Exumação da Chica da Silva

18-12-2015 13:40

Misteriosa figura nacional, Chica da Silva é exumada para documentário 

×Powered By CapricornusTrês policiais guardavam os portões onde um grupo de curiosos, incluindo o prefeito, acompanhava o trabalho dos dois especialistas em medicina forense. Com passagem pelo FBI, eles retiravam uma ossada da tumba 24 do cemitério da Igreja de São Francisco de Assis.

A cena parecia um episódio de uma série policial, mas o grito de "ação" partiu do produtor e fotógrafo brasileiro Jacques Dequeker, que filmava as primeiras cenas do documentário "A Rainha das Américas", na cidade colonial de Diamantina, em Minas.

Com direção da atriz Zezé Motta, o filme deve ser lançado em 2017. O tempo de produção é proporcional à megalomania: a ideia é jogar luz sobre Chica da Silva (1731/32-1796), uma das figuras mais enigmáticas da cultura brasileira.

Imortalizada por adaptações em novela e filme do livro "Xica da Siva" (1976), de João Felíciodos Santos, a escrava forra e primeira negra a assumir uma posição de destaque na elite do país não tem rosto nem corpo pela falta de pinturas fidedignas.

Foi o livro, aliás, que popularizou Chica como Xica. Além disso, sua história, com passagens romanceadas de sexo extraconjugal e sadismo contra quem lhe desagradasse, é motivo de polêmica e estudos acadêmicos.

"Queremos devolver a dignidade a Chica. Ela era uma mulher generosa, que conquistou o homem mais rico do Brasil na época [o contratador português de diamantes João Fernandes de Oliveira] e desafiou a sociedade do século 18", diz a roteirista e produtora do filme, Rosi Young.

Com R$ 35 mil na mão e uma ideia na cabeça, ela pagou quase R$ 20 mil ao casal de especialistas forenses Anthony e Catyana Falsetti, chamou Dequeker e contratou especialistas em DNA.

Anthony, geneticista que participa de investigações do FBI, a polícia federal americana, exumou os filhos do czar Nicolau 2º, incluindo Anastácia. A mulher do cientista, curitibana, é especialista em reconstrução facial em 3D.

Apesar de os documentos históricos afirmarem que Chica estaria enterrada na igreja, os quase 220 anos de sua morte poderiam ter reduzido o corpo a pó.

Em 15 de outubro, Young conseguiu autorização da Ancine para captar R$ 2,5 milhões. No dia 22, partiu para Diamantina. A Folha a acompanhou na viagem.

Poucos acreditavam na possibilidade de haver algum resto do corpo de Chica da Silva no cemitério da igreja.

No dia da exumação, 23/11, o historiador e técnico pesquisador do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) José Bittencourt, um dos mais otimistas da turma, sentenciou: "5% de chance de encontrarmos só pó".

Para surpresa dele e da equipe de "A Rainha das Américas", não havia só pó, mas uma ossada completa. A partir de exames –a olho nu– do casal de especialistas forenses Anthony e Catyana Falsetti foi determinado que ali jazia uma mulher, provavelmente negra devido à curvatura da cavidade nasal.

"Podemos afirmar que essa mulher tinha entre 55 e 65 anos à época de sua morte", diz Anthony. Não se sabe com exatidão como morreu a ex-escrava, apenas que, quando morreu, sua importância no meio da sociedade era tão grande que foi enterrada numa igreja, distinção concedida a nobres.

Conhecer a estatura física, as doenças que possa ter contraído e o que comia –serão analisados os dentes da possível Chica– ajudará a entender a verdade por trás do mito.

Em Brasília, nesse momento, tramita um processo de autorização para a viagem de parte dos restos mortais para os Estados Unidos, onde serão feitos testes de DNA e reconstrução facial. Esses testes definiriam a origem étnica da ossada. Pelo que se sabe, a única negra enterrada na igreja é Chica da Silva.

"As pesquisas podem lançar luz sobre essa figura, fazer um retrato de alguém que já foi estudado por diversas gerações e continua uma incógnita", diz Junno Marins, chefe técnico do Iphan em Diamantina.

Além da reconstrução científica de Chica, o projeto inclui uma outra, fictícia. O estilista Walério Araújo criará uma roupa para vestir a personagem principal do filme. O maquiador e cabeleireiro Max Weber recriará o look da época.

'CAUSOS'

Entre os "causos" mais famosos que circulam na cidade sobre a moça é a história da torre da igreja. Chica, atormentada pelo barulho do sino da Igreja do Carmo, próximo à sua residência, teria mandado reconstruir a torre na parte traseira do templo, distante do seu sono.

Para aprofundar a pesquisa sobre a ascensão de Chica, a trupe do documentário viajará, em maio de 2016, para Portugal, onde pretende exumar também o corpo de João Fernandes de Oliveira, o português que se apaixonou pela escrava e lhe deu fortuna, alforria e 13 filhos.

Segundo Rosi Young, a ideia é enterrá-lo junto à sua amada. Zezé Motta, que não pôde ir à exumação devido às gravações da novela "Escrava Mãe" (TV Record), conduzirá o roteiro de Young.

O fim do projeto promete coroar a imagem de Chica da Silva. O prefeito de Diamantina, Paulo Célio, já autorizou a equipe a construir uma escultura que deverá ser erguida na cidade em memória da ex-escrava.

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CAÇA AOS OSSOS Cerca de 30 pessoas acompanharam

TUMBA 24

Um documento obtido pela roteirista Rosi Young nos arquivos da Irmandade de São Francisco de Assis dá conta de que Chica da Silva, dois homens e uma criança foram enterrados no cemitério da igreja São Francisco de Assis, em Diamantina (MG)

ABRINDO O TÚMULO

O cemitério da igreja foi reformado na segunda metade do século 20, mas a construção original de quase 120 anos foi conservada. O primeiro receio dos cientistas era que, ao quebrar a parede de cimento mais novo, os tijolos originais se quebrassem para dentro, danificando as ossadas. Entre a primeira martelada e a retirada total dos tijolos centenários se passaram 35 minutos, nos quais só se ouvia o barulho do martelo

CRÂNIO

A especialista em reconstrução facial e cientista forense Catyana Falsetti se enterrou no túmulo até os pés para olhar de perto o achado. Ela e o marido, o também cientista forense Anthony Falsetti, encontraram apenas um corpo deitado na tumba. Os braços estavam cruzados na altura do peito e pedaços de renda preta e branca. Parte da cabeça se desfez quando foi tocada. A retirada dos ossos levou duas horas

ANÁLISE FORENSE

Os restos foram removidos para dentro da igreja. Alguns ossos, úmidos devido às infiltrações na tumba, foram mergulhados em arroz para secagem. A primeira constatação, pela bacia, foi que o corpo era de mulher. Descobriu-se que a mulher sofria de reumatismo, dada uma deformidade aparente na base da coluna vertebral. Isso indica idade entre 55 e 65 anos quando morreu, a mesma de Chica. Ao juntar os lados esquerdo e direito da cavidade nasal, constatou-se que o ângulo da curva é acentuado, uma característica de alguns grupos de etnia negra. Uma análise de DNA nos EUA definirá o exato grupo étnico da ossada. Se constatada a origem africana, os especialistas darão como certeza a descoberta dos restos de Chica da Silva, já que apenas ela poderia ter sido enterrada num lugar destinado aos brancos

CADEADO MISTERIOSO

Um cadeado do século 19 foi encontrado na tumba, provavelmente usado para lacrar uma caixa que, especula-se, guardava os restos mortais de outras pessoas

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AS XICAS O que já foi escrito, filmado e gravado sobre a ex-escrava

LIVROS

O primeiro registro é de Joaquim Felício dos Santos, que, em 'Memórias do Distrito Diamantino' (1868), a descreve como 'mulata de baixo nascimento'. Mais de cem anos depois, o sobrinho de Joaquim, João Felício dos Santos, publicou 'Xica da Silva' (1976), que dá um tom folclórico à mulher que teria mandado cortar a boca de uma rival e era cruel com os escravos. O mito do sadismo creditado a Chica surgiu pela caneta de Agripa Vasconcelos. No romance "Chica que Manda" (1966) ele misturou história e fantasia para construir a imagem sádica da mulher negra que desafiou a hegemonia branca na pacata Diamantina (MG) colonial. Essa visão sanguinária é questionada em "Chica da Silva e o Contratador de Diamantes" (2003), da historiadora Júnia Furtado

  Divulgação  
A atriz Zezé Motta em cena do filme "Xica da Silva".*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA*** 
A atriz Zezé Motta em cena do filme "Xica da Silva"

FILME

Foi a partir da obra de João Felício dos Santos que o cineasta Cacá Diegues criou a maior referência imagética de Chica. O filme 'Xica da Silva' também é de 1976, com Zezé Motta no papel de Chica e Walmor Chagas como seu amante. Um dos fatos abordados é o da construção de um barco e um lago particulares empreendida por João Fernandes para satisfazer um capricho de sua amada

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Atriz da novela " Xica da Silva", Taís Araújo. [FSP-TV.Folha-03.08.97]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA***
Taís Araújo na novela " Xica da Silva"

NOVELA

Adaptação mais recente da obra de João Felício, a novela 'Xica da Silva' (1996) lançou a atriz Taís Araújo, que aos 17 anos se tornou a primeira negra a assumir um papel de protagonista em uma telenovela. Escrita por Walcyr Carrasco, foi exibida pela extinta TV Manchete e mostrou polêmicas cenas de sexo e nudez que deixaram o público estarrecido e com os olhos fixos na TV.

Fonte:

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/12/1714851-misteriosa-figura-nacional-chica-da-silva-e-exumada-para-documentario.shtml