do Seminário e entraram no Beco da Montolia. Depois começaram a descer, por saltos pedregosos, entre arbustos.

    - Que estrada horrível! exclamou Teodolindo. Isto não é caminho de gente!

    - Pois por aqui passam diaramente, atalhou Adolfo, pobres mulheres, com grandes trouxas de roupa á cabeça, para lavarem no Prata ou nos Brocotós,e voltam quase á noite, carregando o peso maior da roupa molhada.

    Continuaram a descer pela íngreme ladeira, em direção ao vale , avistando-se ao longe o morro da Formação. Pelo caminho iam colhendo frutas silvestres: murta, marmelada de cachorro, araçás, goiabas, gabirobas...

    - Este araçá pedra é intragável! comentou Teodolindo, mordendo um e cuspindo fora, com uma careta. - Duro como pedra e mais azedo que limão!

    - Muita gente se aprecia pela manhã, para cortar a ressaca, disse o José Colen, rindo...

    - O rebate é uma desgraça, como diz o Juca Boi, atalhou o José Cole.

    - Para a ressaca braba, exclamou o Adolfo, tomar pela manhã limonada fosfórica  com acido fórmico, com usam os estrangeiros da Boa Vista.

    Chegaram afinal ao córrego do Prata, que atravessaram, subindo em diração á Tapera do Brazão. Nas jaboticabeiras estavam trepadas algumas rapazolas e garotos de Diamantina: manoel Petelica, Salatiel Moreira da Costa, Juca Urso, Antôno Carôço, Gabriel de Mato.

    Treparam também ás árvores e começaram a comer jaboticabas, que ali havia em grande quantidade e explêndida, principalmente as chamadas Tortas. Do alto de uma jabuticabeira declamava o Teodolindo, em voz alta e comovida:

        Talhado para as grandezas,

        P'ra crescer, criar, subir,

        O Novo Mundo nos musculos

        Sente a seiva do porvir!

        Estatuário de colossos,

        Cessando de outros esbôços,

        Disse uma dia Jeovah:

    Afinal recitou a última da poesia:

        Bravo a quem salva o futuro,

        Fecundando a multidão!

        Num poema amortalhada,

        Nunca morre uma nação.

        Como Goethe moribundo,

        Brada "luz" o Novo Mundo,

        Num brado de Briaréo...

        Luz pois no vale e na serra,

        Que, se a luz rola na terra,

        Deus colhe genios no céu!

      - Bravos! Muito bem! gritaram os garotosm com estrondoso salva de palmas.

    - Gostaram do "Livro e a América" de Castro Alves

exclamou Teodolindo, lisongeado com os aplausos. Pois então vou recitar as "Vozes d'Africa" do mesmo poeta:

        "Deus! Ó Deus! Onde estás que não me respondes,

        Em que mundo, em que estrela, tu te escondes,

                                Embuçado no céu!

        Há dois mil anos te mandei meu grito,

        Que, embalde, desde então corre o infinito,

        Onde estás, Senhor Deus"

    Ao declamar o Teodolindo os últimos versos "Escuta o brado mar lá do infinito, meu Deus! Senhor meu Deus!" entre os rapazes ressoaram gritos de angústia e o baque surdo de um corpo no chão.

    Salatiel caira do alto da jaboticabeira. Descemos rapidamente das árvores, correndo em seu socorro.

    - Machucou-se. perguntou-lhe o Juca Urso.

    - Qual nada! respondeu o Salatiel, levantando-se, aprendi a cair como os artistas do circo de cavalinhos. Nada sofri com a quéda. Em meu lugar  qualquer um de vocês estaria frito... pelo menos com uma perna quebrada...

    - Os artistas do circo não sabem cair tão bem como você diz, comentou o Manoel Petelica. Não se lembra há alguns anos, atraz, quando, no circo da Cavalhada Nova, cairam do alto do trapézio dois artistas, Deolindo e um outro. Ficaram muito feridos, só escapando o Deolindo, morrendo o outro na Caridade.

    - Lembro-me muito bem, respondeu o Salatiel.

    No circo estava o Dr. João Antônio, que correu a socorrer os pobres artistas.

    - Foi com essa Companhia de Cavalinhos que fugiu de Diamantina o Djalma, continuou o Gabriel de Matos. Era quase um menino; tocava rquinta admiravelmente . O Paraguai ia contrata-lo para a banda do Corinho.

    - A mãe do Djalma anda até hoje angustiada, sem notícias do filho, disse o Juca Urso. - Por onde andará ele.

    - Divertindo-se por este mundo afóra, respondeu Salatiel. - Algum dia voltará a Diamantina... se não morrer por lá!  (ARNO, Ciro, 1959:2)