Velho Morro

16-03-2011 07:59

Mesmo contrariando o Aniceto, gato metido a filósofo, herege, ateu ou coisa que o valha, meu desejo é voltar a satisfazer constantes apelos, contando estórias que não estão na história, para gaudio dos velhos e desprezo dos novos, pondo de lado o ridendo castigat mores, contando com a benevolência do Diretor deste jornal. Assim é que, deixando o Jequitinhonha, cujo vale é hoje objeto de estudos, voltei ao Velho Morro, de onde descortindo a cidade recordando os velhos costumes, desconhecidos pela mocidade, dente eles os esmoleres, relegados com outros, desde o advento do progresso material, iniciado pela ferrovia criação do notável brasileiro que foi Francisco Sá, político de visão segura que idealizava ligar Vitória ao Rio de Janeiro por estrada de ferro, programa que outro governo desviou. Ainda no meu tempo, havia o costume de tirar esmolas para as almas e para o Santíssimo, e era o Simplicio o esmoler velho sacristão do Rosário, cansado de cerimnônias religiosas, preferiu outra ocupação. As segundas e terças feiras esmolava para a missa das almas. Vestido de ópa verde, com sacola da mesma cor, onde se via uma placa de prata em alto relevo mostrando as almas dentro das labaredas de fogo. As quintas e Sexta feiras, suplicava para a cera do Santíssimo. A ópa era vermelha e da mesma cor a sacola, mas a placa ostentava uma custódia. Recolhia cédulas, moedas de prata e níckel e cobre, prestando contas e recebendo sua comissão. Era um meio de vida honesto e de sacrifício, notadamente no tempo de chuva. Morrendo, foi substituído pelo Luiz Paulino, lapidario português, que serviu por longo tempo. Morto, herdou as ópas e sacolas o sargento reformado da polícia, Silvério, morador no Bêco de João Pinto que, ás vezes, também exercia a função de Oficial de Justiça. Desaparecido o Silvério, veio o João Pequeno, também foi sacristão da Sé e serviu até morrer. Depois veio o Candinho que morava no Largo da Luz. Era o progenitor do Padre Otávio Domingues. Seu sucessor foi o Silvério de Paulo, tipo original, irritável e sistemático. Montou residência na Igreja das Mercês, de onde assombrava, horas mortas, os transeuntes notívagos. Mas só esmolava para o Santíssimo. Para as Almas, dedicou-se a Maria Marques, que ficou apelidada de Maria das Almas vestida de severo luto. Veio o último, Raimundo Dias Pereira, cognominado Sete Boias, por haver comido de uma só vez, a boia de sete soldados, seus colegas de farda. Era reformado da polícia, muito honesto apesar de ser do Pinheiro, fazia pedidos muito ruidosos que o popularizaram. Com a morte deste e de Maria das Almas, desapareceu este costume, ficando apenas o Neco Boi, que pedia para o Senhor da Boa Morte. Era outro velho costume a visita ao senhor da Boa Morte, as sextas feiras, na Igreja do Carmo. As mães levavam filhos ao templo, ainda sem luz elétrica, mal iluminada a vela. Os devotos entravam, rezavam depositavam sua esmola na salva ali existente, e dando moeda no valor maior retiravam outra de pequena valor, para dar sorte. Os pobres depositavam um cobre de quarenta e tiravam um vintém. Mas, com o tempo, as visitas foram escasseando até que a Igreja ficava inteiramente vazia, com prejuízo para o Santo. Foi então que apareceu Manoel Joaquim da Conceição, vulgo Neco Boim que, com os irmãos João e Adelino, era seleiro, resolveu ele: como não aparece visita para o Santo, vai o Santo, por seu preposto, visitar por sua vez  recebendo a esmola com a seguinte invocação: “O Senhor da Boa morte me mandou fazer sua visita” que o devoto não enganava, Morto o Neco Boi, ninguém mais apareceu. Foi-se o velho costume. Parece que ainda existe pelos menos de direito, sinão de fato arquiconfraria de São Francisco da Luz, franciscanos pobres, operários, garimpeiros e outros humildes trabalhadores e outros. Quando um deles adoecia, a sociedade tinha um esmoler que saía as ruas, de burel preto e um grande avental branco com bolsos na frente e atrás, onde depositava as esmolas em espécie e em dinheiro, destinada á alimentação do irmão enfermo. O último Felisberto Bacelar, exímio pedreiro que morava no Bicame, local hoje ocupado pelo prédio da 8ª Residência do DER. e a súplica era: - “Pela Santa Caridade” Função humilde e caridosa a que se dedicava esse digno filho do Poverelo com sacrifício do seu tempo, economia. Para que não fique no ouvido, bom é lembrar esse velho costume retifico o menção “progresso”. Ele teve mesmo início com o telégrafo, depois a luz elétrica em 1910, que nos deu a honesta administração municipal de Augusto Afonso Caldeira Brant, porém, o acontecimento mais expressivo foi mesmo a Estrada de Ferro, que nos deu Francisco Sá, o mesmo que a encampou para a Central e ainda nos deu a água, instalada por outro não menos honesto e progressista Prefeito Juscelino Dermeval da Fonseca.

Morro, do Zé, Voz de Dtna, 1970.